ESPÍRITOS INDÔMITOS
ESPÍRITOS INDÔMITOS. (The Men) Diretor: Fred Zinnemman. Marlon Brando, Teresa Wright. USA 1950. 85 min
Conforme os anos passam, sentimos a necessidade inconsciente de aproveitar o tempo. Gastar os minutos com a prudência de quem sabe que o seu capital‚ é limitado. Comprar a mercadoria certa, eliminar caprichos, não arriscar por vício. Tornamos nosso tempo denso, selecionando as atividades, investindo no seguro. Deve ser este mais um instinto humano -como o de sobrevivência, o de maternidade- embora menos estudado. O instinto da economia do tempo, que supervisiona a atuação madura, impregnando de realismo, sereno e urgente, os ideais que norteiam a vida.
Quando se trata de ver um filme, sempre sinto este instinto funcionar. Por isso, nunca fui partidário de mergulhar no desconhecido, assistindo filmes dos quais nada sei, nem ouvi falar. Vez por outra se torna necessário folhear os livros de cinema, estacionados na prateleira da biblioteca, para não perder a sintonia.
Cinema é como uma língua; se não se pratica, se esquece. E se deixamos empoeirar os livros e passamos por alto os artigos de crítica cinematográfica -mesmo os de conteúdo muito discutível, se não há nada de melhor à mão- a linguagem cai no olvido. De nada adianta ver filmes, mesmo por atacado como hoje é uso comum, se não se assimilam. Não sei por que me lembra as invasões bárbaras devastando as bibliotecas do decadente Império Romano. Bem‚ é verdade que, cada vez mais, é preciso garimpar entre as inúmeras opções disponíveis para encontrar cinema. Filmes, isto é celuloide, há toneladas; mas Cinema, com maiúscula, já é outra questão que requer procura atenta. Não é quantificável no peso, como as laranjas da feira; nem no visual da capa, excelente chamariz para os desinformados.
Imbuído do instinto de economia de tempo, e sendo este -o tempo- sempre escasso, é preciso escolher cuidadosamente os filmes que, havendo ocasião, se assistem. Um velho amigo -bom conhecedor do cinema- vinha-me insistindo há tempo para ver “Espíritos Indômitos”. Reconheço que me sensibilizou o nome do diretor -Fred Zinnemman- que sempre admirei. Mesmo assim, devia estar ocupado demais com esse gasto correto dos minutos, já que não dei mostras de interesse. E ele, que reparou, convidou-me para uma sessão surpresa no Domingo de carnaval. A cidade vazia, uma tarde tranquila com tempo pela frente. Ligamos o aparelho para ver o filme que revelou Marlon Brando.
“Espíritos Indômitos” é um filme forte e emocionante. A luta de um homem paraplégico, ferido na guerra, contra o desânimo, à procura de um motivo para viver. E nessa luta descobre que o maior obstáculo para a felicidade não são as circunstâncias e as limitações da paralisia, mas o próprio orgulho. Costuma ser esta a barreira que torna a vida impermeável à alegria de viver; barreira difícil de remover, porque não se enxerga com facilidade. Para vê-la é preciso um paciente trabalho de reflexão.
Assenta-se como um plástico delicado e transparente sobre o espírito, através do qual o juízo, enganado, localiza o que pensa ser a causa das suas infelicidades: pessoas e situações, calamidades e desgraças. Enquanto isso, o orgulho fortemente aderido à alma, em película sutil mas eficaz, vai anestesiando as emoções, amputando os afetos do coração e temperando com sabor azedo as vivências. A tristeza do orgulho produz um permanente mau sabor de boca e impede desfrutar as alegrias da vida, como quem chupa bala sem retirar o papel de embrulho.
Como todos os filmes que contêm valores impressos, “Espíritos Indômitos” deve ser digerido, assimilado. Não basta assistir a fita e emocionar-se, contemplá-la a distância, em terceira pessoa. O sentimentalismo é uma aproximação epidérmica da realidade vital, incapaz de penetrar no miolo da mensagem. É preciso espremer os filmes, destilá-los, para que os valores decantem na sua pureza, no brilho original. A procura da felicidade, a luta contra o orgulho‚ valor universal que transcende as circunstâncias concretas do filme, e que nos aproveita a todos. A paraplegia do protagonista é apenas o traje que Zinnemman utiliza para vestir o seu tema preferido: o homem frente a seu destino, a personalidade forte que se constrói na adversidade.
