TEMPOS DE GLORIA 

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Glory) Diretor: Edward Zwick. Matthew Broderick, Denzel Washington, Morgan Freeman. USA 1989. 110 min

Mesmo os que –por gosto ou por profissão- guardamos uma certa intimidade com o cinema, não estamos livres das surpresas que os filmes nos trazem. Surpresas que vem em forma de ressonância afetiva que muda, com o tempo; talvez por que somos nós os que mudamos, e quando nos defrontamos com o mesmo filme, surgem temáticas diferentes, “insights”, porque nós já somos outros. Lembro de um livrinho que repousa na minha prateleira, com algumas conferências que o escritor Jorge Luis Borges pronunciou no final da vida. Numa delas –Borges Oral, chama-se o livro- o autor argentino diz que mesmo sendo cego continua a comprar livros e rodear-se da sua amável presença, porque necessita deles, dos livros. E –comenta abrindo a intimidade- que quando voltamos sobre o mesmo livro, passados os anos, parece que o livro mudou, como mudava o rio do filósofo Heráclito, que não  era o mesmo, por ser diferente a água que nele circulava, impedindo-nos de nos banhar duas vezes no mesmo e idêntico rio. Na verdade, diz Borges, somos nós os que mudamos, nós é que somos outros. 

Tempos de glória é um filme que exerce sobre mim um efeito similar ao que Borges descreve para os livros que lhe rodeiam. Encontro algumas anotações da primeira vez que vi este filme, sem suspeitar as surpresas que, com o passar dos anos, seriam provocadas pelos mesmos fotogramas. No seu dia o filme rendeu os seguintes comentários, que copio o textualmente dos meus arquivos. 

A guerra civil norte-americana tem brindado tema habitual para as produções cinematográficas. Tanto é assim que quase chegou a ser, em décadas passadas, lugar comum. Desta vez o tema de sempre nos surpreende com um tratamento diferente: a formação e o desempenho do 54º regimento de Massachusetts, integrado completamente por negros e comandado por um jovem aristocrata branco, o coronel Robert Shaw. O resultado é um filme excepcional, uma abordagem de argumento já batido e hiper filmado, com um lirismo e força dramática fora do comum. O filme é poesia pura, embrulhada em uniformes azuis e fumaça de canhões. O caráter épico se apaga diante dos valores de fundo -reações humanas- que emocionam e tocam nossa sensibilidade. A guerra é invólucro para as “guerras particulares”, que cada homem vai ganhando no decorrer do filme. 

O tema do negro -homem livre- é tratado com carinho e dignidade. A riqueza afetiva do coronel Shaw transparece nas suas cartas -âncora do filme- mas também no modo de olhar, de sorrir, de impor a disciplina quando necessário. A interpretação de Matthew Broderick é brilhante e nada deixa a dever ao excepcional desempenho de Denzel Washington -óscar de ator coadjuvante- no papel do negro revoltado, que encontra a conversão ao patriotismo no sofrimento da batalha. Destaque obrigatório para Morgan Freeman, um sargento cheio de virtudes e com sentido da realidade. 

A fotografia e os recursos que Zwick emprega são aspectos notáveis, não apenas nas espetaculares cenas de batalha, mas também nos momentos de intimidade muito bem conseguidos. A noite que precede a batalha final, a oração dos negros, é outro ponto alto. Logicamente, quando de lirismo e poesia se trata, a adaptação musical deve acompanhar o nível das cenas; e o consegue, numa trilha sob medida. “Tempos de Glória” é um filme obrigatório, que deve ser destacado pela sua alta qualidade entre as produções contemporâneas. Impõe-se pela técnica, pela beleza visual e plástica, com interpretações muito bem conseguidas. E, impõe-se, sobretudo, pelos valores que encerra -amizade, dignidade, ideal, valentia- que o diretor sabe transmitir em linguagem que fala ao coração e torna o espectador solidário das profundas ressonâncias afetivas que existem na alma humana. 

Os anos passaram e quando voltei sobre Tempos de Glória, uma vez e outra, com o desejo de mostrar a outros –alunos, amigos, colegas- os valores impressos na fumaça de canhões e nos uniformes azuis, temperado com música soul, reparei que eu também tinha mudado. Algo novo emergia com força na sequência que conhecia de cor, para impor-se com relevo definitivo: um verdadeiro tratado de Lições de Liderança. 

