UM SONHO DISTANTE

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Far and away).  Diretor: Ron Howard. Tom Cruise, Nicole Kidman.  USA 1991 136 min.

As lembranças que todos guardamos da infância constituem uma peculiar cultura do ser humano. São pedaços de sabedoria, lições de vida, que o tempo e as circunstâncias se encarregam de desempoeirar no momento certo, tirar brilho e torná-las úteis. Lá estão elas, amontoadas em algum recanto imaterial da nossa memória, sem ocupar espaço nem fazer barulho. Certamente, quando lá foram colocadas, muitas delas contra a nossa vontade, não fazíamos ideia da utilidade que, passados os anos, teriam. Na verdade, as lembranças da infância mal se percebem, nebulosamente, nos primeiros anos de vida. É depois, durante a vida adulta quando adquirem sua verdadeira dimensão. Projetam-se em perspectivas que tinham passado despercebidas.

            As lembranças são fatos, coisas e, sobretudo, pessoas. Ou melhor, atitudes das pessoas. Pensava no Gerardo, amigo do meu avô, enquanto as cenas de “Um sonho distante” acudiam à minha cabeça. Colega de muitos anos, solteirão convicto, vinha nos visitar alguns fins de semana. Gerardo era um bom apreciador do vinho, do vinho fino, do “Jerez” como dizem na minha terra, e que, injustamente, os anglófonos encarregaram-se de divulgá-lo como “Sherry”. Jerez seco, semisseco, doce: cada um tinha o seu momento e os acompanhantes precisos. De tudo isto o Gerardo entendia, além de ser um papo excelente. Embrulhava as histórias em Jerez, ou o vinho em histórias, não sei; mas ambos os elementos caminhavam juntos. Gerardo bebia com moderação, pouco até, mas o fazia com gosto, saboreando, tirando partido de cada gole mínimo, reparando nas essências. Até nós, crianças, que tínhamos vedado o acesso a semelhantes requintes de adultos ficávamos entusiasmados e quase percebíamos no paladar o comentadíssimo sabor, com todos os seus epítetos e qualificações. Como se pode falar tanto de algo tão simples como é um vinho?

            Era capaz, o Gerardo, de estar horas discursando sobre as virtudes daquele vinho. E, para surpresa dos iniciantes, quando experimentava um novo tipo, despontavam verdadeiras sentenças, parcimoniosas, como as de um juiz traquejado. Demorava um bom tempo após o primeiro gole, olhava para o cálice que fazia girar na mão com destreza inigualável, colocava-o em cima da mesa, recostava-se no sofá e depois, estalando os lábios, proferia o veredicto. Sempre me causou estranheza a demora no comentário, o paladar retardado do Gerardo, como se fosse sentir o gosto no estômago. Um dia ele me explicou: “O vinho se conhece pelo que deixa na boca, pelo que sobra depois de engolir”. Vez por outra, quando o Gerardo já tinha ido embora, antes da minha mãe recolher a mesa, atrevi-me a beber, apressadamente, as gotas que porventura tinham sobrado no fundo do cálice, na esperança de experimentar o magnífico sabor. Decepção. Não era a mesma coisa. O Jerez sabia melhor -imaginava eu- nos comentários do Gerardo do que “ao vivo”. Nem fazendo os movimentos de “demora” conseguia me aproximar do sabor, único, descrito pelo amigo.

            O correr da vida mostrou-me que o Gerardo tinha razão, e que a sua ciência de saber esperar, de julgar pelo que “sobra na boca” é útil para fatos e circunstâncias. Passado o primeiro impacto, quando a poeira assenta, e apreciamos o que permanece, nossas ponderações têm maior realismo. Assim acontece também com os filmes que, como alguém comentou acertadamente, quando são bons nota-se no dia seguinte, no café  da manhã, que parece ter outro gostinho.

            Assisti Um sonho distante com preconceito. Embora na moda, confesso que nunca gostei de Tom Cruise e a perspectiva de empregar duas horas, que poderiam ser de sono, numa empreitada cinematográfica não era nada atraente. Tanto assim que comecei assistindo ao filme de pé, junto da porta, preparado para me retirar. As belas paisagens e a trilha sonora atuaram com tonificante pois quando reparei estava sentado, e o cansaço que sentira minutos antes tornava-se suportável; pelo menos o filme concorria com ele em igualdade de condições. Vi a fita até o fim, e fui dormir com uma sensação agradável, sem remorsos por ter roubado mais de duas horas ao repouso que o meu corpo pedia.

            Lembrei do Gerardo no dia seguinte, quando as cenas do filme desfilavam pela imaginação. Sentia um bom sabor de boca, e não pude menos que associá-las às teorias do bom Jerez. E como as lembranças da infância vem sempre em cascata, misturado com os aromas do Jerez e o verde da Irlanda, irrompia na minha frente as sequências de Depois do Vendaval (The Quiet Man), aquele filme fantástico de John Ford. A impetuosa Irlanda, a briga de John Wayne com Victor McLagen, a teimosia encantadora de Maureen O’Hara, enfim, um verdadeiro quadro de costumes e de temperamentos difíceis de esquecer.

            O sonho distante é a América por conquistar, aonde chegam Sharon e Joseph, no êxodo dos irlandeses à procura de terras que são oferecidas gratuitamente. Uma tentativa por atacado de colonizar o continente americano. O orgulho e altivez de Sharon fazem dela uma réplica moderna da Maureen O’Hara. E Joseph, rude, ignorante, analfabeto é um poço de coragem e determinação. Encontram-se orgulho e coragem, atritam-se, pois não há acomodação possível sem polir arestas destes temperamentos briosos. E, quando lapidados, ao ritmo de aventuras empolgantes, aparece a virtude que conquista: a nobreza de alma.

            Um filme movimentado, atraente, que prende a atenção. Brigas e pugilismo, ciúmes, vingança e perdão. Mesquinhez e magnanimidade. Um festival de sentimentos humanos servidos ao natural, convidativos, que fazem entrar em sintonia. Uma história de nobreza e amor tecida em ritmo de aventura.

            Um sonho distante lembra, e muito, o filme de Ford. Foi isso que percebi no dia seguinte, e o que, inconscientemente, me atraiu na hora de vê-lo. O fascínio que me prendeu fazendo esquecer o propósito inicial de desistir. Um filme moderno, com fundo de antigamente, que transpira romantismo, substância rara neste cinema de fim de século.

            É bem provável que os valores impressos no filme passem despercebidos para quem não tenha um ponto de referência como o filme de Ford. É aqui onde intervém as lembranças da infância, essa cultura escondida que emerge com força, ajudando-nos a penetrar no âmago das coisas, salvando-nos da superficialidade. Sem dúvida muita da riqueza do homem está nas suas vivências, em saber ler à luz delas o que a vida lhe vai apresentando. Quem carece de vivências, de raízes, de berço vital, será sempre pobre mesmo que se afogue em ouro. A falta de sensibilidade para os valores que desfilam diariamente na nossa frente é, sobretudo, pobreza interior, falta de ressonância. Uma cegueira seletiva, progressiva, que é quase epidêmica.

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