TOMATES VERDES FRITOS

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Fried Green Tomatoes) Diretor: Jon Avnet. Jessica Tandy. Kathy Bates. Mary Stuart Masterson. Mary Louise Parker. UUSA 1991. 125 min

Voltava de almoçar na casa de um amigo. Uma esplêndida tarde de outono, ensolarada e brilhante, convidava a pensar. Quis ordenar as impressões do filme que tinha assistido na véspera. Um comentário do meu amigo, minutos antes, enquanto tomávamos café, foi o ponto de partida. Os seus quatro filhos -crianças encantadoras, extremamente bem educadas- prestavam atenção na nossa conversa de colégios, professores, reuniões de pais. Olhando para eles, meu amigo disse: “Muitos vem problemas onde eu simplesmente vejo fatos. Tem quem consegue problematizar tudo, até a própria família”.

O trânsito fluía desimpedido nessa tarde de Domingo. Dirigia sem pressa, enquanto escutava o último ato de Norma, a ópera de Bellini. “Qual cor tradisti, qual cor perdesti…”, a voz de Maria Callas impunha-se com firmeza convincente: a infidelidade, a traição, é sempre uma perda. Ninguém lucra. Bem é verdade -pensei- que as óperas não são exemplo de simplicidade: o destino encarrega-se de complicá-las até as fazer desembocar em tragédia. Mas nos últimos momentos, os sentimentos humanos irrompem purificadores, resumindo tudo em amor que perdoa e promessas de fidelidade, mesmo morrendo no suplício da fogueira. Fiquei satisfeito enquanto ouvia: “Nel mio rimorso e amor rinato….” O amor, com o remorso, renasce mais desesperado do que antes. Minhas últimas palavras serão que te amo. Na hora da morte não me desprezes, antes de morrer, perdoa-me. É Pollione, o Romano arrependido que suplica pelo perdão redentor para morrer feliz junto à amada Norma. “Moriamo insiene, ah sim moriamo; sublime donna, perdona, perdon”.

O lirismo penetrante da música de Bellini e a simplicidade do meu amigo que se negava a problematizar os fatos juntaram-se às cenas do filme em agradável mistura. É o poder da simplicidade que se impõe, atraindo nosso espírito com curioso magnetismo. O simples, o belo, o bonito conquista-nos sem esforço.

Tomate Verdes Fritos é um filme de pessoas normais, delicioso e encantador, que contrasta com uma sociedade que respira problemas. Vivemos -como o meu amigo quis dar a entender- autênticas neuroses de problematização. Por isso, um filme que nos fala de pessoas normais, que amam, que se ajudam, que rezam, que riem e choram, enfim, pessoas tremendamente humanas, é cativante. Uma golfada de ar fresco que irrompe numa atmosfera carregada. Algo que se agradece, um descanso para o espírito. Mais ainda, quando sabemos que grande parte desses problemas são criados pelo próprio cinema -por não falar dos seriados e novelas da TV- que insistem em nos apresentar o homem como um ser problemático, complicado, incapaz de armazenar e viver um mínimo de virtudes.

            Contemplamos continuamente sujeitos movidos a egoísmo, a golpe de instinto, que guardam prudente distância dos seus semelhantes, nos quais vem concorrentes e fonte de complicações. Seres de plástico, esvaziados de qualquer atitude nobre, modelos que nos são impostos e que -graças a Deus- não correspondem à realidade. Esse é o marketing que, lamentavelmente, a TV e muitas vezes o cinema faz.

Infeliz de quem vai sofrendo a vida, suportando-a ou, na melhor das hipóteses, contornando-a. “Triste de quem é feliz/ vive porque a vida dura/ nada na alma lhe diz/ mas que a lição de raiz/ ter por vida a sepultura” diz Fernando Pessoa numa condena da mediocridade. Para viver a vida, e não apenas viver enquanto a vida dura é preciso ter ideal, e o ideal grande inevitavelmente transcende as fronteiras do eu -pequena parcela da realidade- para abrir-se aos outros, onde encontrará sua grandeza. Do contrário, o egoísmo faz ter por vida a sepultura, coloca no túmulo o egocêntrico, enterra-o vivo. Um túmulo com todas as comodidades e uma polpuda conta bancária. Um mausoléu ou uma pirâmide, mas só isso. A vida do egoísta é um espectro de morte.

Tomates Verdes Fritos é uma homenagem ao feminismo; um filme de mulheres que encontram na sua feminilidade a alavanca para as virtudes. Um canto à amizade, que vai destilando heroísmo com naturalidade, sem fazer barulho. Um duelo de gentilezas onde se descobre a aventura de ajudar o amigo sem que o interessado perceba.

O filme está bem feito, a história muito bem contada e os diálogos têm miolo. Mas isto é apenas o embrulho. O conteúdo nos surpreende, dentro da sua simplicidade, com a capacidade de doação de pessoas que fazem questão de pensar nos outros. Diríamos que lutam pela sua transcendência, querendo nos mostrar, uma e outra vez, que compensa ocupar-se dos demais. Não fazê-lo levará sempre à complicação, à tristeza. É como a infidelidade que canta Norma: é uma perda, nada se ganha.

Tudo isto é salutar, ajuda a simplificar-nos. É até terapêutico; prevenção de todo tipo de desequilíbrios. Fica registrado o recado, divertido, na cena de terapia conjugal que não resiste à conversa franca e descomplicada de quem cursou a matéria da generosidade e sabe administrar lições de vida no veículo da amizade. As aulas, parece dizer-nos Evelyn, são para as mulheres de plástico, para as problemáticas. E inútil falar de estrelas a quem vive dentro do seu túmulo. Poderá, quando muito, imaginar as constelações, se tiver boa imaginação. É tão simples olhar para cima, quando se vive ao relento, sem castelos protetores, prontos para ajudar os outros.

Já dizia alguém que a maior parte dos problemas surgem da própria imaginação, da capacidade que o homem tem de enfronhar-se no seu próprio eu, prescindindo olimpicamente dos demais. Por isso, quem procura a felicidade a tudo custo, diretamente, fazendo questão de ser feliz somente recolhe amarguras. A felicidade compra-se por tabela, não diretamente, se ganha de brinde. Isto queria dizer Kierkegaard quando aponta “a porta da felicidade abre-se para fora e quem tentar forçá-la em sentido contrário a fecha ainda mais”. É preciso ter a coragem de abrir a porta, devassar o túmulo e estar disposto a servir. Isto engrandece o homem.

Cheguei em casa quando tocavam os últimos compassos de Norma: “Il tuo … Norma, é il mio, te piu santo incomincia eterno amor”. Liguei para o meu amigo agradecendo a hospitalidade e recomendando-lhe o filme que, agora sim, estava convencido de que lhe agradaria: a sintonia dos fatos e não dos problemas. E procurei um ensaio que tinha lido há tempo: Estudos sobre o amor, de Ortega. Deparei-me com estas palavras que encerraram minha tarde de Domingo: “Se algumas dúzias de mulheres, habilmente colocadas na sociedade, educaram sua personalidade até fazer dela um perfeito diapasão de humanidade, um instrumento de sensibilidade para formas de vida melhor conseguirão mais do que todos os pedagogos e os políticos (…) A mulher exigente fará com que o coração dos homens bata em novo ritmo, despertará ideais inesperados nas suas cabeças, novas ambições e projetos, a existência toda marchará em cadência ascendente e o país onde esse feminismo apareça florescerá triunfante uma histórica primavera, toda uma vida nova – vita nuova!

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