G. K. Chesterton: “ O homem que foi Quinta Feira”. (Um pesadelo). 

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G. K. Chesterton: “ O homem que foi Quinta Feira”. (Um pesadelo). 

Círculo do Livro. São Paulo. 1973. 196 págs..

Ler Chesterton sempre traz surpresas. Foi esse o pensamento que veio à minha mente logo no início da nossa reunião mensal de pensadores na Tertúlia Literária. Surpresas porque, sendo o livro o mesmo, os comentários dos assistentes pareciam indicar terem lido livros diferentes. Como alguém apontou sabiamente, este é um livro que se pode ler em diferentes camadas, em planos diversos. Este -pensei- e muitos outros livros, não só do escritor inglês, mas da diversidade literária que temos à nossa disposição. Bem dizia Fernando Pessoa, que o que vemos não é o que vemos, mas o que somos.

Literatura infanto juvenil, disse alguém; uma novela de detectives, repleta de humor. Houve até quem deu risada sozinho, por conta da conhecida ironia do autor. “Estas mulheres modernas consentiam em regalar um homem com a inusitada cortesia jamais recebida por ele de uma mulher comum: a de escutá-lo enquanto está falando”. Ou este outro momento: “Uma praça que parece tão exótica, e nunca se saberá se é seu aspecto estrangeiro que seduz os estrangeiros ou se são os estrangeiros que lhe dão semelhante aspecto”.

Ironia e paradoxos, que é a praia de Chesterton, uma modalidade de disputa clássica entre os britânicos cultos. “Aquele rapaz de cabelos compridos e vermelhos e de feições impudentes não havia de ser necessariamente um poeta, mas era irrefutavelmente um poeta. Aquele cavalheiro idoso, de barba branca  enxovalhada e de chapéu também branco, não havia de ser obrigatoriamente um filósofo, mas, no mínimo, devia fornecer motivos à filosofia alheia. Aquele cavalheiro científico, calvo como um ovo, de pescoço pelado como o de uma ave, não fazia jus aos ares de cientista…..mas poderia, por acaso, ter descoberto um espécime biológico mais raro do que sua pessoa?”.

A leitura descontraída de alguns entrou em contraste -em amável paradoxo, emulando o autor em pauta- com a perspectiva metafórica que outros encontraram: uma fantasia parabólica da criação do mundo, inundado de simbologia religiosa. “Não sei de nenhum ofício em que a simples vontade seja prova de aptidão….Eu sei (disse o outro)- o dos mártires”. Sujeitos que estão “totalmente livres do medo aos perigos físicos, mas são exageradamente sensíveis ao cheiro dos danos espirituais”. E a dimensão transcendente colocada com simplicidade esmagadora: “Em que se baseia sua esperança? – Num homem que nunca vi -respondeu…..”

O pesadelo de Chesterton -subtítulo do livro- lida com anarquistas e policiais, conspirações e surpresas. “Teve de revoltar-se em nome de alguma coisa. Assim, revoltou-se em nome da única coisa que restava: o bom senso. Mas dentro dele corria boa parcela do sangue destes fanáticos, o que fazia com que seus protestos de fidelidade ao senso comum parecessem um pouco ferozes demais para serem sensatos”. Mistura-se um conselho de anarquistas com detetives singulares: “O detetive comum vai às cervejarias capturar ladrões; nós nos dirigimos aos serões artísticos para descobrir pessimistas”. Desmascarar o pessimista, mesmo que ostente outros nomes, aquilo que “os modernos chamam impressionismo, que é outro nome para o ceticismo definitivo, incapaz de justificar o universo”.

Personagens que não são o que parecem. Anarquistas que buscam a ordem, um grande chefe que impõe medo de costas, mas resulta amável e acolhedor quando se lhe encara de frente. E parece feliz, comunica a felicidade com o olhar, e até espalha bom humor. Algo muito próprio de Chesterton que gosta de pensar num Deus bem humorado que apreciando o espetáculo da aurora,  diz ao sol, um dia após o outro, bis, para que saia de novo, sendo esta repetição maior milagre do que deixar de aparecer num dia.

Pergunta-se o autor: Haveria alguma coisa que subsistisse fora das aparências? Nessa altura a nossa conversa tinha enveredado por caminhos sugestivos: quem são de fato os outros? Como julgamos as pessoas ou, mais arriscado ainda, as intenções alheias? E a máscara que usamos -e que os outros usam- que nos distrai da realidade, nos leva a avaliar as aparências, sem conhecer o fundo.  Alguém lembrou de um fato já relatado neste cenário: reparou num motoqueiro -desses que infernizam nosso quotidiano enquanto dirigimos tentando esquivar-nos das suas imprudências- que tinha encostado a moto no muro, tirado o capacete, e sorria enquanto falava no telefone. É um ser humano! -disse o observador agora presente. Quer dizer, não é uma classe, uma categoria apenas -um motoqueiro!- mas um ser humano. É preciso tirar o capacete, o dos outros, e o nosso, na convivência diária. Como nas padarias onde já se adverte logo na entrada: proibido entrar com capacete. Essa teria de ser a divisa que presidisse as relações humanas.

Os comentários -muitos e substanciais- desbordaram as expectativas de todos os assistentes. Imensa quantidade de conteúdo filosófico para um livro pequeno e singular. Já no final, alguém -tirando o próprio capacete- aventurou-se a confessar que tinha feito terapia anos atrás, hoje era o primeiro dia na tertúlia e nem tinha lido o livro, mas percebeu como se estivesse de volta aos cuidados terapêuticos. Fui obrigado a intervir: “Não, isto não é terapia propriamente dita, nem pode ser apresentado como tal. Isto é uma vivência coletiva onde é possível comprovar como as humanidades, a cultura, nos cura a todos!”.

É deste modo, lendo, comentando, escutando -não são poucos os que sem conseguir ler o livro, acodem para escutar e desfrutar- como se constrói a poesia no quotidiano. Chesterton o aponta no livro: “O maravilhoso, o raro, está em chegar à meta. O vulgar, o insípido, está em não atingi-la. É a boa marcha das coisas que é poética”. A poesia está no processo, nesses momentos que agora vivemos em conjunto. Não adianta relatar a experiência a outros, é preciso convoca-los para que vivam esta fenomenologia da leitura compartilhada. Experiência de pessoas comuns que como aponta o autor “nunca são loucas; sei disso, eu que sou uma pessoa comum”.

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