A minha simpatia por Alfred Hitchcock: Reflexões sobre o mago do suspense

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Por Pedro Acosta Baldin

Comecei a gostar do Hitchcock quando eu tinha uns 10 anos, foi minha primeira vez que soube que existia. Meu pai alugou um filme dele para a gente assistir, eu me apaixonei tanto pelo seu jeito de fazer filmes, pelo seu modo de envolvimento do seu público, gostei muito do seu suspense e da raiva que me deixou quando eu não descobri se o mocinho era mau ou não em Suspeita. Logo pensei: quero saber um pouco mais de sua vida e de seus outros filmes, e comecei a fazer um TCC sobre ele. Aqui vai um resumo do meu trabalho.

Alfred Hitchcock foi um cineasta anglo-americano, considerado o mestre dos filmes de suspense, sendo um dos mais conhecidos e populares realizadores de todos os tempos. O suspense de Hitchcock distinguia-se do elemento surpresa mais característico do cinema, o horror. O suspense é acentuado pelo uso de música forte e dos efeitos de luz. Nos filmes de Hitchcock, a ansiedade aumenta pouco a pouco enquanto, o personagem não sabe do perigo que ira passar ao longo do filme. São apresentados dados para o telespectador que o personagem do filme não sabe, ocasionando uma tensão no espectador em saber o que acontecerá quando o personagem venha a descobrir. Por exemplo, em Psicose, somente o espectador ver a porta se entreabrir, esperando algo acontecer enquanto o detetive sobe a escada. Esse tipo de cena é comum em vários filmes de Hitchcock.

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Salvador de Madariaga: “Bosquejo de Europa”

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Salvador de Madariaga: “Bosquejo de Europa” Ediciones Encuentro. Madrid (2010) 260 págs.

     Este Bosquejo de Europa apresenta-se escrito em espanhol, por um historiador e humanista que, mesmo vivendo longo tempo fora de Espanha e dominando fluentemente várias línguas, era espanhol até a medula. Um esboço, mas também um ensaio –muitos, na verdade- a modo de variações sobre o mesmo tema, que divertem , ilustram e educam, enquanto o autor se diverte. O exemplo dos grandes músicos nas suas variedades temáticas é a metáfora que mais se adequa a esta obra que é, na verdade, um divertimento. Salvador de Madariaga, conhecido do público brasileiro pela sua imprescindível biografia de Hernan Cortés, nos oferece aqui suas reflexões sobre os povos europeus, distintos entre si, com similaridades e oposições, que combinam maravilhosamente, para brindar-nos um mosaico repleto de cultura sobre os costumes e temperamentos que povoam o antigo continente.

     O autor compõe este esboço partindo do seu vasto conhecimento do tema, o ilustra com vivências próprias e o complementa com uma profunda cultura da historia e da geografia. Fala-nos das tensões europeias –das diferenças- e também das complementariedades, que denomina ressonâncias. Um dos traços mais atraentes da obra são as conclusões sociológicas que Madariaga tira das contraposições idiomáticas, uma espécie de antropologia da linguagem. Assim, por exemplo, comenta que os ingleses utilizam palavras de origem germânica para nomear os animais domésticos vivos – swine, ox, sheep- enquanto utilizam termos de origem francesa para referir-se à carne desses animais: pork, beef, mutton, veal. Isto é assim –afirma- porque eram os saxões o que cuidavam dos animais, enquanto os franceses conquistadores se banqueteavam com a carne.

     Suas análises são audaciosas, como quando atribui cada um dos principais elementos a um país determinado (França – Ar, Inglaterra – Terra, Espanha – fogo, Alemanha – Agua) ou quando sugere que os irlandeses são espanhóis que pegaram um bonde errado e foram para ao norte da Inglaterra. Reconhece que em muitas destas apreciações há um exagero, “porque leva um aspecto relativo até a borda do absoluto para melhor destaca-lo”. E possível concordar ou não com as opiniões do autor, mas é impossível ficar indiferente e, sobretudo, não reconhecer que saímos enriquecidos deste passeio cultural por Europa, da mão de um excelente cicerone.

