Ary Nasi: As Alcachofras do Paraiso

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Viseu, 2025. 196 págs.

O autor, colega e amigo querido, entrega-me um exemplar autografado na Noite dos Escritores que tivemos recentemente. Uma dedicatória acessa, que emociona. Abro o livro, tropeço com a frase de Ortega da qual tantas vezes temos falado -A vida nos é disparada a queima- roupa- , e a emoção cresce e me impulsiona a seguir a leitura. Assim, direto, a queima-roupa. A vida, os livros, a amizade.

E também as lembranças entranháveis: antes de entrar na vida das alcachofras, Ary faz uma homenagem a Nina, outra colega querida, que nos deixou. Relata as lembranças dos dois últimos anos antes da partida dela, cheios de detalhes, de atenção, de carinho. E aqui me senti em falta; explico com detalhe.

Eu também tive muito relacionamento com a Nina, mas foi no final da faculdade, há mais de 40 anos. Estávamos na mesma panela  do internato, dávamos plantão juntos e quando ela, já mostrando uma gravidez avançada, insistia em dividir os horários noturnos, aceitávamos…..e a enganávamos, porque nunca a acordamos no horário que lhe correspondia. Tínhamos prazer em cuidar da primeira mãe da turma. No final da sua vida, um mês antes dela partir, fez questão de participar numa reunião de raciocínio clínico, colaborando com o seu conhecimento. A distância, obviamente, com um sorriso permanente, com bom humor, enquanto o soro pingava no braço dela. Um monumento de mulher. Tive vários pacientes que ela me ajudou a cuidar e agora sentem-se órfãos. Senti-me em falta porque eu não escrevi nenhum livro sobre isso. Ainda bem que o Ary teve a iniciativa.

O Claudio -quer dizer, o alter ego do Ary- relata tudo o que eu sei o autor gosta, curte, desfruta. A simplicidade das coisas, o modo natural do ser brasileiro, algo que me encantou neste pais que aprendi a amar, quando aqui cheguei há 50 anos.  Algumas amostras: “Aos domingos havia feira livre na nossa rua. Ao final da feira, restava sujeira e cheiro de peixe (…) Gostava de arrumar briga, mas não brigava. Criava o “fuzuê” e admirava, à distância, a briga dos meninos. Não pensava muito em ética naqueles tempos”. Os relatos -embora romance- pipocam como crônicas; nota-se o apego do autor para esse formato narrativo. Andar no minhocão comtemplando o panorama, se encantando, descobrindo as mensagens que, quando passamos de carro, não temos tempo de refletir: eu sabia eu você existia. Conquista uma espingarda de chumbinho, fazendo um pacto de uso com extremo cuidado e responsabilidade. A lembrança desse pacto de honra da infância lhe acompanha e serve de modelo durante toda a  vida.

A contemplação da realidade quotidiana, de São Paulo em suas inúmeras vertentes, do modo de ser brasileiro, levou-me até uma lembrança de outro amigo, médico e bombeiro, que trabalha em Barcelona. Diz que faz questão de continuar sendo bombeiro mesmo após concluir a graduação em medicina porque é o que lhe mantem o tom humano, algo que na academia se perde: avançam as técnicas, e o ser humano desaparece esquecido. Contou-me que após subir até a janela do sétimo andar para resgatar uma idosa que tinha quebrado o fêmur, o professor de ortopedia somente se interessou por saber qual é o parafuso que colocaria na intervenção. Nada da velha, nem da janela, nem da aventura vital. Sorrindo me disse numa ocasião: “Tem gente aqui na faculdade que guarda dinheiro para visitar o Taj Mahal….e nunca entrou na Sagrada Família, de Gaudí, ai na esquina”.

Músicas, canções e poemas entrelaçam-se capilarmente no relato. Não desviam o curso, parece que até o facilitam, são como um by-pass que faz fluir a narrativa embrulhada em emoções: “Sentia-me assim -um caçador de mim. Doce, mas feroz; manso, mas atroz. Tinha sonhos, desejos e muita determinação. Estava repleto de emoções, faltavam amizade e amor”. E tudo salpicado desse humor desenfadado, tão nosso, tão verde-amarelo:  “Conheci Jesus no ônibus circular da USP. Convém explicar. Esse Jesus, académico da faculdade de medicina, era bastante semelhante à ideia que temos do outro -cabelos longos, barba, magrinho-, mas ele era moreno (….) Descobri que não sabia nada do Brasil daqueles anos 70. Ignorava que estávamos numa desastrosa ditadura militar. Estavam discutindo a luta armada. Que luta? Armada ainda? Um choque que se transformou em indignação. Como podia esta alheio a tudo aquilo?

