Fabrice Hadjadj: “La Fe de los Demonios”

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Fabrice Hadjadj: “La Fe de los Demonios”. Ed. NuevoInicio. Granada. 2009. 278 pgs.

capa do livro

     Adquiri este livro há algum tempo, durante uma das minhas viagens. Chamou-me a atenção o título. O livreiro, um velho amigo, confirmou tratar-se de uma obra de valor, impactante. “Algo diferente, mas muito bom”. A cinta promocional que abraçava o volume vinha assinada por um conhecido jornalista, entendido nestes temas e afirmava tratar-se do melhor livro de teologia popular (no original espanhol lia-se ‘teologia divulgativa’) que tinha lido nos últimos anos. Comprei-o e aguardei o momento certo para mergulhar nele.

     O momento chegou com as férias do final do ano. É, de fato, um livro diferente, às vezes chocante, que requer uma leitura pausada para assimilar os desafios que o autor propõe, e sintonizar com o seu raciocínio. Fabrice Hadjadj é um jovem professor de filosofia na França e que se apresenta como um judeu de nome árabe, convertido ao catolicismo em 1998. Tem pouco mais de 40 anos, casado com uma atriz, pai de uma família numerosa, autor de várias obras filosófico-teológicas com propostas de sabor revolucionário. Baste ver o título desta obra, e o subtítulo: o ateísmo superado.

     Mais do que um comentário –ainda estou às voltas com muitas das reflexões que surgiram no decorrer da leitura- o que anoto a seguir é uma tradução livre (da versão espanhola da obra), sintética, das muitas ideias que o autor coloca, permeadas com minhas próprias glosas. O problema do demônio –e as consequências para nós mortais- não é uma questão de fé. O demônio acredita em Deus e treme. O que lhe permite desfilar triunfante, arrecadando prosélitos para a sua causa –seguidores muitas vezes inconscientes- são outras atitudes mais subtis. O ateísmo, na forma dura e pura, é tema superado. O perigo mora em outros meandros que o ser humano percorre diariamente.

     O autor, que interage com público jovem, não é alheio ao contexto cultural que respiramos. Uma coisa é conhecimento e outra, muito diferente, é curiosidade, mal epidêmico. “O mundo nos estimula a ser curiosos, e temos tudo a um click do mouse, transformando-nos em Net Explorers dedicados a um enciclopedismo cheio de artigos interessantes, ora sobre concursos de animais, ora sobre os Legionários de Cristo. Deste modo podemos não formar parte nunca do essencial. Dispensamos sem remorsos todo saber que nos possa comprometer em corpo e alma. Essa procura é pura dispersão. Deslumbra-nos, mas não ilumina.”

     Os exemplos chocantes surgem para elucidar que a metodologia do demônio está muito distante do clássico ateísmo. Vejamos por exemplo este: “Tenho a impressão de que é preciso passar por todas as provas enviadas por Satã, pelos demônios e pelo inferno antes de conquistar a vitória definitiva….Sem dúvida, não sou o que se possa chamar um beato. Mas, no fundo de mim mesmo, sou um homem religioso; e creio que todo aquele que combata valentemente nesta terra, conforme às leis naturais que foram criadas por um deus, aquele que nunca capitula mas se repõe e segue adiante, esse não será abandonado pelo autor destas leis, mas obterá finalmente a benção da Providência. Assim tem acontecido com todos os grande espíritos desta terra”. Quem fala assim é Adolf Hitler (recolhido por Albert Speer, num discurso de 1944). A posteriori reparamos no voluntarismo, na soberba e na obstinação que se depreendem destas palavras….. Mas somente a posteriori.”

     Como se passa de anjo a demônio? A soberba e a inveja. A intolerância, o não suportar que homens cheios de misérias sejam elevados a condição quase divina. Não temos aqui uma interessante advertência de como nos consideramos melhores do que a média, com um curriculum razoável, comparado com essa multidão medíocre? É o falar popular que escutamos diariamente: não faço mal a ninguém, não fumo, não bebo, não uso drogas….Mas a realidade é que quem assim fala transparece inveja e soberba por todos os poros.

     Muito sugestivo o comentário que o autor anota sobre a parábola dos dois filhos que o pai manda para trabalhar no seu campo. O mais velho diz que não vai, e acaba indo; e o que mais novo diz que sim, senhor, mas não aparece. Comenta o autor: “O santo é quem diz que não, mas o transforma mediante o arrependimento num sim. O maligno é o que diz sim, mas esse sim disfarça um não, sem remorso algum”. No fundo é fazer as coisas como eu quero. Sim, senhor, estou indo. E deixa que eu vou fazer do meu jeito, vou imprimir o meu selo, o meu estilo. Convém-me. Já o outro entende que ir é aceitar uma vontade –e um estilo- que não é o seu, mas é onde está a felicidade.

     “A graça é um dom de amor gratuito. Não exige nada em troca, e justamente por isso é o mais difícil para quem pensa ser alguma coisa. Reclama de nós não fazer, mas deixar que Deus faça em nós. E nós respondemos não sendo obstáculos a esse amor livre e divino que ela suscita em nós. Mas o demônio não quer abandonar-se. Prefere ser um self-made-man. O imagino montando um curso de desenvolvimento pessoal, convertendo-se no coach dos winners, providenciando travesseiros a quem não tem onde apoiar a cabeça (Cristo) e praticando a eutanásia ao varão das dores (Cristo sofrendo).”