     Eis um livro para ler várias vezes. A primeira –como foi o meu caso- para ter uma noção do volume de conceitos e realidades, muitos deles óbvios, nos quais nunca tinha parado para pensar e para relacioná-los entre si. Certamente haverá outras leituras, e até se pode converter num livro de consulta, principalmente antes de iniciar uma viagem à Europa. De modo especial, se a turnê consiste num desses pacotes “fast food” das agências de turismo, onde se visita muita coisa, não se presta atenção no que é relevante, e volta-se cansado e carregado de fotos que logo caem no esquecimento. Nestes casos, o livro de Madariaga funcionará como um despertador para estar atento às riquezas que uma viagem comporta, preparando o espírito para adentrar-se nas civilizações alheias. E, sem dúvida, ler no regresso, será um ótimo recurso para incorporar perspectivas e visões da vida e dos povos. Um verdadeiro catalisador de cultura que é, afinal, construir uma opinião e saber situar-se no mundo.

     De fato para fazer estas variações sobre o mesmo tema, é preciso amplo domínio do terreno. Sejam os prelúdios e fugas de Bach, embasadas em cada semitom da escala ou as considerações sobre o mosaico europeu de modo lógico e atraente. Para compor um divertimento é preciso mesmo ser um virtuoso. Somente por essa razão, vale a pena ler esta obra.

Ian Ker: John Henry Newman. Una Biografía.

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Ian Ker: John Henry Newman. Una Biografía. Palabra. (2010). 793 págs.

     A primeira advertência que é preciso fazer é de que estamos diante de um livro de difícil leitura. Talvez porque não é propriamente uma biografia, mas um perfil biográfico, o que não quer dizer que seja superficial; aliás, é tudo o contrário. O autor conhece a vida e obras de Newman de modo admirável, interpreta o sentir da personagem que afirmava que “a vida de um homem está nas suas cartas” (pg. 740) e monta um verdadeiro puzzle biográfico, traçado com trechos das 20 mil cartas que se conservam de Newman. O resultado é uma exuberante coleção de dados onde se misturam a ciência teológica, as dúvidas, as crises, o amor a Deus, a vontade de reformar a Igreja anglicana, além do amor incondicional pela Inglaterra, elementos presentes na alma de John Henry Newman. Fica difícil saber qual é o fio condutor, a cronologia desta vida, porque o livro nos leva direto às interioridades, ao pensamento, à consciência de Newman, sendo o exterior mero detalhe. As arvores –verdadeira floresta de informação- não deixam ver o bosque.

     Não é um livro para qualquer um; na verdade é um livro para poucos, certamente para os que conhecem bem a vida de Newman. A quem se aventure por primeira vez no estudo deste personagem admirável, recomenda-se que leia antes outra biografia, ou mesmo a Apologia Pro Vita Sua, que resulta um bom guia biográfico para enfrentar o livro que nos ocupa. Essa foi a minha experiência e a minha preparação prévia, e mesmo assim tive de investir alguns meses na leitura da obra, espaçando-a, deixando repousar o aprendido, lendo em diagonal alguns trechos onde o autor aglutina dados e personagens em profusão, como se tudo fosse familiar ao leitor e não fossem necessárias as apresentações. Um texto do próprio Newman serve de crítica construtiva ao estilo do autor, além de ser um importante conselho para quem pretende aumentar a cultura: “O que engrandece nosso conhecimento não é simplesmente aumenta-lo, mas mudar de lugar, um movimento para adiante, para o centro moral, em direção ao qual gravita todo o volume do nosso conhecimento. Um modo de pensar filosófico, a sabedoria na conduta ou na política, implica uma vinculação do novo com o velho, um penetrar na relevância e na influência de umas partes com as outras. Não é um conhecimento apenas de coisas, mas de relação mútuas; um conhecimento organizado e vivo.” (pg. 280).
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Bravura Indômita: As Saudades (que todos temos) de um bom Faroeste.

