O REI LEÃO
The Lion King. Disney. USA 1994
Um pensador contemporâneo, num ensaio sobre a amizade, aponta que a sincera franqueza é própria do santo, da criança, e do louco. Surge no louco por carecer de inibições; na criança por não perceber o alcance das suas palavras. A possui o santo por ter perdido a vergonha e o medo dos homens, sabendo-se sempre diante de Deus. Talvez por isto os filmes que querem ser francos, falar verdades, as embrulham em roupagem de criança, ou de loucos. Os santos –assim, de cara- não são tão politicamente corretos, e as verdades poderiam tornar-se um pouco indigestas. Ficamos, pois, com crianças e loucos –pontos fora da curva- para dar os recados que os homens precisam ouvir. E dentro deste universo onde se podem falar as verdades tremendas, com suavidade e sem machucar –mas dissecando a alma que está receptiva- os filmes para crianças são um capítulo especial. Não já filmes de crianças, mas produções que foram feitas “para as crianças”. Existe algo mais inocente e inócuo? Quem poderia se posicionar defensivamente diante de ingênuos desenhos animados, por exemplo? O Rei Leão é um exemplar único nesta categoria.
Quem não tem este filme em casa? Quem não projetou inúmeras vezes para os filhos, os irmãozinhos, para os sobrinhos e netos? Quem não gosta de ver as aventuras de Simba, as maldades de Scar, a fortaleza de Mufasa, enfim, a figura singular de Rafiki, o Mandril. O convívio doméstico com a produção da Disney, como se de animal de estimação se tratasse, não deve chamar-nos a engano. Não apenas é um filme para todos os públicos, como é dos filmes que a experiência mostra possuir maior impacto educacional. Assim o temos comprovado, em variados auditórios, com público diverso, de todas as idades. A identificação com a personagem de Simba é automática, e os questionamentos surgem com dimensões imprevistas na alma de cada espectador.
Simba está na boa vida. Canta e dança, ao ritmo de Hakuna Matata, sem maiores preocupações. Ocupa o tempo em divertir-se, pois, afinal é um filhote órfão. Mas o tempo passa, a juba cresce, e Simba se transforma num Leão, sem perceber, ou melhor, sem querer perceber a mudança. Aparece Rafiki que lhe provoca. “Macaco, maluco; você não sabe o que diz. Você está louco”. “Eu? Não, é você quem está fora de sintonia, você que não sabe quem é. Mas eu vou te dizer: você é o filho de Mufasa. Conheço teu pai”. “Lamento dizer que morreu há muito tempo”. “Não , ele vive.”. Está feita a provocação e Simba segue Rafiki que lhe mostra um pequeno lago, convidando-lhe a olhar e ver o seu pai. “Esse não é meu pai. É apenas o meu reflexo.” “Olha com vagar, com profundidade”. Simba passou tanto tempo na frivolidade que esqueceu de olhar a fundo nas coisas, na vida, em si mesmo. Repete a operação e, agora sim, a voz de Mufasa se torna clara. “Simba , esqueces-te de mim” “Pai? Eu? Não, de jeito nenhum”. Mas Mufasa retruca sem folga: “Esqueces-te de quem es, e por tanto esqueces-te de mim. Você é muito mais disso que estás fazendo. Você é o Rei Leão. Lembra-te sempre”.
Existe recado maior e melhor dito de modo mais inócuo? É o maior questionamento vital que se lhe pode fazer a alguém: lembra-te de quem es, assume tua condição, para com essa vida de festa e vale tudo, e carrega a responsabilidade que te cabe. Estás esquecendo as tuas origens, o que es, o que deverias ser. Estás completamente perdido.
A arte de perguntar –perguntas vitais, se entende- é antiga. Sócrates foi condenado e eliminado porque perguntava demais, e foi acusado de corromper a juventude grega porque fazia muitas perguntas. Todas incômodas, como as de Rafiki, como as de Mufasa. A educação moderna, quando de ensinar virtudes e atitudes se trata, tem de incorporar a ciência de perguntar –a Maiêutica Socrática em versão moderna- para obrigar àquele que está aprendendo a perguntar-se quem é, que é o que quer, qual é a sua missão. Não são respostas que devem vir prontas, fabricadas, mas sim provocações que o professor, o pai, o formador deve continua e serenamente dirigir ao seu interlocutor. A ficha tem de cair por si só –por utilizar uma linguagem moderna. E, nesta empreitada de provocar reflexões, o Rei Leão é um prato cheio, uma oportunidade excelente.
Em certa ocasião me convidaram para falar de cinema e educação num colégio, onde gentilmente a professora de filosofia cedeu a sua aula para que eu pudesse falar. Não lembro o que disse exatamente, mas lembro da reação –incrível – da jovem plateia perante as cenas de O Rei Leão. Sorrisos, sustos, alguma lágrima, e muita animação: todos queriam falar, contar, participar. A professora tinha convidado o coordenador do curso de filosofia que, no final, comentou: “Hoje o programa tinha previsto falar de Sócrates e do seu método. Penso que ele não ficou nem um pouco incomodado vendo Rafiki e Simba assumir o seu papel de mestre”.
Verdades essenciais, perguntas vitais, em linguagem de criança, com desenhos animados e uma encantadora trilha sonora, para colocar em cima da mesa –e no fundo das consciências- os maiores questionamentos que o homem tem de se fazer se pretende ser homem de verdade.