ADEUS MR. CHIPS
ADEUS MR. CHIPS. (Goodbye Mr. Chips) Diretor: Hebert Ross. Peter O’Toole, Petula Clark, Michael Redgrave. Inglaterra 1969. 151 min
Tive a oportunidade de rever “Adeus Mr. Chips”. E o fiz com o mesmo entusiasmo que na primeira vez, quando tinha l3 anos. É um filme cativante, apesar do seu argumento simples. Talvez por isso, pela simplicidade, impõe-se e convence.
O homem é tão complicado -nos fazemos de tal modo complicados- que quando a franqueza de um temperamento transparente que despeja simplicidade nos encanta, sentimo-nos inquietos, sem saber por que, ficamos inculcados, desconfiamos de nós mesmos: serei eu? Algo assim como tentar explicar a sensação de bem estar num bucólico entardecer de primavera ou o agradável do perfume de uma flor.
Certamente, o homem deste começo de milênio, que funciona a golpe de solicitações sobre os seus instintos, e mergulha num ativismo sem rumo, surpreende-se com as coisas simples, como se fossem elementos de outro planeta. Enquanto houver surpresa ainda não está tudo perdido; seria motivo de desespero se perante o encanto que a simplicidade desperta em nós reagíssemos apenas com indiferença.
Por estes divagações andavam meus pensamentos enquanto, sem compromisso, num fim de tarde, assistia “Adeus Mr. Chips”. E até parecia-me que o poder fascinante que Chips exerce sobre a cantora de teatro de revista é uma analogia oportuna do que acontece com o espectador. Sem saber por que, ou de que modo, falando idiomas diferentes -vivendo em mundos opostos- o professor vai conquistando, sem querer, a corista. Assim a simplicidade adentra fronteiras no complicado ser humano, impondo-se suavemente, sem violências, sobre esse mundo de faz de conta, de futilidades, de perpetuo carnaval.
“Adeus Mr. Chips” é um canto às coisas simples da vida, uma brisa refrescante na atmosfera que nos rodeia e sufoca. Vivemos numa sociedade de competição, de vontade de poder, onde a lealdade e a honestidade parecem virtudes do passado. Impõe-se hoje o levar vantagem, a esperteza, o jeito – eufemismo em muitos casos da mais descarada safadeza. A infidelidade tempera as relações humanas com uma frequência que nos leva a encarar com naturalidade as maiores aberrações. E isto até o ponto de concluirmos superficialmente que o normal é o comum; quer dizer, que o que todo o mundo pensa e faz converte-se em norma de conduta. Uma curiosa variação do que poderíamos chamar democracia dos costumes.
Quando a sociedade -os indivíduos que a integram- atingem este ponto, existe, não apenas algo, mas sim muito de podre no reino dos homens. O comum denota apenas frequência estatística. Por exemplo, as cáries dentárias no público urbano, ou as alterações genéticas em populações submetidas a efeitos radioativos, são comuns, isto é, tem alta incidência. No entanto, não são normais: são anormalidades, tristes em muitos casos, e que com maior ou menor gravidade atingem uma proporção estatisticamente significativa.
Detalhando mais. A desonestidade, o trabalho feito de qualquer jeito, o galgar postos através de influências e não por méritos próprios, ter casos com “a mulher do vizinho”, são realidades, infelizmente, comuns nos dias de hoje. Aliás, sempre estiveram presentes. Mas a novidade que nos ocupa é que tudo isso começa a parecer normal, e não apenas comum. As desordens de uma vida desregrada sempre foram comuns, mas sabia-se que eram isso, atitudes desordenadas. Hoje, pelo fato de serem comuns -todos fazem- queremos transformá-las em normais, legalizá-las democraticamente, como se o erro pudesse ser avalizado pela opinião da maioria. Haveria então que pensar nas consequências desta simplificação fatal, por exemplo na Alemanha nazista, onde a maioria da população considerava correto fazer sabonete com os judeus queimados nos fornos…
Assistimos “Adeus Mr. Chips” e contemplamos a apologia da honestidade, do trabalho esforçado, da fidelidade – do amor verdadeiro!- e comentamos: são coisas de filmes, de filmes velhos. Não é verdade: são coisas da vida real, existem. Valores que estão presentes e que devem ser resgatados. Não é “Adeus Mr. Chips” um filme de faz de conta. É a vida normal, com alegrias e renuncias, com os sofrimentos que a vida traz. E por isso se impõe na sua atmosfera de simplicidade contundente. Como é bom ser normal!
“Tudo o que pretendo é ser um professor” diz Mr. Chips com a franqueza de quem pouco tem a oferecer. “Tudo o que eu quero é ser a esposa de um professor”, responde Catherine com a naturalidade de quem saber renunciar com categoria a sonhos e quimeras para firmar-se no realismo do habitual, verdadeira trilha da felicidade. Saber o que queremos: eis uma boa fórmula que pouparia desavenças posteriores, sobretudo quando de casamentos se trata. Saber o que se quer; e sabê-lo bem, com clareza e decisão, com o realismo que dá o conhecimento verdadeiro do ser amado.
Não existem equivocações no amor; existe falta de realismo e de sacrifício. Já dizia Ortega que não podia acreditar nas equivocações dos amantes que pensando ser o escolhido de uma maneira depois resultava ser de outra. Na realidade, afirma o filósofo, a pessoa é o que parecia ser, mas acontece que depois se sofrem as consequências deste modo de ser e a isso chamamos erradamente de equivocação.
Realismo e sacrifício são alicerces para construir ideais sólidos, e dentre eles o casamento. Vem a lembrança daquelas palavras de outro grande humanista, G. Marañón, experimentado nestas questões de ideal e de amor. “A mulher ideal -nos diz- não se encontra em estado de perfeição quase nunca porque, geralmente, é obra não da sorte mas da própria criação. O ideal feminino, como todos os demais ideais, não se dá nunca feito; é preciso construí-lo, com barro propício, sem dúvida, mas o essencial é construí-lo com o amor e o sacrifício de todos os dias” “Adeus Mr. Chips” é um filme para nos encantar com a simplicidade da vida -a vida que pode ser a de cada um de nós- e descobrir as possibilidades que nos oferece. Para nos convencer de que é a vida normal o que atrai, mesmo que o normal não seja comum, e será por isso mesmo, ainda mais atraente e exemplar para os que nos rodeiam. Não são “coisas de filmes”, mas coisas da vida que pode ser vivida sem máscaras. Quem é normal, é simples, não precisa de adaptação, “essa horrível palavra que falta na maioria dos dicionários”. Basta-lhe realismo e sacrifício: amor, “palavra que todos os dicionários contêm”.