SEGREDOS E MENTIRAS

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Secrets and lies) Diretor: Mike Leigh. Timothy Spall, Brenda Belthyn, Marianne Jean
Baptiste.Inglaterra 1996. 141 min.

Prêmio do festival de Cannes 96, e concorrente ao Oscar de melhor filme esta produção inglesa nos lembra algo que é sabido: a vida não é um mar de rosas. E o faz de um modo duro, sem poupar incômodos, embrenhando-se pelas asperezas da existência de cinco criaturas que se repartem o filme. Atuação impecável de todos, credibilidade dos papeis. Seguindo sempre a melhor tradição do cinema inglês, que toma emprestado do teatro a força de interpretação, e com ela a qualidade e a classe.

            Cynthia é mãe de Roxana. Relacionamento difícil, engasgo permanente: a mãe ama a filha, que por sua vez não fala com a mãe a quem não perdoa sua própria existência como um acidente de percurso. Cynthia é pura vulnerabilidade, sensibilidade de mulher destratada pelo mundo e pelos homens. Hortence é o outro vértice do triângulo, mais um equívoco da vida à procura de suas raízes, que, naturalmente, conduzem até Cynthia. “Não é possível que eu seja tua mãe. Eu nunca estive com um preto…”. Pausa, vagas lembranças, lágrimas que se misturam com o chá, vergonha que desponta esmagando a mulher. “Não tenho coragem de olhar para você”. O irmão de Cynthia é o fotógrafo que registra cenas de casamento: “As fotos são o mais fácil, querida. O difícil vem depois”. Um lamento saturado de ceticismo, na tentativa de plasmar uma estabilidade em que não se acredita. Não tem filhos; a sua mulher é outra maltratada pela natureza, e, como todos neste filme, com carências enormes de amor.

            O violoncelo, preciso, grifa pateticamente o sofrimento que escoa nos fotogramas. Acordes graves, contraponto de egoísmos, melodias que suplicam  compreensão, carinho, clamando por  uma ternura que não existe. É duro sentir que estamos no mundo contra a vontade daqueles que, por gerar-nos, teriam de nos amar. Como se o existir fosse um tropeço, um descuido imprudente de quem não colocou o cinto de segurança. Duro é viver sem raízes, num fazer de conta, acumulando mágoas e rancores como credores de um mundo que está em débito permanente de amor. Pensar que a vida pode ser uma paixão inútil não é conclusão distante das teses do filme.

             Encontra-se saída para este emaranhado? O fotógrafo decide revelar os negativos destas cenas de miséria num ato de coragem. “Passo a vida toda fazendo fotos, arrumando as pessoas, vestindo-as de felicidade, e os que mais amo no mundo estão aqui, do meu lado sofrendo. Estamos todos sofrendo. Vamos pôr para fora tudo isso que está engasgado” A roupa suja lava-se em casa. Em resumo, esse é o seu recado. Franqueza necessária, transparência que é condição vital para sobreviver, para amar, para deixar-se querer. Não há nódoas que resistam ao carinho, detergente eficaz no âmbito doméstico e também na sociedade. Mas é bom não deixar acumular roupa demais, manter uma rotina de sinceridade habitual para evitar mutirões de limpeza, que acabam machucando. Tal vez seja este o principal mérito de um filme que é dedicado a público restrito,  todo ele tecido com as penosidades de criaturas que mais sofrem do que vivem. Uma vida que não é tudo flores -sem dúvida- mas não tem por que ser necessariamente indigesta.

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