“Quando se tem na vida um ‘porque’ qualquer ‘como’ se pode suportar” -afirmava Nietzsche. Comentários substanciais a estas palavras faz o psiquiatra V. Frankl no desenvolvimento daquilo que considera essencial para o ser humano, e que quando ausente produz os maiores desequilíbrios: o sentido da vida. Se a vida não tem um sentido, um norte, um ideal forte que a sustente, esmorece, murcha. As próprias experiências de Frankl, preso no campo de concentração, são elucidativas. Observava lá o cientista o diferente comportamento, e a variadíssima capacidade de suportar a adversidade entre os prisioneiros, revelando-se esta capacidade enorme entre os que tinham um motivo claro e definido para viver. Cristalizaram estas experiências no seu método terapêutico que desenvolveu posteriormente: a logoterapia, isto é, ajudar o paciente a descobrir os motivos para viver, para viver bem se entende. Recuperar o sentido que a vida tem e impõe a cada um na sua diversidade. Fazer da vida uma resposta às solicitações que nos são feitas: ter consciência de missão.
Traduzindo todo este emaranhado em palavras simples vem à mente a imagem da cenoura dependurada na frente do burro e que o faz andar. O homem precisa também da sua cenoura, do ideal que o mobilize, para caminhando atrás dele, realizar-se. Toda a questão deve estar em saber qual é a cenoura e o combustível para o motor de arranque. E o assunto, em se tratando de homens, não é simples, como no caso do simpático irracional que reage pelo instinto, procurando o alimento que o satisfaça.
Certamente não será o ideal algo reativo, imposto pelas circunstâncias. É verdade que a maior parte das pessoas -como diz Ortega- são incapazes de outro esforço a não ser o estritamente imposto como reação a uma necessidade extrema. Mas já vemos que isto não funciona: as pernas de Marlon Brando, que parecem formigar, não são recuperáveis. Todo o empenho por andar, embora louvável é insuficiente para sustentar a vida de quem deve assumir com valentia a limitação irreversível. É preciso procurar o ideal, a cenoura, mais longe, ou se preferirmos, em outra direção.
“Passas-te seis anos pensando em ti. É hora de você pensar em mim.” As palavras de Teresa Wright nos dão uma pista. Sempre gostei de Teresa, com a sua cara de adolescente. Dá mais força, com curiosa simplicidade infantil, às verdades que nos aponta. Quando o homem põe o seu ideal em si mesmo, permanece limitado a si mesmo, e ele mesmo pouco representa. A sua grandeza provém de ser capaz de dirigir-se aos outros, a um ideal maior. Deve ultrapassar -transcender, em expressão correta- a miragem de uma felicidade personalizada, procurada a qualquer custo, de modo egoísta e quase obsessivo. É preciso abrir-se aos demais.
O desejo de tornar felizes os outros, contar com os que nos rodeiam, fazer questão de ser útil na medida das nossas possibilidades é o início desse árduo trabalho de reflexão, necessário para remover a película do orgulho que nos torna refratários à felicidade. É no carinho que procura incansavelmente a felicidade alheia onde encontraremos o solvente capaz de desgrudar o plástico do amor próprio para recuperar a sensibilidade, o paladar das verdadeiras alegrias. A tarefa não é simples. “Odiar-se a si mesmo não é difícil. O verdadeiramente custoso é esquecer-se de si mesmo” – dizia Bernanos. Esquecimento que leva a reconhecer as próprias limitações, e a pedir ajuda, que também é ter os outros presentes.
Tudo isso está condensado na cena final. Marlon Brando, com a cabeça do lado, como querendo tirar importância ao momento, fazendo de conta que não repara. É um jeito todo dele, como em “Sindicato de Ladrões”: quando fica romântico e percebe que tem coração, inclina timidamente a cabeça de lado e fala como se não ligasse. É o modo que os durões têm de exprimir os sentimentos, uma mistura de acanhamento e indiferença. Outra maneira de pedir perdão, de dar o braço a torcer. Antes ou depois todo homem se encontra também diante do degrau insuperável, precisa pedir ajuda. Bom será que quando este momento chegar tenha descoberto a fórmula do solvente do orgulho.
Voltando para casa, e surpreendido com o filme do qual nada sabia antes, decidi pedir ajuda aos meus livros de cinema, para, aprendida a lição, não claudicar na frente de um dos muitos degraus que a vida nos coloca diante. Abri um vade-mécum de filmes e li: “Primeiro filme de Marlon Brando. Soberbo, dramático, persuasivo, com trabalho finíssimo em todos os departamentos”. Quem sabe -pensei- se na política de economia do tempo teremos de aceitar, daqui para frente, as sugestões dos outros, conselhos que nos enriquecem.