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(True Grit, 2010 )- Diretor: Ethan Coen, Joel Coen. Jeff Bridges, Matt Damon, Hallie Steinfled, Josh Brolin, Barry Pepper. 110 min.
(True Grit, 1969)- Diretor: Henry Hathaway. John Wayne, Kim Darby, Glen Campbell. 128 min.

     O filme dos irmãos Coen saiu de mãos abanando na festa do Oscar. Eles reclamaram, e não pela ausência de premio, mas pelo excesso de propaganda. Na verdade, estava ficando molesto abrir os sites de consulta de filmes –IMBD por colocar o exemplo mais relevante- e deparar-se com a insistente cavalgada de Jeff Bridges, uma arma em cada mão, e as rédeas do cavalo presas nos dentes (nos dentes do Jeff, entende-se). Até parecia que não havia outros filmes à altura, concorrendo para o Oscar. Bravura Indômita monopolizava os chamados das páginas virtuais. Incomodou-me toda essa parafernália, barulho demais.

     As críticas também rodearam o filme de comentários elogiosos. “Não é nenhum pecado fazer uma refilmagem. O cinema está repleto de remakes notáveis. Os irmãos Coen dizem que sim, que assistiram a versão dos anos 60 com John Wayne, mas que o filme deles é uma leitura própria da historia escrita por Charles Portis. E até sugerem que, talvez, os filhos deles se aventurem a fazer um novo remake.” Fui checar a idade do crítico de cinema: não chegava aos 50 anos.

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Donald Finkel: “Dar clase con la boca cerrada”

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Donald Finkel: “Dar clase con la boca cerrada” (Teaching with Your Mouth Shut). Servicio de Publicaciones de la Universidad de Valencia. Valencia (2008). 292 págs.

(Obra original em Inglês, tem uma boa tradução ao espanhol, que foi a versão consultada)

 

     Não é mais um livro sobre metodologia de ensino, e novas técnicas docentes, essa variante de livros que se poderiam qualificar de “autoajuda profissional”, no caso, para os profissionais da educação. Ensinar é fomentar o aprendizado; é estimular e facilitar os estudantes para que se comprometam com um processo construtivo do qual eles são os verdadeiros protagonistas. E neste sentido, mais do que um livro para professores é um livro para que o professor entenda o papel do estudante no processo educativo, o que significa, em consequência, reduzir seu papel de professor a um discreto lugar de coadjuvante. Como o autor adverte no prefácio, esta obra é para qualquer um que tenha interesse na educação, mas não é um manual para professores; sua intenção é produzir uma reflexão acerca das variadas maneiras com que é possível ensinar, uma conversa entre os leitores que tenham algo a dizer sobre educação.

     O presente livro não advoga por um método educativo como superior ao outro, mas sugere que tudo se deve combinar, de acordo com as circunstâncias e possibilidades. Aqui está talvez o melhor recado da obra: uma ocasião de refletir sobre os próprios métodos de ensino, e avaliar a possibilidade de incorporar novos elementos que enriqueçam a atividade docente. Dar aula com a boca fechada é um modo de dizer que o professor não vai realizar o trabalho que o estudante deve fazer por si mesmo. Há muitas maneiras de que os estudantes percebam que devem assumir por si mesmos o compromisso de aprender, com responsabilidade consciente.

     Oferecemos a seguir um breve resumo das ideias principais dos diversos capítulos; resumo este que não dispensa em absoluto a leitura desta importante obra. Mais do que os conceitos, o importante é o processo e as reflexões que a leitura pausada provoca.

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Giacomo Rizzolatti & Corrado Sinigaglia: “Las neuronas espejo. Los mecanismos de la empatía emocional”

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Giacomo Rizzolatti & Corrado Sinigaglia: “Las neuronas espejo. Los mecanismos de la empatía emocional” Paidós, Barcelona, 2006. 216 pgs.

     Sem dúvida, o sugestivo título, ou melhor, subtítulo –bases da empatia emocional- fará com que muitos se aventurem na leitura desta obra. Foi o meu caso. Deve se advertir que os primeiros capítulos são de difícil leitura –mesmo para os que somos médicos- porque descrevem bases neurofisiológicas que o autor considera necessárias para adentrar-se, posteriormente, em temas que tem uma relevância maior no comportamento humano e no relacionamento interpessoal. Uma leitura rápida, em diagonal, dos primeiros capítulos pode ser suficiente para entender o recado que o autor da nos dois capítulos finais, que são os de maior interesse geral.