     Acode à minha mente o conhecido texto de Santo Agostinho, aqueles dois amores que fundaram duas cidades: o amor de Deus até o desprezo de si próprio a cidade celeste, e o amor de si próprio até o desprezo de Deus a terrena. Tudo é uma questão de onde se coloca o objeto do amor. Esclarecedor este texto: “Os que acreditam que o demônio desconhece a radicalidade do amor divino, cometem um erro, pois é justamente esse amor a causa da sua rebeldia. Deste modo, se convertem em brinquedos em suas mãos: nada lhe proporciona melhor acesso às suas sugestões, do que pensar que é mais estúpido do que nós. (…) Com o demônio não se trata de jogar para ver quem é mais forte, mas de reconhecer-se débil e amparar-se em Deus. Não se trata de ver quem é mais inteligente, mas de quem é capaz de amar mais. O demoníaco não é tanto querer o mal, mas querer o bem sem obedecer à fonte de todo bem, querer fazer o bem segundo a minha regra, com autossuficiência, numa caricatura da generosidade que coincide com o orgulho mais subtil”. E enquanto lia isto eu lembrava de Bernanos: “Odiar-se a si mesmo não é difícil; o realmente difícil é esquecer-se de si mesmo.”

     O bom humor e a ironia salpicam as páginas deste livro singular. “O que irrita ao demônio é a perda da criatura que se transforma em hóstia viva. Quer lutar contra isso. Prefere salvar-se disso no inferno. Deixa as pessoas viverem do jeito que dá, agradece os serviços a Deus como um profissional, igual que dispensamos a um bom funcionário de quem não precisamos mais. Mas…isto é intolerável, pensa o demônio, esse funcionário (Deus) continua do meu lado, quer me arrancar de mim mesmo! Por que não se contenta com um agradecimento cordial? Por que exige um amor inteiramente abandonado? Assim não dá”.

     “Os demônios conhecem todas as respostas concernentes à Doutrina, mas nada querem saber da aliança pessoal com Deus. São especialistas em reduzir a revelação a um moralismo ou a uma dogmática inerte. Tudo menos chegar ao ponto chave: o encontro com Cristo. Jesus não vem propor uma teoria perfeita, mas um encontro no nosso coração. A aliança com Deus exige esse desejo e essa intimidade pessoal com ele. Jesus poderia fazer baixar exércitos de anjos mais eficazes do que os melhores espertos em marketing operativo. Mas Ele não é um sedutor. Pode se forçar uma adesão intelectual; não se pode forçar um coração. Seu cristianismo se centra numa verdade abstrata e não na Verdade em pessoa. Realiza-se num saber e não num encontro. A verdade –dizia Kierkegaard- é uma pessoa e não um texto.” E surge nestes momentos a lembrança de Bento XVI, do teólogo Josef Ratzinger, quando afirma que a religião não é um conjunto de crenças ou de normas, mas o encontro com uma Pessoa, com Cristo. Um verdadeiro personalismo religioso.

     A fé dos demônios é subtil e apetitosa, tentadora, justamente por disfarçar-se com traços religiosos, místicos, até rígidos e intransigentes. “Não há um só dogma cuja exata verdade o demônio ignore. E isto o habilita para sugerir inúmeras heresias. Um bom gramático sabe como induzir a cometer todo tipo de faltas de ortografia, e um especialista em antivírus, sabe fabricar vírus implacáveis. A fé do diabo lhe permite sugerir-nos uma variedade indefinida de impiedades. Sabe como provocar desvios infinitesimais no homem que está convencido da sua superior retidão. Aproveita o combate à heresia para incitar outra no sentido contrário. E ainda conta com a sua melhor carta na manga: levar-nos a uma fidelidade tão estrita como a sua, isto é, desprovida de caridade.”

     A História está repleta de exemplos: as heresias, os desvios não são problema de cabeça, intelectual, mas de coração, de humildade, ou da carência da mesma. Já disse alguém que os erros teológicos, filosóficos, doutrinais são respostas equivocadas a problemas reais. O problema está ai, solicita uma resposta, mas a soberba é cega e perde-se o parâmetro de verdade, numa tentativa de responder a qualquer custo. Heresia, (hairésis em grego) é tomar partido. Escolher a parte da verdade que me convém, e deixar o resto; construir o meu próprio sistema. Mesmo com imensa boa vontade, mas sem escutar ninguém. (o que é muito típico do demônio). Um caminho trilhado inúmeras vezes, não só por grandes pensadores, mas pelos mortais comuns.

