CORAGEM SOB FOGO       

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Courage under fire) Diretor: Edward Zwick. Denzel Washington, Meg Ryan, Lou Diamond Phillips. USA 1996. 120 min

As guerras rendem mortes, sofrimento, algumas alegrias no fim, e, com o tempo, filmes. A segunda grande guerra deve ser ainda campeã nos fotogramas que hoje nos aparecem certamente desbotados. Veio depois Vietnã, com traumas e complexos de culpa; um cinema psicanalítico onde o campo de batalha faz as vezes do divã, e o diretor jorra suas frustrações bélicas e pessoais. Agora é a guerra do golfo -a invasão do Kuwait pelo Iraque- a que empunha a batuta no concerto dos complexos sentimentos humanos. Porque afinal a guerra é sempre desculpa, no cinema do presente, para os combates que os homens travam no seu interior. Essa é perspectiva dominante nos filmes bélicos:  simples veículo, papel de embrulho, para as lutas corpo a corpo. Às vezes até no mesmo corpo quando a consciência é chamada para a briga.

            O coronel Nat Serling lidera uma operação militar contra os iraquianos. É noite, e os blindados americanos atacam as posições inimigas com força contundente. Surge o contra-ataque e o coronel manda localizar o agressor e abrir fogo. Um tanque americano não identificado é atingido pelos companheiros e um soldado morre como consequência do erro, embora a batalha é ganha. Serling é condecorado como herói, igual que o soldado morto. De volta à pátria o Coronel -insatisfeito com as explicações, politicamente corretas, dadas à família do militar desaparecido- é encarregado de uma nova missão: investigar os testemunhos da patrulha que acompanhava a capitão Karen Walden, morta em combate, e a quem se pretende entregar, postumamente, a medalha da honra ao mérito. Até aqui os prólogos: o filme, naturalmente, vem ganhar corpo com essa nova missão. O exame das testemunhas é o miolo desta produção original.

            Edward Zwick já tinha feito parceria com Denzel Washington quando dirigiu Tempos de Gloria  aquele filme da guerra civil americana, também maravilhoso pretexto para falar de camaradagem, honra, lealdade e perdão. Coincidência ou não, a dupla repete a dose, e quase se supera. Denzel Washington maduro, com domínio da cena, preenchendo o filme todo, procurando a verdade e, no vácuo, a paz da própria consciência. Meg Ryan, a candidata à medalha póstuma, é ressuscitada em sucessivos “flash-back” e por isso não passa de uma coadjuvante discreta. O público presta atenção, nas sequências das testemunhas, ao desempenho de Karen Walden, enquanto o coronel Serling encontrará nela a melhor alavanca para desembaraçar-se do peso que lhe oprime. Tem, também, sua justa medida de psicanálise, ou, se preferirmos, de redenção da culpa. A capitã morta será, como o bom analista, a calçadeira que ajuda o doente a colocar seu pé no próprio sapato.

            O filme não é uma crítica aos modos políticos do exército, nem à hipocrisia das formas, nem mesmo um filme de inquérito. Essa seria uma análise periférica, das aparências, insuficiente para alcançar o fundo do que se ventila, primeiro nas entrelinhas, depois em letra de forma, descaradamente. Porque o filme tem sua evolução, e o que aparece primeiro como destaque vai se transformando em secundário, para dar passo ao que realmente importa. Um giro com talento que faz o filme pegar no tranco, atraindo o espectador que estava esquentando motores. E quando decola percebe-se o horizonte que atrai: uma apologia franca da procura pela verdade.

            Tema espinhoso este da verdade; mais incômodo do que difícil. “Há um problema ético na raiz das dificuldades filosóficas. Os homens são muito propensos a procurar a verdade, mas pouco inclinados a aceitá-la. Achar a verdade não é difícil; o difícil é na fugir dela uma vez que se encontrou”. As palavras de Gilson, que certamente não tinham o cinema como alvo, o atingem com precisão quando o cinema faz questão de mexer com a transcendência, com os valores. E, curiosamente, funcionam como um belo resumo deste filme. A fuga sistemática da verdade que compromete faz com que sejam tortos os caminhos para aproximar-se dela, para chegar perto de modo indolor. E, com frequência, nem se abraça com paixão, na totalidade, mas em cômodas prestações. São as meias verdades, ou as verdades diminuídas das que fala o outro filósofo, Maritain, que servem para alimentar as almas quando a verdade completa é forte demais, quase indigesta.

            A mentira tem pernas curtas, ensina o ditado. Pernas curtas para correr dos outros, e do ímpeto da verdade que sempre chega. A mentira disputa uma corrida que está perdida de antemão. Mas quando a mentira quer correr contra a consciência nem de pernas precisa; anda em círculos, como um parafuso que penetra e oprime o fôlego da alma. “Não podemos fugir das mentiras, das falsidades. Ou melhor, podemos fugir durante algum tempo, mas, quando você menos espera, lá vêm elas à tona, já não são mais tão submissas como na hora em que as dissemos, aparentemente inofensivas, nada disso; durante o momentâneo afastamento, transformaram-se em monstros medonhos, em horrorosos ogros. Mal chegamos a nos dar conta e, na mesma hora, já estamos sendo vencidos, devoram-nos e a tudo que está em volta com uma voracidade espantosa”. É Susanna Tamaro, dando a palavra a uma avó que ensina lições de vida para a neta rebelde em Vá onde seu coração mandar. Em se tratando da verdade não há como fugir dos pensadores, nem dos literatos, nem de qualquer um que  pare para pensar no ser humano.

            Edward Zwick pensa no homem, com aprumo de filósofo e o traduz em imagens. O seu cinema faz pensar, na hora e, sobretudo, depois. É de efeito retardado, quando existe um mínimo de ressonância interior que permite aflorar as reflexões como eco do celuloide. A batalha está ganha no fim quando se presta fidelidade à verdade que -excelente recado em forma de medalhas de honra ao mérito- rende sempre ótimos lucros. Tudo é como deve ser, sem tramoias, às claras, de peito aberto. Uma atitude imprescindível para viver em permanente paz de consciência, sem os piores inimigos que tiram o sono e esgotam a própria vida, sangrando-a em culpas não saradas. Essa é a artilharia e o fogo sob o qual deve se ter a coragem de pedir perdão a Deus, aos homens, a nós mesmos. É desse modo como os homens íntegros ganham suas guerras particulares e conquistam as condecorações da virtude.

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