A literatura como ferramenta de formação, de criação de uma cultura humanista.

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I – Alguns breves apontamentos.

O aprendizado do homem não advém única e exclusivamente da ciência, embora esta tenha o seu peso e a sua importância.

Sem dúvida alguma que o conhecimento organizado, sistematizado, e didaticamente exposto, permite uma maximização do saber.

No entanto, não podemos deixar de considerar que as artes, de uma forma geral, e a literatura, em particular, constituem ferramentas que nos permitem assumir concreta e pessoalmente valores que a ciência nem sempre consegue eficientemente transmitir e muito menos infundir. Ela possibilita uma personalização ou encarnação do que é ensinado.

Qual a importância do humanismo?

A educação convencional não tem conseguido fixar valores nas pessoas. Mesmo aquelas das quais esperamos uma atitude ética nem sempre correspondem. Há uma aprendizagem técnica, sabe-se o que é, mas não se incorporam, não se encarnam como próprios tais valores.

Não há mais tempo e espaço para um boa leitura. Há uma proliferação de informações na internet, manuais técnicos, apostilas de concursos, informações que devem servir para subir degraus, que nos levem a ganhar dinheiro rápido, reflexo do momento em que vivemos: homo-faber.

Há, por conseguinte, uma escassez de humanistas. Os resultados são desastrosos. Juizes e Administradores de empresas que não conseguem enxergar pessoas por trás dos processos. As leis que deixam de ser instrumentos a serviço da humanidade e passam a escravizar o homem. Manter o sistema tornou-se mais importante, ainda que para isto o homem tenha que sacrificar-se excessivamente, suportando um peso brutal de carga tributária e de serviços de má qualidade.

Muitos reconhecem a importância da filosofia, da ética, da literatura e da religião, mas elas se mostram, nos manuais ou nos ritos, pouco atrativas, talvez até para muitos, enfadonha.

Se não tivermos uma cultura humanista – no sentido de procurar conhecer a fundo o ser humano, com suas qualidades e defeitos – provavelmente não saberemos transmitir às pessoas que amamos – filhos, amigos, parentes, clientes – os valores e uma formação capaz de faze-los aceitar como próprios os conceitos ensinados.

Vejamos o que disse José Luiz L. Aranguren (in Ética, Revista do Ocidente):

” (…) Não, a moral não é enfadonha, muito pelo contrário. A moral, quer dizer, o sentido da vida, é o mais apaixonante no que o homem pode pensar. A ética sim costuma ser enfadonha. (…) Me parece que a solução está na atenção à realidade, vale dizer, na experiência, na vida, na história, na religião, enfim, na literatura como expressão de tudo isto. (…) … de tudo isto e não de abstrações tem que alimentar-se a ética. Creio, portanto, que ao bom professor de ética (e a todos nós que queremos transmitir valores) é imprescindível um profundo conhecimento da história, da moral e das atitudes morais vivas. Ora, onde estas se revelam é precisamente na literatura. O recurso à boa literatura, além de colocar o aluno em contato com as formas reais e vigentes da vida moral, empresta ao ensinamento uma força plástica incomparável e consequentemente, uma captação do interesse do aluno. Naturalmente, e como dissemos antes, este método de ensino não deve sacrificar o rigor à amenidade, pelo qual as “figuras” literárias só quando possam ser fonte de autêntico conhecimento moral devem ser incorporadas às lições. … este meio auxiliar de ensino da ética não é de fácil emprego. É preciso conhecer profundamente a literatura – sobretudo a contemporânea – e ser um bom crítico literário, qualidades que não se encontram com tanta frequência.”

As artes nos permitem fazer associações de grande valia, de motivar, de arrastar.