     O autor cita Lewis na conhecida obra “Cartas do demônio ao seu sobrinho”, quando sugere ao aprendiz de diabo que se empenhe em distrair o homem dos seus deveres elementares e o conduza para altos voos do espírito; que consiga fazer um exame de consciência de uma hora sem descobrir um só dos defeitos que são evidentes para qualquer um que more em baixo do mesmo teto, ou trabalhe no mesmo escritório. Quer dizer, a distração do que realmente importa. E também menciona Chesterton, quando fala das virtudes que enlouquecem convertendo-se em defeitos: “a justiça sem misericórdia, que se torna crueldade; a misericórdia sem justiça, que é laxismo; a humildade sem magnanimidade, que é preguiçosa modéstia, a magnanimidade sem humildade que é ativismo vaidoso….e finalmente, a verdade sem amor, que é a fé dos demônios , frente ao amor sem verdade, que é filantropia do diabo”

     A densidade teológica é permeada por exemplos e contrastes abruptos. “A fé se substitui por uma moda tingida de cristianismo. A fé dos demônios consiste em promover uma fé à medida da época, das necessidades e dos caprichos. O grande engano das nossas cristandades descristianizadas consiste em recuperar a compaixão e volta-la contra Cristo. Por exemplo, fazer abortar a Maria, afinal mãe solteira, de pai desconhecido. Mas cuidado também com os católicos tradicionais que lutam infatigavelmente contra o aborto e esquecem-se de anunciar a Graça que salva ao miserável (especialmente aquele que abortou), o que é celebrado no inferno”.

     O autor tem palavras singulares e carinhosas para os judeus, afinal o seu próprio povo, sua origem: “Os Judeus são sinal de irrupção da eternidade no mundo e no tempo. São o rastro da graça que sai do capricho de Deus. Por isso, até o final, serão escândalo para toda tentativa de naturalização da Historia. Isso explica porque os totalitarismos sempre se abatem especialmente sobre eles: não encaixam nos projetos humanos. Uma vez que o Verbo se encarnou, é preciso a presença de Israel? Não se rejeita o ventre que o gestou, nem se despreza o andaime que serviu para construir a obra. Nem os cristãos podem agir assim, nem os judeus podem se fechar em orgulho de raça, como se a sua eleição não fosse um dom de Deus. À globalização e a uniformidade –incitada por alguns- Deus resiste porque Deus não é propriedade dos cristãos”.

     E mais recados inseridos na modernidade, na comunicação virtual em tempo real. “Mais do que nunca, nestes tempos digitais de banda larga, é preciso insistir na permanente novidade que supõe a proximidade física na ordem espiritual. Não se trata de desprezar livros, jornais, multimídia, mas compreender que esses meios pesados, superiores quando se trata de vender mercadoria, são inferiores quando o que está em jogo é o testemunho da fé. Posso pregar a fé com propaganda massiva, em mundo visão. Mas é melhor pregar esse amor com proximidade corporal, porque a propaganda – eficaz na promoção de um slogan- resulta impotente para fazer com que alguém se encontre na presença de outro semelhante. Unicamente nossos braços limpos são apropriados para abraçar um irmão, unicamente nossas palmas nuas tem o poder de acariciar um rosto. É preciso que as nossas bocas abandonem os megafones para ser capazes de beijar”.

     A caridade é sempre o grande antídoto contra a subtileza e as variantes que se encerram na fé dos demônios. “Ao demônio não lhe incomoda reconhecer em Deus ao Criador; mas reconhece-lo como pai, isso de jeito nenhum. Especialmente depois da Encarnação, quando Deus se faz pai desses animais imundos que são os homens. Nada de participar dessa família, pensa o demônio”. E mais adiante acrescenta: “Nesse mandamento Ama a teu próximo, que desencadeou o ateísmo moderno, encontramos o demônio carregando as duas bandeiras: a dos que pretendem amar a Deus sem amar a seu irmão, e a dos que dizem amar os irmãos sem amar a Deus. De um lado, a teocracia inumana; do outro, o humanismo ateio”.

     Um par de citações clássicas de Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov, ilustram este importante ponto, pauta para reflexão: “Amo a humanidade, mas para surpresa minha, quanto mais amo a humanidade menos amo às pessoas em particular como indivíduos. Mais de uma vez sonhei com paixão servir a humanidade e talvez até teria subido ao calvário por meus semelhantes, embora não consigo viver com uma pessoa dois dias seguidos no mesmo quarto. Enquanto sinto que alguém está perto de mim, sua personalidade oprime meu amor próprio e estorva minha liberdade. Em vinte e quatro horas são capaz de implicar com a melhor pessoa: ou porque fica tempo demais sentado à mesa, ou porque está resfriado e espirra”. “Tenho que confessar-te algo: nunca pude compreender como se pode amar ao próximo. Creio, que ao próximo é a quem não se pode amar; ao menos, somente se pode amar a distância”

     Um livro para ler, reler, estudar, e refletir. Os desdobramentos são muitos. As convergências sempre apontam para a caridade como defesa e superação da soberba, que é a verdadeira bandeira do demônio, e não o simples ateísmo. Caridade que se articula com Deus e com os homens: “Assim, o rosto visível remete ao rosto oculto na sombra e o amor ao outro está assegurado no amor a esse Outro que me permite no somente reduzir o outro a uma ambição minha, mas também dirigi-lo a ele mesmo e dirigir seu caminho para um gozo supremo”. Caridade que permite compreender, conviver, perdoar sempre: “Para perdoar de verdade e em profundidade, sem usurpar uma postura divina, é preciso que reconheça que eu também sou pecador, e um pecador bastante pior do que aquele a quem eu perdoo; bem porque pequei depois de receber o perdão de Deus, bem porque por uma graça especial fui preservado.” Enfim, um livro diferente, sugestivo, desafiador, oportuno porque faz pensar. Nos dias de hoje, toda uma novidade.