O coronel Shaw, aristocrata idealista junta o batalhão de negros, antigos escravos que, como soldados americanos, lutarão pela liberdade e pelo seu país. Armar um negro, mesmo para lutar pela União, era considerado perigoso, e os inimigos não reconheceriam neles adversários militares, mas uma massa de revolucionários. Por isso advertem que os prisioneiros seriam sumariamente executados, assim como os oficiais brancos que estivessem no comando. O coronel lê, com calma e claramente as regras do jogo, em noite cerrada e chuvosa. Não quer ninguém lutando por engano do seu lado, nem mesmo o colega, oficial branco, que lhe ajuda. “Quem quiser desistir,  poderá pedir a baixa de manhã” E dirigindo-se ao amigo “Se você não estiver aqui amanhã, entenderei perfeitamente”. O líder sabe que não está embarcando numa empreitada comum, que inicia o jogo perdendo, em desvantagem, e quer homens que saibam da situação e que livremente decidam seu futuro. E lhes deixa pensando durante uma noite, onde o maior sofrimento certamente foi para ele que está no comando. “Quantos sobraram? ” –pergunta logo de manhã. Todos estão lá. Os homens aderem com liberdade quando o jogo é também de coração aberto, em igualdade de conhecimentos, quando cada um tem de carregar com a sua parte de responsabilidade. 

Sucedem-se as dificuldades, e não apenas procedentes do inimigo, mas da incompreensão gerada no mesmo lado da batalha, no mesmo time. “Hoje me comunicaram que, mesmo sendo soldados regulares, como vocês são negros, receberam um salário inferior ao habitual no exército americano”. O coronel lê o comunicado do estado maior, e aguarda. Os soldados se revoltam, não querem pagamento de escravos, não aceitam pechincha, e rasgam o holerite, abrindo  mão do salário. O líder observa a reação dos homens e intervém: “Se vocês não vão receber salário, aqui ninguém receberá”. E, levantando a sua ordem de pagamento, rasga-a na presença de todos. Um sentimento de solidariedade inunda o batalhão que sabe ter no coronel um verdadeiro líder que lutará do seu lado até o final. Essa é a atitude de um líder, colocar-se no lugar dos seus homens, em verdadeira concórdia, que é no dizer de Ortega, coração -com- coração. Os falsos líderes, os populistas, teriam, por exemplo, cobrado seu salário e distribuído com postiça filantropia. Ou encaminhado um recurso. Mas abrir mão do próprio salário –do reconhecimento, do prestígio- para ser mais um do grupo, somente o líder consegue fazê-lo, com alegria e generosidade. 

O filme chega ao fim. O inimigo defende uma posição no alto da colina, quase inexpugnável. O general explica a situação e as poucas opções de ataque que restam: entreter o inimigo com um primeiro ataque, para tentar envolvê-los por detrás. Naturalmente, os que avancem em primeiro lugar terão poucas chances de sobreviver, serão a isca para o adversário. O coronel Shaw adianta-se: “O 54 de Massachusetts pede a honra de liderar o ataque”. O general olha com admiração e adivinha quem é o seu interlocutor. “Se não me engano os seus homens não dormem faz dois dias. Vocês terão a força para comandar o ataque?” O coronel, que nessa altura conhece os seus homens perfeitamente – o líder é mais um no grupo, sente e pensa como eles- afirma categoricamente: “Na batalha é preciso algo mais do que descanso, senhor. É preciso caráter, pujança de coração. Estaremos prontos”. Sei das virtudes dos meus homens, eu os formei, lutei do seu lado, conheço do que são capazes. Queremos essa honra para nós. Uma decisão imponente que se torna possível como corolário de um permanente trabalho de liderança e de formação. Não é bravata, nem imprudência; é labor esforçada diária na construção de homens que sabem o que querem. 

As surpresas não acabaram. Passaram mais anos, depois destas considerações e, há pouco, um velho amigo escreveu-me desde Boston onde estava fazendo um estágio. Tinha descoberto um memorial construído para o Coronel Shaw, que o povo da cidade de Boston lhe dedicava. Lembrou-se de mim, de todos esses comentários que já eram de domínio público nas sessões educativas de cinema que vivemos juntos, e enviou-me, por correio eletrônico, a foto do monumento dedicado a Robert Shaw. O emocionante foi a comentário que fez a seguir e que interpretei, pessoalmente, como um novo desafio. Parece que o governo tinha oferecido à família dos parentes de Shaw a possibilidade de transportar o corpo do herói para o memorial, pois está sepultado junto dos seus homens do 54o de  Massachusetts, caídos no ataque a Fort Wagner. A família foi contundente na sua reposta: ““Deixem-no lá. Está com os seus homens. Pertence a eles”. Uma liderança que ultrapassa o tempo, e o descanso eterno, para também brilhar com luz nova a pujança de coração, e o caráter. 

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