O Dom da Fúria: Construindo a harmonia familiar
(The Great Santini) Diretor: Lewis John Carlino. Robert Duvall, Blythe Dayner, Michael Olkeefe,
Stan Shaw. 116 min. USA 1979.
Um guerreiro sem guerra, é a frase que pode ler-se embaixo do título deste filme. Um fuzileiro naval, excelente piloto de caça, coronel de disciplina rigorosa, que precisa da guerra como do ar para respirar. Como é sua vida em tempo de paz? Como a vida de qualquer um: cheia de trivialidades, rodeado da família, da qual faz uma extensão do quartel, governando o lar com espírito militar. Um filme aparentemente sem pretensões e que por não tratar de nada importante, toca com acerto os temas de maior transcendência na vida de um homem: a educação, a família, o amor.
O recado do filme é claro e de importância singular. Em toda a família existem desavenças, atritos, brigas; até algum que outro grito e, por vezes, chega-se às vias de fato, com a consequente humilhação de quem ultrapassou os limites, deixando-se levar por reações temperamentais. Mas por cima disso a unidade familiar, o amor, a fidelidade persiste intocável, como ponto de referência certo. Uma família sem problemas é algo irreal; lá onde os seres humanos convivem existem diferenças, tensões geradas pelas limitações de cada um, pela variedade dos pontos de vista. Mas gritos e brigas não passam de episódios corriqueiros, coisas de ordinária administração quando, no fundo, permanece intacto o amor, a fidelidade, a consciência de um ideal realizado em família. Um amor que se manifesta nas cartas de uma mãe que parece uma namorada, no presente do pai guardado por 18 anos, nos detalhes diários, nas pequenas coisas que são o tempero do carinho familiar.
Nos dias de hoje esta mensagem pode parecer nota dissonante. As pessoas vivem suportando-se, procurando uma convivência pacífica e o mínimo de dor de cabeça possível conseguido na base do isolamento. O convívio familiar é, muitas vezes, coexistência diplomática embaixo do mesmo teto, delimitação de fronteiras -de direitos e deveres- para não invadir o terreno do outro. Tudo é agradável enquanto não há agressões, mas tudo é frágil porque carece de fundo, de amor verdadeiro. E o objetivo máximo da educação será “não incomode para não ser incomodado”. Ideal mesquinho de quem se contenta com não agredir, mas nem pensa em ajudar, em doar-se aos outros. Assim a família, assim a sociedade, reflexo da educação familiar.
E aqui vai, nas entrelinhas, tangenciando o filme que certamente carece de pretensões filosóficas, uma consideração que não se pode omitir: o gosto pelos próprios deveres. Vivemos uma época – diz Gregorio Marañón no seu ensaio Os deveres olvidados– de hipertrofia de direitos e de crise de deveres. E são justamente os deveres o que nos tornam diferentes, uns dos outros, embora por direito sejamos todos iguais. O direito é algo dado, um presente que vem de fora; o dever, no entanto, brota do nosso interior, do âmago da nossa personalidade, como jorra um manancial. É inútil pretender -diz o médico humanista- que o calibre e qualidade dessa nascente seja igual em todos. São, pois, os deveres -livremente assumidos- e não os direitos os que marcam as diferenças e a categoria dos homens.
O filme é atual pela temática, embora tenha envelhecido na forma. A interpretação de Robert Duvall é soberba e teve indicação para Oscar. Um canto às coisas simples da vida, a poesia feita do quotidiano na personagem -comovente- do negro Toomer que traduz em lirismo a realidade de uma vida ingênua, mas repleta de riqueza. A personagem da mãe que, mais uma vez, confirma como é importante a figura da mulher para a harmonia do lar. Por trás de uma família unida existe uma mãe dedicada, feminina, que leva a sua maternidade até o último canto do lar, com delicada fortaleza. Este é o melhor fundamento para remontar as dificuldades -que sempre existirão em qualquer família- para resolvê-las também em família -“a roupa suja se lava em casa”- e para saber que por cima de brigas e desavenças persiste a verdadeira educação, embasada no amor. O lar é a usina das personalidades fortes, de homens e mulheres de ideal.