As Curvas da Vida: Capitalizando sabedoria com o passar dos anos.

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     A estas alturas, depois do muito já comentado neste espaço, não é nenhum segredo a minha admiração por Clint Eastwood. Sou um fã do Clint; mas um fã com fundamento. Explico.
     Acompanhei, na minha adolescência e juventude, as caçadas implacáveis do Dirty Harry, armado com a Magnum 44. Cara de poucos amigos, insensível, machão formatado no melhor estilo americano- republicano: sem chance para os malvados, é preciso eliminá-los da face da terra. Um perfeito canastrão: bordoadas e físico atlético, triunfador com as mulheres que ousavam cruzar no seu caminho, que destroçava com um olhar de quem perdoa vidas ou, na melhor das hipóteses, as ignora. Não gostei; sentia até certa repulsa.
     Os anos passam, para o Clint e para mim. Os Imperdoáveis, filme duro e não dos mais digestivos, coloca Eastwood na direção, conquista um Oscar, e mostra que o durão da Califórnia pode até ter sentimentos. Sentimentos que se aventuram no romantismo em As Pontes de Madison – aquela encantadora versão caipira e bucólica de Casablanca-, sentimentos que se confundem diante da dor insuportável em Menina de Ouro, ou que se tingem de delicados traços femininos em A Troca. E com os sentimentos, o cumprimento do dever, da integridade, da honestidade e da missão. Missão em formato de guerra como As Cartas de Iwo Jima; ou na construção da paz em Invictus, ou na difícil guerra contra o próprio temperamento, na conquista de si próprio em Gran Torino. Sentimentos que também dão lugar a ensaios de transcendência em Hereafter.
     Evolução, coerência, maturidade, manter o foco. Esse é o fatorial que explica a minha admiração por Clint Eastwood. Em tempos, como os nossos, de mudança e de surpresas, onde a coerência brilha pela ausência e tantos sucumbem à tentação de negar a realidade da vida que se deteriora na base de cosméticos que a ninguém enganam; nesses tempos onde o “faz de conta, me engana que eu gosto” é lei comum, confesso que quem faz do seu amor pelo cinema um sincero reflexo da própria vida que se gasta, e se adapta às mudanças biológicas mantendo o ideal, supõe um atrativo irresistível.
      As Curvas da Vida é um mergulho antropológico, variação sobre o mesmo tema, brilhantemente encetado em Gran Torino. Envelhecer absorvendo as limitações que a idade impõe, com realismo. Sem fugas, nem maquiagens. Envelhecimento pautado pelas rugas que se contemplam diariamente no espelho, compassado pela artrose que patrulha os movimentos – todos eles, não nos enganemos-, e pelo deterioro do humor que se torna rabugento, suscetível, insuportável para os outros e para o próprio idoso.
     As Curvas da Vida é o título que com acerto traduz ao português o original: “Problemas com a curva”. Uma curva que é a da bola de baseball, lançada com efeito, dificílima de acertar. Clint é um olheiro caça talentos do baseball. Vive disso, é o melhor. Mas a vista lhe falha, limitação da idade. E agora? O outro fator da equação é Mickey (uma convincente Amy Adams), sua filha, órfã de mãe desde os seis anos, que cresceu com o pai, alimentada com baseball, rodeada de homens que bebem e falam palavrões. Agora uma advogada brilhante, perfil de executiva de talento, que entende de baseball tanto como o pai, pois foi essa a mamadeira que a nutriu. Esse é o contexto; o resto, somente vendo o filme.
     Como sempre, andei lendo as críticas que apareciam aqui e acolá, antes de ver o filme. Um hábito que talvez tenha que eliminar; traz mais problemas do que benefícios. Começas a ver o filme com os óculos que alguém te emprestou num comentário de esperto, até que reparas que sem óculos se vê muito melhor. Imagens turvas de óculos emprestados: Um filme sobre a terceira idade? Ou sobre o conflito de gerações, um pai que não se entende com a filha? Chavões simplificadores, óculos de camelô.
     “Olha quem fala – dirá o leitor. Você que fica dissecando os filmes sem pedir licença a ninguém, vem falar de óculos emprestados”. Está certo. Disseco os filmes, e disseco a minha alma junto com eles. Há duas coisas que, em consciência, procuro evitar neste espaço. Uma é contar o filme, narrar o argumento. Descobri que há quem evite ler meus comentários porque receia que lhe conte o final do filme. Precaução inútil; aliás, são muitos mais os que reclamam que acabo falando de tudo o que me dá na telha, sem sequer roçar o argumento. A segunda é catalogar o filme num chavão de prateleira: drama, comedia, romance, história real, ficção. O único que estes comentários pretendem é revelar a minha interação pessoal com o filme, as reflexões que me provoca, as surpresas que me descobre, e os ensinamentos para a minha própria vida. Reflexões em voz alta, mais nada. Se alguém quer pegar carona e dar a largada às suas próprias ponderações, será muito bem vindo. Longe de mim contar a história ou resumir o filme numa frase de efeito.