Os sentimentos autênticos de determinados personagens valem mais do que inúmeras aulas sobre determinado tema. O que não dizer desta citação de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito) reproduzida por um Juiz humanista numa sentença rara:

” Existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo: porém, se é verdadeiro artista,
não se limita a uma reprodução pálida e servil; dá vida ao papel, encarna de modo particular o personagem, imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptíveis; e de tudo faz ressaltar aos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas, imprevistas.”

Também a nós cabe procurar ser este verdadeiro artista e intérprete, não nos limitando a uma visão pálida e distante das obras que lemos.

Quem de nós já não se sentiu instigado a ler determinada peça, livro, autor, por conta de uma citação inteligente?

II – Exemplo prático de diálogo com a obra literária.

As considerações feitas abaixo, foram elaboradas seguindo as recomendações de Alfonso Lopes Quintáz, in “Como aprender ética através da literatura”. A tradução, os pontos entre parenteses e os destaques em negrito são meus.

Aprenda de cor (de memória) um determinado poema (ou texto literário) ou apenas um fragmento dele. Uma vez apreendido, repita-o uma vez e outra, com a intenção de dar a ele todo o seu alcance, a plenitude de seu sentido. Altere o ritmo, para conceder a cada palavra e a cada verso o seu valor sonoro, seu colorido, seu sentido de conjunto. Apague a luz, para ficar sozinho e ganhar intimidade com ele. Verás como, ao cabo de instantes, lhe parecerá que tu mesmo és o seu autor, porque vais modelando-o ao seu gosto, vais recriando-o em virtude de um voz interior que o dita. E na realidade, voltas mesmo a recriá-lo como se fosse a primeira vez. Não tens, obviamente, o mérito do autor, porém, corresponde-lhe o privilégio de dar vida ao poema e neste instante preciso, e sem a sua colaboração, o poema não existiria. As meras palavras sobre o papel não são um poema. O poema é esta força que o move interiormente a expressar uns pensamentos e sentimentos de uma determinada forma.”

Vou me servir de um poema de Cruz e Souza, um dos maiores poetas que o Brasil já teve,
catarinense, negro, de uma erudição sem igual (estudou na Europa, pois foi criado como filho pelos fazendeiros para quem seus pais trabalhavam. Aprendeu latim, grego e francês). Raros são os alunos que se interessam por sua obra, pois a abordagem feita nos colégios e cursinhos pré-vestibulares, tende a focá-lo como o representante maior do simbolismo no Brasil, mas com uma preocupação maior com a forma, com o estilo, do que com o conteúdo, o que cria o estigma de alguém sem graça. Cruz e Souza está muito além de uma simples categorização. Vamos conhecer e dialogar um pouco com sua obra? Espero que gostem.

SORRISO INTERIOR, de Cruz e Souza

O ser que é ser e que jamais vacila,

Nas guerras imortais entra sem susto,

Leva consigo este brasão augusto,

Do grande amor, da grande fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila,

Ele os vence sem ânsias e sem custo…

E fica sereno, num sorriso justo,

Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza,

Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,

Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…

E para ironizar as próprias dores,

Canta por entre as água do Dilúvio.

REFLEXÕES e INTUIÇÕES sobre o poema que, nos dizeres de Alceu Amoroso Lima, talvez seja o mais belo do idioma pátrio.

Por quê da expressão: o ser que é ser?
Por trás de chavões como “há doutores e doutores”, “há advogados e advogados”, “há médicos e médicos”, temos sempre a perspectiva da distinção entre pessoas que são na essência, porque estão presentes naquilo que fazem, são autênticos, compromissados com sua ciência e sua técnica, que refletem e por isto inovam, e dos que são apenas na aparência, na forma, na legalidade, na superficialidade. Daí a afirmação do “ser QUE É SER!”

Vivemos um processo de desvalorização das palavras, de banalização e esvaziamento de conteúdo, daí a confusão entre o doutor, que o é porque seus conhecimentos (adquiridos com grande esforço, forjado na reflexão) justificam o título, e aqueles que se tornam doutores, como num passe de mágica, apenas pela aparência, por estarem trajados de paletó e gravata ou vestidos com avental branco… A roupa não faz o advogado, nem o médico, muito menos o doutor.