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O Discurso do Rei: O Bom Gosto feito Cinema

Pablo González Blasco Filmes 4 Comments

The King’s Speech. Diretor: Tom Hooper. Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter, Guy Pearce, Timothy Spall. 118 min.

     Estamos às portas do Oscar. Rascunho estas linhas no contrarrelógio para antecipar-me ao desfile do tapete vermelho. Não porque queira arriscar nenhum palpite, pois afinal o meu voto –que ninguém leva em consideração na academia de Hollywood- já está concedido. Eu também não ligo grande coisa para a academia, de modo que estamos quites. A motivação que me induz a escrever é outra, ou melhor, várias.

     A primeira é -como tantas vezes fiz notar nos meus comentários cinematográficos- de índole familiar. Encontrei com um dos meus irmãos no começo de Janeiro. O Discurso do Rei estreou na Europa um mês antes do que no Brasil. “É do melhor que vi nos últimos anos”. Foram suas palavras, sem maiores explicações. Nem descrição de cenas, nem de diálogos, nem do desempenho dos atores. Talvez por isto, a frase me impactou. No âmbito familiar, condecorar um filme como definitivo –’o melhor dos últimos tempos’ é uma frase muito forte- sempre impôs respeito. E o gesto com que ele pronunciou a sentença, assemelhava-se ao do meu pai quando falava de Casablanca, ou minha mãe lembrando A Felicidade não se compra; ou mesmo o meu avô, quando discorria sobre Gary Cooper ou Betty Davis. Não adiantava perguntar por quê. O jeito era ver o filme e tirar as próprias consequências. E foi isso que fiz, numa sessão particular, com alguns amigos. Até agora não sei o que mais me marcou: se o filme, as reações de satisfação que pude observar nos que me acompanhavam, ou um maravilhoso bom sabor de boca que perdurou até a segunda vez que o vi, já no Brasil.

     Esta segunda sessão foi no ambiente profissional, inserida no projeto Cultura para Todos, inaugurando uma série de encontros que conviemos em denominar: Grandes Momentos do Cinema. Pude então degustar as cenas com tranquilidade, apreciá-las sem pressa, ponderar os detalhes; os mesmos que buscamos numa obra de arte que, de cara, nos agrada imensamente. A arte nos compraz, não sabemos por quê; e, imbuídos desse clima de bem estar, vamos desentocar os motivos desse efeito confortante, para o corpo e para o espirito. Com o cinema acontece o mesmo. E garimpando detalhes e motivos, decidi recompilar minhas impressões, às pressas, para chegar antes do Oscar e não deixar que as notícias das premiações, que nos cercarão na próxima semana, embacem esse amor à primeira vista –coup de foudre, raio fulminante- que provocou este filme magnífico.

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O Visitante: A Aventura de abrir-se aos demais

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(The Visitor) Diretor: Thomas McCarthy. Richard Jenkins, Haaz Sleiman, Danai Jekesai Gurira, Hiam Abbass, Marian Seldes, Maggie Moore. 104 min.

Não é a primeira vez que me acontece isto. Ter um filme à mão, em cima da mesa, ou mesmo no computador, esperando a ocasião adequada. E não acabo de me decidir. Passa semana, entra semana, chegam outras novidades, vamos deixando para lá. Parece que não é o momento. Porque os filmes, os livros – e tantas outras coisas, o vinho por exemplo-, tem o seu tempo, se requer uma certa propensão, uma sintonia. Tal como se escolhe uma gravata –sem dar maiores explicações- ou como as mulheres escolhem a roupa, e reclamam que não tem nada que vestir, mesmo estando o guarda-roupa repleto, saindo pelo ladrão. Deve ser o meu lado feminino, este dilema de saber encontrar a ocasião certa para cada filme.