     A sabedoria de envelhecer sorrindo. Já utilizamos esta frase –emprestada de um autor moderno- para comentar neste espaço outros filmes que andam às voltas com os anos que passam inexoravelmente. E o pensamento surge novamente ao compasso dos fotogramas e no vai e vem das curvas da vida. É preciso aprender a adaptar-se às limitações, e não apenas ir tocando e fazer de conta que está tudo bem. Adaptação que implica um reconhecimento dos erros; dos presentes e, especialmente, dos passados que agora, contemplados com outra perspectiva, tem de ser sanados, purificados, para evitar que formem um quisto que degenera em tumor maligno e contamina de azedume todo o viver. Aceitar erros e limitações é o único antidoto possível contra a rabugice que, fatalmente, espreita e nos pega de jeito com o passar dos anos.
     A visão que se deteriora com a idade é uma bela metáfora das muitas outras limitações que vem de brinde conforme vamos completando anos. É uma perda gradativa que, na velhice, se revela completamente; mas não é repentina, acontece aos poucos. Saber reconhecê-la e adaptar-se, ano após ano, é construir a sabedoria que permite envelhecer sorrindo. Quem não treina durante a vida, na velhice passa muito pior, e faz passar mal aos outros. Daí que os ensinamentos do filme não são propriamente para a terceira idade, mas para os que querem preparar-se para chegar lá em forma.
     Cuidado com a tentação fácil de pensar: “Como são chatos os velhos. Isso não me vai acontecer a mim”. Tremendo engano. O tempo não perdoa, o desgaste chega para todos, mesmo para aqueles que, sendo jovens, consideram o assunto como preocupação que pode ser adiada. Vai acontecer com você, sim; e comigo, com todos. Quem não treina durante a vida, na velhice passa muito pior com as limitações. A limitação sempre vem; a diferença é o modo como se encara e se convive com ela, e se sintoniza com o que os jovens propõem que, sempre, desde tempos imemoriáveis, se enxerga como revolução.
     O cidadão sensato, no início da vida profissional, ocupa-se –sem chegar a preocupar-se, não está na idade para isso- com recolher a previdência, com vistas à aposentadoria. Complementa, quando pode, com recursos privados para garantir um mínimo de tranquilidade no final da vida. No vácuo das nossas reflexões vale pensar se uma provisão semelhante não seria necessária para envelhecer com um sorriso. É preciso preparar-se durante a vida, aceitar as correções, ouvir a opinião dos outros. Perde-se a visão nas curvas da vida; tentar ultrapassagens baseado na intuição pode ser fatal.
     É preciso confiar, escutar, ouvir o ponto de vista dos outros e, sobre tudo, o ponto de vista dos outros em relação a nós mesmos. Isto não é abrir mão da personalidade, nem delegar reponsabilidades atuando em função da Vox Populi. É simplesmente buscar ajuda nos conselhos de quem nos aprecia e dar facilidades para que nos digam as verdades, mesmo que doam. Para fazer isso não é preciso esperar a ser velho. Pode e deve se fazer com vinte, trinta ou com cinquenta anos. E quem não treinar nessas idades, certamente não aceitará a ajuda quando chegar aos oitenta. Humildade, essa é a grande questão de sempre. Desconfiar da própria opinião, que não é insegurança, mas a prudência de ouvir os conselhos, ponderá-los, para depois, bater o martelo.
     Preparar-se e capitalizar sabedoria para o futuro, para a velhice, é também descobrir o que quando jovem se pode aprender com os mais velhos, atitude que revela potencialidades ocultas das quais nem sequer se suspeitava. Amy aprende que além de ver as bolas é possível ouvi-las, escutar a sua trajetória e o impacto. Já disse alguém que somente se dá valor ao próprio pai depois dos 50 quando, com muita frequência, já não está entre nós. Boa sabedoria a de conseguir adiantar esse tempo, e desentocar o que aprendemos com nossos pais, e pôr para render esses talentos. Para isso é preciso comunicar-se, ouvir as historias de vida –mesmo as que conhecemos de cor- pois nelas se encerra esse tesouro do qual as nossas potencialidades fazem parte. Sem entocar-se, sem fechar o diálogo como solução standard.
     Nesse diálogo de gerações –construtivo e necessário- entende-se também que o tempo de cada um é diferente. Cada um tem o seu timing, o ritmo para entender e assimilar as coisas. Uma lembrança profissional. Sempre procuro advertir os jovens médicos que me rodeiam nos afazeres quotidianos que o consenso familiar é algo que não existe. Os médicos se reúnem numa junta médica e chegam num consenso. Mas na família, salvo honrosas exceções, esse consenso não existe: cada membro da família pensa de modo diferente, contempla as circunstâncias desde perspectiva variada, tem timing distinto para assimilar a realidade. Cabe ao médico facilitar a comunicação entre a própria família para que, sintonizados os timings, se chegue á melodia do consenso que realmente beneficiará o paciente.
     Capitalizar sabedoria ao longo da vida, num treino incansável, para adaptar-se às limitações que a idade impõe; saber sorrir, conviver, aprender. O tempo todo, a toda hora. E decidir, com essa sabedoria, sobre as prioridades e optar por aquilo que realmente vale a pena em cada momento.
     Essas e muitas outras reflexões despertou em mim Clint Eastwood, com o baseball e as bolas em curva, com efeito. Sem traumas, nem conflitos, nem complexos, nem lutas de gerações: apenas a vida, com as suas curvas, seus dilemas, que não tem porque acabar mal. Depende de cada um. Dos velhos em gastar-se com classe, dos jovens aprendendo a crescer. Tudo servido num filme delicioso, que deixa um agradável sabor de boca.