Creio que Cruz e Souza, quando escreveu este poema – o ser que é ser – procurou elogiar alguém muito especial, único – alguém autêntico, verdadeiro, enfim um ser que É SER.

Este ser autêntico não vacila, aliás jamais vacila. Não está diante de incertezas e dúvidas (a dúvida, diz, é paralisante…) está certo e seguro, por isto, jamais vacila.

Não se põe diante de ninharias, que materialmente provocam grandes duelos, mas entra sem medo, nas guerras imortais, aquelas que valem a pena, que não comprometem apenas umas horas, alguns dias, mas toda a vida, toda a existência, e nelas, pasme: entra sem susto.

Aliás, impressiona ver alguém ingressar numa batalha monumental – que é o projeto de toda uma vida, sem medo e sem susto. Mas é explicável saber d´onde vem esta força. É que o ser que é ser, não leva no peito frases estereotipadas, leva consigo (no peito) um brasão augusto, do grande amor da grande fé tranqüila. Mas não é o amor sentimentalista, da paixão cega que o guia, o amor dos inícios, é o amor amadurecido pela experiência, pelo conhecimento, pela reflexão constante, por isto mesmo, sempre entusiasta. É um guerreiro do amor, em cujas veias corre o sangue da fé.

Os abismos carnais da triste argila, criados e nutridos na imaginação, acontecimentos do quotidiano da humanidade, que se convertem, na vida da maioria, em verdadeiras “tempestades em copo d´água”, ele os vence sem ânsias e sem custo. Pudera, o homem que olha para o horizonte, para a eternidade, doa-se no ar, transpõe os abismos humanos e carnais. E o faz com simplicidade, sem chamar (para si) a atenção, fica sereno, num sorriso justo, que não desanda para o escárnio mal humorado, nem foge da alegria que a inteligência lúdica pode propiciar. Caminha tranqüilo ante e entre as dificuldades, que não são poucas, enquanto tudo ao derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza, dão-lhe esta glória frente à natureza, dão-lhe a certeza que se batalha houvesse entre o espiritual e o profano, o segundo já não seria mais dono de si, submisso ao vencedor. Todo este esplendor, este largo eflúvio. As ondas interiores, criam um mar sem margens, de oportunidades de amar.

O ser que é ser, transforma tudo em flores, não porque o mundo seja feito apenas de flores, mas porque sabe fazer por elas uma opção inteligente, estética, poética, humana e divina.

E para ironizar as próprias dores, que também sente, afinal, não é um super-herói, alguém alheio às realidades terrenas, antes, é alguém de carne e osso, que prefere brincar com a(s) dor(es), mostrar que tal poder é limitado e pequeno, quando se pretende atacar para um coração confiante, sem pavor e sem medo.

Canta por entre as águas do dilúvio, anda sobre elas e não se deixa abater e afogar pelas dificuldades que enfrenta.

Laudo Artur- Advogado

E-mail: laudoarthur@uol.com.br

[1]     – A expressão “coração confiante” foi colocada aqui intencionalmente, com o propósito de remeter o leitor a outro poema igualmente belo de Cruz e Souza. Ei-lo:

 

O coração que sente vai sozinho,

Arrebatado, sem pavor, sem medo…

Leva dentro de si raro segredo

Que lhe serve de guia no Caminho.

 

Vai no alvoroço, no celeste vinho

Da luz, os bosques acordando cedo,

Quando de cada trêmulo arvoredo,

Parte o sonoro e matinal carinho.

 

E o Coração vai nobre e vai confiante,

Festivo como flâmula radiante,

Agitada bizarra pelos ventos…

 

Vai palpitando, ardente, emocionado,

O velho coração arrebatado,

Preso por loucos arrebatamentos!

 

 

 

 

 

 

 

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