Um dos meus irmãos, seguindo as tradições cinematográficas da família –assim fomos criados, e assim continuamos nos entendendo, através de filmes- tinha me advertido que o filme era bom. Qualquer assunto relativo a um sujeito que aprende a batucar e se encontra a si mesmo. Deixe-me levar pelo racional, ao invés de confiar na sintonia que sempre acerta, e como me parecia um argumento pouco atrativo o coloquei no compasso de espera. Aliás, não é o meu forte. As poucas vezes que tentei me somar a uma roda de batuque tive de ouvir aquilo de “tem branco no samba”, comentário coberto de razão.

Também tive oportunidade de ler alguma crítica –mais inputs racionais- que situava a fita nesse universo recente, a questão dos imigrantes. Eis outro assunto que, sem nenhum desprezo, não me atrai o mais mínimo. Tem sabor de lugar comum, como a ecologia, como a globalização. Não que careçam de importância, mas confesso que não me fazem perder o sono. Fosse pouco, tinha acabado de ler um livro, (Angeles Caso: “Contra el Viento”) premio planeta de 2009, galardão notável das letras hispânicas, que as críticas também posicionaram no âmbito dos imigrantes –tema candente na Europa- e também não me entusiasmou.

Aliás, o livro, tal como o filme que nos ocupa, não é sobre imigrantes, porque a condição de outsiders é algo acessório, circunstancial. O miolo é a condição humana, o triste barro do qual estamos feitos, onde de algum modo todos somos imigrantes num mundo no qual mal sabemos nos situar. Uma realidade que enfrentamos diariamente, incorremos nos mesmos erros, nos deixamos enganar como se nunca tivéssemos lido ou vivido essa situação concreta, e não acabamos de aprender. Somos todos imigrantes, que viajam por este mundo –viatores, dizem os clássicos da Teologia- em busca da terra prometida. Resta saber se o destino é claro; mas isso já uma questão pessoal, que cada um deverá decidir, e programar no seu GPS de navegação por esta vida.

Nem imigrantes, pois, nem atração por ritmos de batucada africana, que também não são o meu forte. Mas tudo chega. Não racionalmente, mas afetivamente, com suavidade, doucement como dizem os franceses nessa expressão que envolve calma e delicadeza. Deixei o filme correr, e aos poucos minutos entendi que era o momento: tinha se produzido o arco voltaico das emoções, às minhas em ressonância com as que os fotogramas, timidamente, destilavam.

Uma circunstância fortuita cria o cenário. Um professor encerrado na sua solidão e um casal de emigrantes. A juventude e os sonhos topam com o ceticismo de quem vive acidamente, faz de conta que trabalha, vive “porque a vida dura”, no dizer de Fernando Pessoa, e não escapa às tristes consequências que adverte o poeta português: tem por vida a sepultura. As dificuldades são a faísca que desperta o professor do marasmo, obrigando-o a abrir-se aos outros. Atitude perigosa, esta que permite que os outros entrem na nossa vida –naturalmente carregando seus problemas- complicando-a, e tornando-a nova, maravilhosa, colorida. É nas aventuras onde se encontra o amor perdido, aquele que foi se esvaindo sem repararmos, nos meandros das rotinas diárias, das adversidades mal digeridas, dos desenganos que o mundo – somos todos imigrantes!- nos proporciona em cada esquina.

Conforme o filme corria, uma sensação de déjà-vu cutucava minha memória. Onde vi isto antes? Não o argumento, nem as personagens, mas a atmosfera que envolve a trama? E, de repente, enquanto surge aquela mulher atinada, de olhar cálido, discretamente distante, a lembrança golpeia a memória: Casablanca! Sim, é isso. Isto é Casablanca revisitada.

O professor entocado na sua docência, que no fundo despreza; faz de conta que trabalha e se engana a si mesmo no fingimento. Magoado pela vida, busca nas lembranças musicais, sem sucesso, o calor da mulher que amava e admirava. Tudo é falso, carece de talento para a música, é um fracassado querendo enganar o mundo com alguma conquista acadêmica. E nesse clima, acabando o filme, pareceu-me ver Rick –Bogart em Casablanca- comandando o cassino, alheio a tramas políticas e a qualquer mulher, conversando com o professor, solidário no desprezo global pela raça humana, e por eles mesmos.