(Troubles with the curves) (2012). Diretor: Robert Lorenz. Atores: Clint Eastwood, Amy Adams, Justin Timberlake, John Goodman. 111 minutos. IMDB: http://www.imdb.com/title/tt2083383/

Maria Dueñas: “A Melhor História está por vir”

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Maria Dueñas: “A Melhor História está por vir”. Planeta do Brasil. 2012. 352 pgs.
capa do livro      Li de uma tacada o original que leva por título “Misión Olvido”. Sobre a capa, uma faixa promocional que aponta: “La mejor historia está por vivir”. Outro Best seller da autora de “O tempo entre costuras”. Pensei que não tinha sido traduzido, pois o livro é muito recente. Mas eis que encontro a tradução com o título que acima consta. Se já no título, muda-se o sentido –uma coisa são historias por vir, e outra, muito diferente, histórias por viver- permito-me suspeitar que a tradução não seja do mais fidedigno.

     Acabo de publicar o comentário em espanhol, amplo e em sintonia com a prosa e o estilo da autora, dentro das minhas limitações literárias. Por que, então, estas linhas? Imagino que o argumento do romance mantenha o interesse que o original apresenta. Somente por isso já vale a leitura. Mas, além de uma estória bem contada, o que Maria Dueñas sabe fazer maravilhosamente é a descrição de personagens, com prioridade absoluta ao mundo feminino, e o jogo com o tempo cronológico, num vai e volta, em deliciosa gangorra de lembranças. E tudo temperado com uma linguagem que também vai mudando de estilo: mais moderno, nas épocas onde descreve o final do século XX; um castelhano clássico para a Espanha dos anos 50, e até passagens que apontam matizes de sabor Cervantino, quando pontualmente regride até os anos 30.

     Ignoro como tudo isso está traduzido ao português. Visto o acontecido com o título, desconfio que essas encantadoras variações devam estar ausentes. Não são enfeite ou firula; fazem parte de essência narrativa da autora. Sempre é possível apreciar um quadro nos traços, no desenho, sendo daltónico, ou em versão branco e preto. Mas algo –ou muito- fica faltando. Se for um quadro impressionista, a lacuna será enorme.

     Vai aqui o meu conselho.Leia o comentário em espanhol e veja se consegue entender e desfrutar com alguns parágrafos textuais que lá se recolhem. Se tiver sucesso, quase recomendaria que se aventurasse com a versão original. Se resultar árduo, opte pela tradução. A história em si merece a leitura e certamente lhe cativará imediatamente. E depois, por favor, de retorno neste espaço para que outros leitores possam fazer sua escolha. Seja como for, o que é inegável é que Maria Dueñas apresenta uma prosa fascinante que merece cada minuto que se lhe dedica. Em espanhol ou em português, jamais é perda de tempo. Agrega valor, e não pequeno.

Ismail Kadaré: “O Acidente”

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Ismail Kadaré: “O Acidente”. Companhia das Letras. São Paulo. 2008. 229 pgs.

     Tinha ouvido falar deste autor, queria ler uma obra sua. Caiu esta em minhas mãos e levei um tombo. Como o acidente que é descrito no primeiro capitulo. Algo raro, um taxi a caminho do aeroporto de Viena, que se acidenta, e os dois ocupantes –um homem e uma mulher, de nacionalidade albanesa- , saem voando pela porta e morrem. O motorista do taxi, que sobrevive, diz que se distraiu na direção porque ao olhar no retrovisor viu que os passageiros estavam tentando se beijar. De fato, tremendas consequências para um fato banal.

     O resto do livro se apresenta como a investigação deste estranho acidente. Mas na verdade é um mergulho na vida sórdida das duas personagens, nas suas fantasias e realidades sexuais, nas brigas continuas que impedem separar-se, encontrando-se uma vez e outra em diferentes pontos da Europa, para compartilhar hotel, cama, e novas brigas. Pensamento de Rovena St, a personagem feminina: “Junto com a melancolia, não a largava a ideia de que Besford Y., em quaisquer circunstâncias, era um perigo. Com ele era difícil; sem ele era impossível”

     Tudo isto, fora a componente onírica –nunca se sabe o que acontece e o que é sonhado ou simplesmente desejado- além das variantes nas aventuras sexuais com figurantes esporádicos, de outro ou do mesmo sexo, imagino que para criar maior extravagância. Amantes de ocasião para gerar ciúmes no amante oficial com que se briga o tempo todo. Uma decepção total. Teremos de esperar por outra obra de Kadaré –consta-me que há muitas e dizem que boas- para ensaiar de novo. Mas preciso de tempo para me repor deste choque que resumo como absoluta perda de tempo.

As Neves do Kilimandjaro: Humanismo em Tempos de Crise

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(Les Neiges du Kilimandjaro). 2011. Diretor: Robert Guédiguian.   Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilyne Canto, 104 minutos.  

     Foi um amigo que mora no Canadá quem, há meses, recomendou-me este filme. “Dá uma olhada. Eu o intitularia ‘humanismo em tempo de crise’. Acho que gostarás”. Segui o conselho, vi o filme. Gostei. Busquei o tal humanismo na crise. Penso que até o encontrei. Mas engavetei os possíveis comentários; as pendências eram muitas no último trimestre do ano. Depois vejo isso, pensei.

