Kenzaburo Oe: “Uma questão pessoal”

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Kenzaburo Oe: “Uma questão pessoal”. Companhia das Letras. São Paulo. 2003. 222 pgs.

     Conhecer a história pessoal do Kenzaburo Oe, – consagrado escritor japonês e Premio Nobel de Literatura (1994) -, e do Hikari, seu filho deficiente que, uma vez e outra, faz ato de presença nas suas obras, foi o maior incentivo para ler este romance. Incentivo e quase piloto automático, pois em várias ocasiões estive a ponto de fechar o livro irritado. As descrições são perfeitas, e não apenas no exterior, mas atingem a intimidade das personagens e mostram com detalhe suas misérias e podridões de forma mais do que molesta. Foi uma surpresa, pois não sintoniza com o sentido de pudor elegante que os ocidentais atribuímos aos orientais. Mas parece que Oe já andou escrevendo muito a respeito desses meandros depravados, onde sexo, bebida e desgraças nos fazem chafurdar na devassidão humana.

     Bird, o protagonista, é apresentado ao seu filho primogênito na maternidade. Uma criança com hérnia cerebral, disforme, um monstro. À desolação da notícia, segue-se a fuga da realidade, em profundo mergulho nas baixezas humanas, inundadas de uísque e sexo desregrado. A tristeza e a rejeição cristalizam no desejo de eliminar aquele ser que será uma carga permanente, um entrave para uma vida que, de per si, já é vazia. A necessidade de lhe dar um nome, para efeitos de registro no hospital onde se espera que morra logo, é um verdadeiro dilema: “Um nome, pensou Bird. Estava confuso, como quando refletira sobre o assunto no hospital onde a mulher se encontrava internada. Dar um nome humano ao monstro faz com que ele se transforme em gente e passe a reivindicar direitos. A morte dessa criança enquanto anônima é uma coisa e com um nome é outra; sua existência torna-se mais real”.

     A leitura de 95% das páginas, além de irritar vai nos sumindo em profunda tristeza. Até que, no final, me fez lembrar Evelyn Waugh em Brideshead, e evocar os romances dos conversos que injetam toneladas de transcendência no desfecho. Aqui não há transcendência explícita, mas um cair em si, uma decisão por aderir à dignidade humana. Eis a confissão de Bird que prenuncia a virada: “Desde a manhã em que o bebê nasceu até agora, eu não parei de fugir. Só tenho duas alternativas para parar de fugir do bebê-monstro e enfrentar a situação sem subterfúgios: ou eu o asfixio com minhas próprias mãos, ou o acolho, procurando de alguma forma cria-lo. Isso estava claro desde o início, só não tive coragem de admitir”

     Não cabe julgar –até porque desconheço- o quanto de autobiográfico se encerra neste romance. Certamente o escritor japonês deve ter enfrentado o desafio que a vida lhe colocou ao confiar-lhe um filho deficiente; e parece que com grande classe, pois continua escrevendo sobre o assunto. Talvez as descrições desagradáveis com que preenche esta obra queriam significar que o ser humano, por mais sumido que se encontre na miséria e sempre capaz de ressurgir e assumir sua dignidade. Justamente abraçando a dificuldade e a dor. Um abraço que se funde no filho deficiente que, sem saber, resgata o pai dos abismos da maldade. Um verdadeiro presente que é preciso descobrir e agradecer. De fato, uma questão completamente pessoal.

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