Aqui é a batucada que abre a brecha no afeto impermeável do professor, lá é Sam que toca, mesmo proibido, “As times goes by”. A música é o preludio que se atreve a soltar as amarras de um coração que, sendo grande, hibernava golpeado pelo desengano. As cartas de trânsito que permitiriam voar até Lisboa, os papeis do imigrante ilegal que a polícia não admite, são o momento de envolver ambos –Rick e o professor- numa briga que nunca quiseram comprar, que não lhes diz respeito. E, depois, a presença de uma mulher que inunda a tela, uma dama com tremenda classe, que resgata a dignidade de quem tinha desistido de amar.

Atrevi-me a comentar estes desvarios com alguém. Olhou-me com desconfiança. “Não estarás forçando a situação com essa mania de interpretar filmes?” – parecia dizer-me com o olhar o meu interlocutor. Mas eu não me dei por aludido. Afinal, a arte é tal, porque é capaz de provocar um diálogo com quem a contempla. E nesse diálogo intervêm lembranças, reflexões, pensamentos e valores que nos ajudam a situar-nos no mundo. Esse é o papel da cultura, um convite para melhor entender a vida, os outros, nós mesmos. Quem atende o convite de dialogar com a arte –no caso, com o cinema- encontrará respostas para os dilemas quotidianos que a vida nos coloca.

Entende-se o meu pavor quando, sendo convidado para dar aula a alunos dos últimos anos das faculdades de medicina, ocorre-me perguntar quantos livros leem por ano. “Livros não médicos, não é professor?” Assento com a cabeça, suspeitando que coisa boa não pode vir após esse esclarecimento. “Três, quatro talvez” – costuma ser a resposta, que tomo como média de inquietude cultural. A seguir pergunto: “E quantas horas vocês gastam na Internet por dia”. Risos, cochichos, e finalmente um número de consenso: “Entre duas e três horas”. A frase que encerra os interrogatórios do júri nos filmes americanos parece-me a mais adequada como conclusão: “No further questions- não há mais perguntas”.

Nesse cenário cultural da elite universitária, creio que posso me permitir sonhar com os filmes, e viajar de um a outro, e invocar livros, pensadores, filósofos e poetas, como fazia o velho sábio, Boécio, quando escreveu “A consolação da filosofia”, intuindo a barbárie que lhe rodeava. Sim, senti Casablanca em “O Visitante”, e vivi de novo a aventura de Rick e Ilse, e lamento que outros não alcancem a viver esta experiência. A atmosfera de Casablanca envolvida em outro papel de embrulho. E isso, por não falar da cena do aeroporto, que até nisso guardam sintonia.

A abertura para os outros, romper a crosta do egoísmo, disfarçado de indiferença que protege de futuros desenganos. Esse é o recado do filme – de ambos os filmes-, esse é o desafio. Um desafio que custa, porque o eu puxa muito, demais. E nos leva a um isolamento enorme, que se engana a si mesmo com uma avalanche de comunicação fácil, rápida, através de redes sócias, mensagens eletrônicas, repletas de abreviatura e lugares comuns, e saturadas de vazio, porque espremidas, não rendem duas gotas de conteúdo.

O eu nos perde sempre, diz Jimenez Lozano, numa obra que acabo de começar, mais uma tentação que não resisti quando passei diante de uma livraria. “Los Cuadernos de Rembrandt”, assim se chama este livro encantador. E não são mais do que os diários do escritor, seu diálogo com a cultura que lhe chega ao sabor da observação da vida quotidiana. Para fazer frente a esse eu que nos devora –seja qual for a versão, a prepotente ou a sofrida, o ego, o superego ou o id, e Freud que me perdoe- somente há um antídoto: os outros, abrir-se aos outros. Fazer de vida –do viver, para ser exato na concordância gramatical- um verbo transitivo. A porta da felicidade abre-se para fora, para os demais, dizia Kierkegaard; tentar abri-la para dentro – topar-se com o próprio umbigo, novas desculpas agora para o filósofo dinamarquês- resulta em fechá-la mais ainda.