     Entre as pendências, figuravam um par de conferências num congresso que aconteceu numa cidade onde moram outros amigos. Um dos dias passei por lá para jantar. No final me anunciaram: vamos ver um filme, queres ficar? Naturalmente, o filme era este mesmo. Estas Neves me perseguem – pensei logo de cara. Tracei o plano: assistir a largada e depois pegar um taxi de volta para o meu hotel. Mas não consegui sair. O humanismo em tempo de crise martelava minha memória. Fiquei até o final e voltei de carona. Os comentários –no fundo da imaginária gaveta- revolveram-se, mas as pendências ainda pesavam. Tranquei a gaveta com chave. Mais para frente, agora não tenho tempo.

Leia mais

Mercedes Salisachs. “El Cuadro”.

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

LIbroslibres. 94 págs. Madrid. 2011.

Lo que son las coincidencias. Si es que de coincidencia se trata. Acababa de publicar mi comentario sobre la última película de Clint Eastwood Hereafter, cuando cae en mis manos el último libro de Mercedes Salisachs, que lleva fecha de febrero de 2011. Apenas había confesado mi admiración creciente por Clint, cuando me veo obligado a hacer lo mismo con  esta escritora que continúa sorprendiéndome ¡con sus 94 años! Y si Clint filma un ensayo de transcendencia, Salisachs lo esculpe con su prosa magnífica, en esta miniatura de libro -94 páginas, como sus años- que tiene de encantador lo que tiene de corto.  Y puestos a establecer puentes entre los geniales artistas longevos, Clint rescata a Marie de un Tsunami para hacerla protagonista de su ensayo, y Mercedes salva a Elena de un  huracán que destroza su vida, en la que nada sobra a no ser un cuadro, el del título.Leia mais

Willa Cather: “Minha Ántonia”

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Willa Cather: “Minha Ántonia”. Codex. São Paulo. 2003. 327 pgs.

     Este livro estava na minha lista de pendências há algum tempo. Mas outros sempre passavam à frente. Finalmente, a recomendação de um amigo combinado com alguma viagem, foi o empurrão para colocá-lo na pole position.  Não me lembro da viagem, nem do motivo; ultimamente tenho tirado o atraso das leituras como paliativo de esperas em aeroportos e de check-in pouco afortunados, que te colocam em espaços apertados, nada anatómicos, frequentemente atrás de alguém que utiliza ao máximo as possibilidades reclináveis da sua poltrona. Ao invés de reclamar, melhor partir para a ignorância; quer dizer, para a literatura que anestesia o corpo, desperta a mente, e proporciona outra viagem –muito mais confortável- ao sabor da imaginação.

Devo confessar que a maioria dos escritores americanos da primeira metade do século XX, não são santos da minha devoção. Sem tirar nada ao mérito dos quadros de costumes, amor pela terra, agruras da grande depressão que se imprime nas personagens, e a clareza com que descrevem as paixões – misérias e grandezas do ser humano. Penso que a minha pouca afeição muito tem a ver com as traduções que nos chegam; por melhores que sejam, sempre desbotam o original. As poucas vezes que me aventurei a ler em português os clássicos espanhóis do século XVI –Cervantes, Calderón, Lope de Vega- reparei que a tradução da o recado, mas lhe falta a música que, na infância, aprendi a contemplar.  Valha esta explicação para advertir que, mesmo gostando, My Ántonia, não me entusiasmou. Mas sendo considerado como um dos grandes romances americanos do século XX merece um comentário.

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Kenzaburo Oe: “Uma questão pessoal”

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Kenzaburo Oe: “Uma questão pessoal”. Companhia das Letras. São Paulo. 2003. 222 pgs.

     Conhecer a história pessoal do Kenzaburo Oe, – consagrado escritor japonês e Premio Nobel de Literatura (1994) -, e do Hikari, seu filho deficiente que, uma vez e outra, faz ato de presença nas suas obras, foi o maior incentivo para ler este romance. Incentivo e quase piloto automático, pois em várias ocasiões estive a ponto de fechar o livro irritado. As descrições são perfeitas, e não apenas no exterior, mas atingem a intimidade das personagens e mostram com detalhe suas misérias e podridões de forma mais do que molesta. Foi uma surpresa, pois não sintoniza com o sentido de pudor elegante que os ocidentais atribuímos aos orientais. Mas parece que Oe já andou escrevendo muito a respeito desses meandros depravados, onde sexo, bebida e desgraças nos fazem chafurdar na devassidão humana.

     Bird, o protagonista, é apresentado ao seu filho primogênito na maternidade. Uma criança com hérnia cerebral, disforme, um monstro. À desolação da notícia, segue-se a fuga da realidade, em profundo mergulho nas baixezas humanas, inundadas de uísque e sexo desregrado. A tristeza e a rejeição cristalizam no desejo de eliminar aquele ser que será uma carga permanente, um entrave para uma vida que, de per si, já é vazia. A necessidade de lhe dar um nome, para efeitos de registro no hospital onde se espera que morra logo, é um verdadeiro dilema: “Um nome, pensou Bird. Estava confuso, como quando refletira sobre o assunto no hospital onde a mulher se encontrava internada. Dar um nome humano ao monstro faz com que ele se transforme em gente e passe a reivindicar direitos. A morte dessa criança enquanto anônima é uma coisa e com um nome é outra; sua existência torna-se mais real”.

