MARTY

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Marty) Diretor: Delbert Mann. Ernest Borgnine, Betsy Blair. USA 1955. 91 min

Pode-se esperar poesia quando se tem como matéria prima algo vulgar? Um açougueiro, gordo, com pouco atrativo físico é tudo o que contamos para iniciar nosso poema. Fosse pouco, Marty -esse é o nome do nosso açougueiro- é um sujeito tímido, convencido de que nunca deixará de ser o solteirão sem remédio. “Já fiz várias tentativas -diz à mãe num diálogo dramático onde verte todos os seus complexos e limitações- e só arrumei dor de cabeça. Quando se convencerá de que tem na família um filho gordo e feio, um solteirão sem jeito?”. Marty é mesmo, como se diz vulgarmente, a história do “encalhado”.

            Logo nas primeiras cenas reparamos que Marty tem uma simpatia peculiar. Trabalhador, brincalhão com os fregueses no açougue, falador, entrosado no ambiente da colônia italiana. Os amigos -tem amigos que o apreciam- convidam-no para os programas de sábado. Frequenta o “Poeira de estrelas”, uma versão anos cinquenta das nossas discotecas-danceterias de hoje. Mas não passa disso. Marty tem fundo, pensa e vive seu drama interior. Sabe que os seus amigos são tão tímidos quanto ele, mas tem lábia e presença. De qualquer modo o resultado deles é o mesmo: o insucesso com as moças, sem resultado estável, que vingue. Marty está farto dessa simulação, do programa sem objetivo, da pesca sem peixe. Está preso nas próprias limitações.

            Surge Clara, o outro verso do nosso poema. Como é fácil, junto de Clara, aceitar-se, e até gostar de si próprio. E mais importante do que isso: ver que o amor não é complicado, mas algo simples que se explica por si só. Algo que não dá razoes, que ninguém precisa entender; não se mede com parâmetros racionais nem físicos. Altura, cor dos olhos, e demais; sim, muito bem, mas o amor pouco se importa com isto. Estamos lendo nos olhos de Marty estes pensamentos e muitos mais. Observemos atentos tudo o que um homem apaixonado tem a nos dizer.

            Mas entenderemos nós, o que seja amor, amor verdadeiro, estar apaixonado, quando o sentido do amor tem sido amplamente esvaziado do seu significado? Bom será que esclareçamos os termos para captar a mensagem de Marty. Justo será reconhecer que parte da culpa no deterioro do amor a devemos àqueles que quiseram estudá-lo em laboratório, como se de processo fisiológico se tratasse. Psiquiatras e psicólogos, sociólogos e estudiosos do homem teorizam sobre o amor não medindo as consequências. Correto será que deixemos os estudiosos defenderem-se agora, esclarecendo suas intenções, para desembaciar os vidros do laboratório e olhar para a vida.

            Um psiquiatra moderno aponta que existe uma falsificação do sentido do amor que identifica “eu amo” por “eu gosto”, “apetece-me”. Até o ponto de termos incorporado o galicismo “fazer o amor”, quando na verdade o amor autêntico não se faz: tem-se e se dá a outro. Para restituir ao amor seu sentido deve-se destituir a primazia que o prazer ostenta. Assim amamos não porque gosto, mas porque é amável, é bom, e por isso, amando-o acabo gostando. Amaremos o outro como pessoa pelo que é, não pelo que oferece, e obteremos o verdadeiro deleite do amor.

            Tudo isto tem tradução muito concreta que Marty, ignorante de elucubrações psiquiátricas, conhece bem. E sorrirá certamente quando repare ter encontrado um argumento definitivo nas palavras de um outro psiquiatra, V. Frankl. Comenta o Dr. Frankl que insistir muito na beleza de uma mulher ou nos atributos físicos é sinal de que talvez não tenhamos mais nada a dizer dela, que não possui outras qualidades a destacar. No fundo, é porque talvez só nos interesse o que aparece, o que entra pelos olhos. Por mais que apareça não deixa de ser epidérmico. E para animar-nos a acreditar no amor, continua o psiquiatra vienense: “Quem de verdade ama não se limita a amar no ser amado o que quer que seja, mas o ama por si mesmo, pelo que ele é, não pelo que tem. É como se o amor visse através da ‘roupa física e psíquica’ para colocar os olhos na pessoa espiritual. Não se detém num tipo físico ou num temperamento que o atrai; chega mais longe, descobrindo o companheiro ou a companheira incomparável e insubstituível”.

            Mas sejamos francos, encerrando nossas considerações sobre o amor. Não coloquemos a culpa toda nos estudiosos, nos teóricos do erotismo. O ser humano -os amigos de Marty, todos nós- possuímos a suficiente dose de safadeza para, sem necessidade de teorias, arrasar algo tão grande como o amor, tornando-o vulgar e podre.

            Voltamos ao filme. Alguns críticos, esses que gostam de classificar tudo, incluem “Marty” no capítulo amor-romance, subcapítulo amor-redenção. São os mesmos que catalogam por exemplo Um lugar ao sol como amor-perdição, E o vento levou como amor-destruição, Aconteceu naquela noite amor-ideal. Pouco importa a classificação, quando temos em Marty um filme genial sob muitos aspectos. Uma ótima interpretação de Ernest Borgnine, que de acordo com as conversas de bastidores, não tinha sido pensado para o papel. Hoje seria difícil imaginar alguém mais adequado para encarnar Marty, e ficará como Marty para sempre. Até ganhou um Oscar por isso… Clara -Betsy Blair-  não se importa com o Oscar pois e moça simples e do tipo de mulher que não liga para triunfos sociais. Mas atua maravilhosamente, faz o que tem de fazer. É realmente o outro verso do poema, o acorde da melodia que nem todos os ouvidos sabem apreciar.

            Marty é um estudo psicológico acurado do problema que -não nos enganemos- está presente hoje, e sempre estará. Nos anos 50 e no século XXI. Os que mudaram talvez são os amigos de Marty. Tornaram-se barulhentos, inventaram novos programas, vivem desordenadamente e até se orgulham disso, enquanto continuam deturpando o amor. Os resultados não são diferentes: insucesso, falta de estabilidade afetiva, fracasso como homem. Marty -esse não muda, é sempre o mesmo- está presente hoje, um pouco assustado, retraído num canto pelo clima reinante. Para piorar as coisas não há mais “Poeira de Estrelas” e Marty não topa os programas dos amigos. Daí só resta “a parada do sucesso” na televisão… e o sonho de encontrar Clara.

            Brilhante interpretação, profundidade psicológica. Mas tem algo mais que faz de Marty um filme cativante, prende o espectador e desarma o crítico. Qual é o feitiço? O simples triunfo do amor, a transcendência do vulgar. Aí está toda a força, grande e definitiva, do filme, o encanto do nosso poema. A abertura de um homem e uma mulher, normais, para uma nova dimensão que o amor lhes faz descobrir. Hoje, como então, e como sempre, Marty acaba encontrando Clara; mais dia, menos dia, tudo é uma questão de tempo para, rompendo com egoísmo e timidez, lançar-se na aventura da vida.

            Marty, na última cena, pendura o telefone radiante. O espectador -que entendeu o recado- descobre que sim, que ele, um homem comum como Marty e Clara, também pode mergulhar nessa aventura formidável. Que importam limitações, complexos e misérias se o amor – amor verdadeiro!- pode transformá-los?

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