Seguem-se os amigos que o Claudio vai conseguindo. Claudio relata, mas é Ary quem no fundo conta sua vida (impossível eliminar este viés quando conheces o escritor): “Rodolfo, um dos mauricinhos da turma. Tinha acesso a luxos que me impressionavam, mas não me causavam inveja. Ao contrário sentia que, em certo sentido, eu era mais rico que ele (…) Nossas famílias eram muito diferentes. A minha de imigrantes italianos, batalhadores, simples, sem muitos recursos financeiros, mas com viés para a felicidade. Felicidade simples. Dessas de frango assado com farofa das padarias aos domingos, da massa da mama, das festas, das cançonetas napolitanas…. A dele era mais complicadinha, daquelas tradicionais paulistanas, com nomes enorme. Aparentemente eram felizes e muito educados, mas, na prática, nem tanto. Não havia muita felicidade por lá, nem das simples, nem das elaboradas”

Claudio e as mulheres -outro tema que nos é familiar pelo livro anterior (do Ary, não do Claudio) sobre os Anjos Suspeitos, no qual fui convocado para escrever o posfácio. Aparece a moça do elevador. “Tomamos caipirinha, comemos arroz, picadinho de file, farofa e ovo frito Foi muito bom. Vou te levar ao terraço Itália e torcer para o elevador quebrar na saída”. Dei risada, porque veio a mente, em arco voltaico, aquele filme delicioso de Billy Wilder, Se o meu apartamento falasse, onde um Jack Lemon distraidamente sublime, encandila-se pela ascensorista, Shirley McLaine encantadora como nunca. Esse é o agradável risco da paixão pelo cinema: os amigos contam histórias -da vida- e você é transportado para as telas com os clássicos”.

O sucesso profissional, as carências, a construção serena de amizades: “Eu não tinha amigos nessa fase. Depois que dei certo na vida profissional, complicou. Há um viés que dificulta vínculos de amizade. Sou o chefe de todos com os quais convivo. Eles são educados, sorridentes, simpáticos. Não há contestação. Acham que estou sempre certo, até quando eu mesmo não tenho certeza disso (…)Para mim, tem sido uma experiencia peculiar conviver com pessoas com princípios ideológicos distintos dos meus. Certamente, para eles também. Amigos dos bons podem ter opiniões divergentes. Discutem, brigam e. às vezes, até se xingam, mas são amigos verdadeiros. Essa parece ser uma das características da amizade sincera. Respeitam-se as divergências, compartilham-se prazeres, afinidades e afeto”.

No último terço do livro, o Claudio migra para reflexões filosóficas, muito bem sustentadas nessa altura pelo andar do argumento do romance. Cita S. Paulo, no conhecido trecho sobre a caridade: O amor é paciente, é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procuras seus interesses, não se irá facilmente, não guarda rancor”. E, a seguir, remete-se aos gregos e as formas de amor: O Eros, amor efêmero que causa prazer; o Philos, o amor de amizade ao próximo; e chega ao Ágape, amor divino que também se manifesta no amor entre os homens no máximo grau. Como ir de um a outro é o dilema de Claudio-Ary, e, obviamente, também do leitor que sente o Touche.

Novamente o cinema veio no meu auxílio. Jack Nicholson, na porta da aposentadoria, que se pergunta em As Confissões de Schmidt “O que eu fiz com a minha vida? Onde fiz a diferença?”. É o que o filósofo deste terço final do livro também se pergunta: “Me sentia um pobre menino rico. Pobre no quesito afeto, frágil como um menino. Mas era rico, conseguia tudo que o dinheiro pode comprar. Apenas isso, um pobre menino rico. Razão e emoção me instigavam e castigavam”. E esclarece luminosamente: “Não são simplesmente lamúrias. São reflexões de um amadurecido sensato que vislumbra o apodrecimento. O termo é forte. Cabe bem no reino vegetal. Para os animais, sobretudo os racionais, soa melhor envelhecimento (…) Eu estava coisificado na minha rotina de vida e de trabalho. A solidão me humanizou, me despertou para a vida. Para a vida da pessoa física. A pessoa jurídica passou a ser secundária”.

Fecho o livro, sorrindo e pensando. E agradecendo, porque nessa altura da vida -vamos ficar com envelhecimento….melhor que apodrecer aos poucos – é ótimo comprovar que vamos de braço dado com amigos que refletem e olham com esperança, para o passado e para o futuro. O mesmo que fez Schimdt nas suas confissões: adotou virtualmente uma criança na Africa, para ter a quem escrever, para lhe contar a sua vida. Escrever é sempre um modo de nos entendermos. Quando quis escrever o livro -confessa nosso autor- descobre que há cursos para escrever, e variedades sobre o mesmo tema. Mas não se interessou, porque queria fazer algo intuitivo, menos planejado. Queria desabafar, escrever pensamentos, reflexões, sentimentos e deixar as coisas fluírem sem regras predeterminadas. O mundo rápido, on time, que nos cerca, distrai-nos sim da leitura -cada vez menos leem com paciência- mas, coloca-nos a anos luz da escritura. Dai que poucos consigam se entender e, obviamente, sem capacidade de entender os outros. Obrigado Ary, por nos lembrar que somos capazes de escrever, de nos entender. Também pensamos nisso na passada Noite dos Escritores. Haverá outras com certeza. E com um chamado aos escritores ocultos da nossa querida turma, Fundidos 64, fazerem ato de presença. Uma convocação amável e direta: escreve o que levas dentro, e verás um mundo novo, um mundo melhor. Essa é a condição para avançar em idade com classe, otimismo, sem perder elegância.

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