AS FILHAS DE MARVIN

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

(Marvin’s Room) Diretor: Jerry Zacks. Diane Keaton, Meryl Streep, Leonardo DiCaprio, Robert de Niro.   98 min. USA 1996

Marvin é um velho adoentado, prostrado no leito onde gasta os que parecem ser seus últimos dias. Bessie é a filha que toma conta dele, administra os medicamentos, e cuida do pai com doses maciças de carinho e compreensão. Vez por outra Marvin padece crises espasmódicas -mistura de agitação e medo- que Bessie acalma com um fármaco peculiar: um jogo de luzes projetadas no teto, com um espelho, em dança caprichosa. Marvin sorri, e recupera a serenidade enquanto Bessie o abraça, encosta sua cabeça na do pai, e juntos contemplam o espetáculo luminoso. Uma velha tia convive com ambos, e mais atrapalha do que ajuda, na tarefa de cuidar do doente. Bessie sente-se cansada. Procura o médico que lhe comunica o diagnóstico: leucemia. Lee, a outra filha, entra em cena na esperança de conseguir-se um doador. Carrega dois filhos, um deles adolescente, e, como não poderia deixar de ser, problemático e drogado. Este é todo o universo do filme, onde Marvin não fala uma palavra -apenas grunhe- e oferece o palco para um duelo singular de interpretação e de valores de fundo.

         Os contrastes entre irmãos -antagonismo de virtudes e vícios- são antigos, como o próprio homem. Tem sabor bíblico, desde Caim e Abel. E é prato cheio para a arte, na literatura ou no cinema. Leva vantagem em tudo isto quem sabe aprofundar nos caracteres humanos, como Dostoievsky em Os Irmãos Karamazov, ou Steinbeck em Ao Leste do Éden, que também teve sua versão cinematográfica com Elia Kazan. De qualquer forma, se o veículo do contraste é o cinema, e a modalidade é quase teatro filmado, como no filme que nos ocupa, o sucesso será proporcional à capacidade interpretativa dos atores. Neste caso, o resultado é simplesmente magnífico.

         O filme é um verdadeiro “mano-a-mano” entre duas atrizes de talento. Um duelo de gestos, de expressões faciais, que desnudam a alma das personagens, expondo suas grandezas e suas misérias. Sentimentos que se tornam transparentes até subirem aos olhos, aos lábios, à expressão precisa das mãos. O amor de Bessie cristaliza num sorriso paciente, dolorido, que envolve tudo em compreensão. A frivolidade de Lee, se exprime em trejeito hesitante,  de quem ameaça ocupar-se dos outros, mas carece de prática. E quando a emoção se contrapõe ao egoísmo, o máximo que se consegue é arrancar algumas lágrimas que molham a peruca da irmã, que ela, cabeleireira diplomada, faz questão de arrumar. É como quem diz: “isto é tudo o que eu sei fazer por você; perdoe-me, esqueci-me de como é amar alguém”.

         Esses são os verdadeiros protagonistas deste filme tocante: o egoísmo e o amor. O desempenho fabuloso das atrizes é apenas a ponta do iceberg de um outro duelo, mais apaixonante do que a representação cênica. Um amor que é doação, que não entende de contabilidades e créditos, que insiste em gastar-se encontrando desse modo a verdadeira sublimação. “Quando papai teve o derrame fiz minha opção e decidi não jogar fora minha vida”. “Que opção?  –responde Bessie- você foi embora, eu fiquei; pensa que eu não tinha planos na vida? Pensa que joguei fora a minha vida?”.

         Caem os remédios de Marvin, as pílulas coloridas esparramam-se pelo chão da cozinha. As duas irmãs, de joelhos, recolhem os medicamentos. Os rostos se encontram e Bessie sorri: “Lee sou feliz, tremendamente feliz. Tenho papai, tenho a tia”. Lee -a eterna destreinada no amor- acena, pensa ter compreendido. “É, de fato, eles gostam de você”.  Bessie, mais uma vez, nota a falta de sintonia da irmã e esclarece, numa estocada que atinge o coração do espectador: “Você não entendeu. Sou feliz porque tenho alguém para amar, porque consegui me doar. Não imagino poder ter uma vida melhor”.

         O amor se vende fácil e barato nos dias de hoje. É metal cujo valor se desconhece. Na verdade, são as falsificações do amor as que inundam o mercado, até o ponto de que a autêntica moeda está quase fora de circulação. Ama-se um enfeite, um vestido, uma situação, um prato de culinária sofisticada. Diz-se amar qualquer coisa, e na banalização da linguagem, espelha-se a pobreza que inunda os espíritos. Estamos mergulhados numa sociedade que funciona no arco reflexo do prazer, na lei do gosto, que passa longe, muito longe, da vontade, verdadeira usina do amor. Somos governados por estímulos apetitosos que satisfazem reações epidérmicas, como uma boa poltrona ou um perfume francês que, por sinal, também se ama, quando não se adora. Chegamos a atingir, na trivialização das palavras -afinal adoração é atributo da divindade- quase um verdadeiro culto à frivolidade.  Mas como tudo é superficial, muito “light”, adora-se, claro está, sem fanatismos. Não há maiores perigos nem compromissos.

         As brigas do amor e egoísmo, personificadas nas duas irmãs, são batalhas diárias que cada um deve encarar consigo mesmo, pois todos carregamos, de algum modo, uma Bessie e uma Lee dentro de nós. As pessoas não são quimicamente puras, não nascem boas ou más, mas se constroem no acontecer humano. É preciso cruzar verticalmente a  tendência negativa do egoísmo, transformá-la em positivo, com o prumo certeiro do amor. E tem de ser feito na mesma ação, carimbada na fonte emergente com o sinal mais, que amputa o desvio na raiz. A vida não é um saldo de negativos e positivos, que regula a generosidade e o mínimo suficiente para não ficar no vermelho. Curiosa contabilidade -e difícil- a de quem abre crédito livre para seus caprichos e egocentrismos, para quem poupa sua vida com medo de desperdiçá-la, e depois, para contrabalançar, dá esmolas no farol ou dedica algum tempo à filantropia, que embrulha até em cheque especial imaginando fazer grandes altruísmos.

         Quem sabe, se toda a superficialidade da sociedade não seria apenas simples reflexo desta contabilidade esquizofrênica que os indivíduos carregam consigo. Comodismo e culto ao ego, temperados com alguns trocados quando beliscam nossos sentimentos. Talvez por isso, o cinema de hoje -o cinema positivo como este- é franco e realista, e sabe que mesmo enxurradas de generosidade não conseguem perfurar as crostas de egoísmo que pavimentam as almas fúteis, para extrair o manancial de verdadeiras mudanças.

É preciso, primeiro, modificar a sintonia e situar o amor no seu verdadeiro âmbito, na governo da vontade, abandonando a tirania do gosto. Enquanto isso não acontecer, não esperemos guinadas como a do santo de Assis, e contentemo-nos com arrancar gestos de amor, lascas do coração doído, que destila lágrimas e penteia as perucas dos que gastam a vida e a saúde no compasso da doação. É já uma conquista, um caminho que se abre à esperança, água mole que bate na pedra dura, e a envolve no cintilar dos espelhos -grandioso final- onde aponta a luz no final do túnel. É todo ele um escuro caminho, toca do egoísmo que isola dos outros; um túmulo de quem vive para si mesmo, e desconhece que o amor nos torna felizes quando podemos entregá-lo aos semelhantes, e com ele entregar-nos nós mesmos, sem caixa dois, em contabilidade única e definitiva.

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