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Oscar Wilde: “O Retrato de Dorian Gray”

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Oscar Wilde: “O Retrato de Dorian Gray”. Clássicos Abril. São Paulo. 1981. 283 pgs.

     Os fóruns de humanismo em que ando envolvido têm sido extremamente úteis. Não posso afirmar isso por conta dos outros assistentes – cabe a cada um apreciar o valor agregado, como se diz hoje-, mas é justo fazê-lo em relação a mim mesmo. Embora na condição de coordenador, na ausência de esta oportunidade, dificilmente teria voltado sobre livros já conhecidos, ou refletido cuidadosamente ao compasso de leitura e, certamente, não teria escrito sobre eles. Escrever torna claro para nós mesmos aquilo que aprendemos; é como liquido que revela, pacientemente, os contornos das ideias que a leitura deixa no fundo da alma. Revela e fixa, esculpe-as de algum modo, permite a sua digestão, e passam a fazer parte de nós mesmos.

     Está ai o grande ensinamento destes eventos humanistas: escrever sobre o que lemos, dar vida às nossas reflexões como catalisador de aprendizado. Quem sabe este é o motivo das grandes lacunas culturais que contemplamos hoje: há possibilidades nunca antes sonhadas de possuir, on-line, verdadeiras bibliotecas de clássicos; as pessoas passam o dia lendo – e-mails, mensagens, links, comentários nas redes sociais, até livros no tablet– mas dificilmente param para refletir, e nunca o fazem para escrever. Resultado: água escorrendo sobre as rochas, pouco sobra, ignorância fantasiada de informação que de nada aproveita. Lembra aquela queixa clássica: onde está o conhecimento que perdemos na informação? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Provavelmente no jejum de reflexão, na ausência da escrever. Muita da sabedoria das avós certamente arrancava de aqueles diários feitos com caligrafia encantadora, perfumes e lágrimas.

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Alfred Sonnenfeld: “Liderazgo Ético”

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Alfred Sonnenfeld: “Liderazgo Ético”. Encuentro. Madrid. 2011. 233 pgs.

     Livros sobre liderança são quase epidemia nas prateleiras. A qualidade do conteúdo já requer um exame mais minucioso. Se à liderança, se junta a ética –aquela variante global da qual todos falam, e poucos vivem- o resultado é, no mínimo, convidativo. Apesar de todo o marketing que o título encerra, não é este livro um produto de consumo. É mais: pode ser um verdadeiro problema, pois a proposta é mergulhar na intimidade do líder, ou melhor, daquele que, mesmo apesar dele, sente-se chamado a liderar, a conduzir outros, porque a vida o colocou nessas circunstâncias. Não contém normas, nem dicas, nem guidelines, nem check-list para tornar efetivos os desejos de liderança. É, se cabe, um roteiro de exame de consciência para quem se encontra nessas circunstâncias.

     Conhecimento próprio, descoberta da missão, curriculum baseado em virtudes, tornar-se bom para poder fazer o bem, são elementos da análise fatorial que o autor proporciona sobre o corpo da ética e da liderança. “Tudo começa por conhecer-se bem, algo essencial. Quem não leva surpresas quando ouve a própria voz gravada ou contempla uma fotografia tirada inadvertidamente, onde aparecemos de lado, ou de costas? Se neste nível físico surge a surpresa, quanto mais em níveis mais profundos da personalidade”.

     Conhecer-se, saber o que queremos e o que, de fato, fazemos. “Um dos mistérios mais desconcertantes da psicologia humana é que o fato de ter um ideal de vida excelente não é suficiente para vivê-lo, para colocá-lo em prática. Quantas empresas proclamam seus valores e missão e depois aquilo não acontece. Não basta com proporem-se altos ideais, mesmo com grande convicção: é preciso chegar aos fatos.” Lendo isto lembrei as desistências nos regimes de emagrecimento: “Eu já tentei mil vezes, mas não consigo”. Na verdade, a pessoa decidiu mil vezes tentar emagrecer, mas a decisão nunca chegou a atingir a contagem de calorias nas refeições imediatas. No fundo, a desistência foi da decisão, e não da estratégia, porque esta nunca chegou a ocorrer.

     A liderança ética não é processo apenas racional, mas implica liderança afetiva. “Precisamos dos sentimentos para captar emotivamente a beleza, o sublime. A pretensão de ser estritamente realistas, e afogar os sentimentos como se fossem evasões subjetivas de caráter hedonista supõe um ataque frontal ao mundo dos valores”. Para guiar pessoas é preciso chegar ao coração – são os corações as verdadeiras cabeças de ponte entre duas pessoas, dizia V. Frankl- e não apenas à cabeça, nem ao bolso, aos resultados financeiros.  “Se queres construir um barco não comeces buscando madeira, cortando tábuas, distribuindo o trabalho. Evoca primeiro nos homens e mulheres o desejo do mar livre e infinito”. Esta cita de Saint Exupéry é uma das muitas referências clássicas com que o autor ilustra suas teses.

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