A empreitada de abrir-se aos demais custa. Não tanto pelo que supõe de compromisso–de fato complica a vida-, nem pelo investimento de tempo, pois afinal se malgastam toneladas de tempo em bobagens. Complica porque nos tira da comodidade, nos abre ao imprevisto, nos toca para fora da chamada zona de conforto, para adentrar-nos em algo que está fora do nosso controle, e do nosso pijama com chinelos: a encantadora imprevisibilidade dos outros. Essa temática está muito bem explicada –com exemplos e rigor acadêmico- numa obra que li não há muito tempo, e que não me canso de recomendar: “Ética de la hospitalidad”, de Daniel Innerarity.

Ao som do batuque do professor rejuvenescido, ou do piano de Sam em Casablanca, se nos apresenta o convite de uma revolução liberadora do eu que nos acorrenta na mesquinhez de uma existência medíocre. Um panorama que desabrocha novos horizontes na aventura de abrir-se aos demais, um risco que vale a pena correr porque ai, nessa aventura da imprevisibilidade e do serviço, encontra-se nossa riqueza. “E eu, como é que fico?” – geme o ego assustado com a perspectiva. Nas brumas do aeroporto de Casablanca, o novo Rick fecha a questão: “Nós teremos sempre Paris”. Nunca Bogart me pareceu um filósofo tão definitivo como neste momento.

Roberto Adami Tranjan: “Metanóia”

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Ed. Gente. São Paulo,2002. 200 pgs.
    Ganhei este livro de um amigo. Enviou-me como presente de Natal, e vinha com a dedicatória do autor que, segundo parece, é conhecido do meu amigo. “Para rever conceitos” – escreveu antes da assinatura. Nada mais lógico, pois este é o subtítulo do livro: Uma história de tomada de decisão que fará você rever seus conceitos. O autor, que trabalha profissionalmente como consultor de empresas, propõe um modelo audacioso na gestão dos negócios. Não se pode dizer que são conceitos novos, porque muitos deles já os temos lidos em obras análogas, talvez expostos sob outros nomes ou predicados. A galinha dos ovos de ouro, que é preciso cuidar, ao invés de apenas prestar uma atenção avarenta aos ovos; afiar o machado –dar-se um tempo, cuidar de si- para continuar cortando com eficácia; o círculo de influencia e muitos outros são elementos familiares de obras como os Sete Hábitos das pessoas eficazes, ou Liderança centrada em princípios de Stephen Covey. Nesta obra, servindo-se da história fictícia de uma empresa em crise, recomenda voltar-se para o cliente, conhecer o foco e as possibilidades da própria empresa, tornar os colaboradores elementos motivados e empreendedores, e unir empresa e vida com os mesmos valores. Tudo isto, sem esquecer-se de avaliar os indicadores de desempenho, que vão muito além do balanço financeiro.

    Na verdade, mais do que descortinar novos conceitos, trata-se de lembrar assuntos importantes que, na voragem do dia a dia, acabamos esquecendo. O homem é um ser que esquece, diziam os antigos. E é verdade, esquecemos o que realmente importa, o essencial; e, perdidos nos detalhes e minúcias –que esses fatalmente sempre lembramos- não conseguimos encontrar o caminho de volta: para o sucesso profissional e para centrar a própria vida. Por isso, este livro tem o seu mérito, porque ajuda a lembrar, de modo ameno, conceitos que sempre devem ser revistos. Talvez progredir na vida seja basicamente isso: lembrar, sem cansar-se, dos valores, das raízes, manter o foco. Sem nunca dar-se por satisfeito ou suficientemente instruído. Já dizia outro autor: “Se dizes basta, estás perdido”. Não é um moderno consultor de lideranças, mas Santo Agostinho, que muito entendia também de gestão de pessoas, no século IV.

O Pequeno Nicolau: A tremenda simplicidade de uma alegria contagiante.

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Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.
    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.

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