A Ópera na Educação Humanística da SOBRAMFA

Staff Educação Médica Leave a Comment

A Opera esteve presente na Educação Humanística da SOBRAMFA desde os inícios. Alunos e professores combinaram para assistir representações de Opera na cidade de São Paulo conforme a agenda permitia: a agenda deles, e, sobretudo, a agenda dos eventos operísticos.

A assistência das Operas costumava ser precedida por uma explicação simples -argumento, destaque para as principais passagens, árias e duetos de maior impacto- de modo que os alunos conseguiam abrir os olhos e ouvidos para essa forma clássica de arte.

Esta atividade rendeu trabalhos acadêmicos apresentados em Congressos Internacionais, tanto em USA como em Europa, e também Publicações.

A seguir, recolhe-se a crônica resultado do primeiro encontro para assistir uma Opera. Corria o mês de Novembro de 1997. O Elixir do Amor, de G Donizetti, foi a overture inesquecível deste projeto educacional.


Crônicas Universitárias – O ELIXIR DO AMOR

São quase oito horas da noite, e a vinte e três de maio não anda. Chuva, trânsito denso, nervos no asfalto querendo me impedir de chegar na hora. Desligo o rádio; não tenho o menor interesse em saber como estão os congestionamentos de São Paulo. Para mim, tanto faz e isso não vai resolver o meu problema que é estar na frente do Theatro Municipal às oito. Uma fita de Maria Callas, no console, acena para mim; é “La Sonambula” de Bellini. Teremos de levar o pessoal para ouvir Bellini em outra ocasião. Já pensou, por exemplo, assistir Norma? Uma história de fraquezas e infidelidades, de grandeza e compromisso, com druidas e romanos? Tempo haverá para tudo isso… Agora o encontro é com Donizetti, que vende o Elixir do Amor. Finalmente, a trânsito flui, em soluços prolongados, e enquanto tento lembrar a ária do Barítono, logo no início da ópera, atrevo-me a ensaiar algumas “costuradas” na descida da vinte e três. Tudo parado na Brigadeiro. Largo o carro no estacionamento da APM e vou a pé -quase correndo, quem o diria- até o Municipal.

O calor aperta; tiro o paletó. Lá estão eles, nas escadas. Vou ter que ouvir aquilo de sempre: “Ei, professor; pensávamos que não vinha mais”. Sem querer, os argumentos de praxe vêm à minha mente: Quem me manda a mim embarcar nestes programas? Afinal, o meu compromisso não é dar umas aulas às quintas feiras de manhã? Como é que consigo inventar tantos desdobramentos, e complicar-me a vida? Nunca mais!! Mas já sei que estas decisões duram pouco… Coloco o paletó, ajeito o nó da gravata. Cruzo devagar a rua, e subo as escadas despreocupadamente. Vou desculpar-me pelo atraso, mas não tenho chance. Os sorrisos me recebem compreensivos. Ainda bem, estou em casa.

As moças, todas, lindas. Capta-se no ambiente a espera, a preparação, o ritual da arrumação. Lembro-me de Ortega, da alma feminina: “que droga, estou sem roupa nenhuma para vestir…” E, no fim, dois toques que decantam em visual deslumbrante. Os rapazes compostos, elegantes, enfim, mostrando que para bater o martelo é preciso embrulhar-se convenientemente. Numa vista de olhos contemplo o panorama da escadaria. Sinto um orgulho surdo de estar aqui, de estar com eles, e todos aqueles propósitos de limitar-me a cumprir tabela às quintas de manhã, são já água passada. O perfume que tempera a visão de uma turma de universitários -afinal, os meus alunos, tudo seja dito- traz a lembrança da aula sobre o pudor e a intimidade. E penso, sorrindo por dentro, que é difícil reconhecer alguém de pijama, ou de maiô quando as partes impessoais tornam a alma opaca. Agora a dificuldade é outra: no bom gosto a alma explode, é uma avalanche de espírito o que me cerca. Por que não será sempre assim? Toda essa conversa sobre convencionalismos, sobre estar à vontade nas aulas, o visual “fast-food” que terceiriza as festas e esvazia o espírito. Por que não pode ser sempre assim?

Está quase na hora. Comento rapidamente os melhores trechos do primeiro ato. Noto -não sei se com vaidade ou medo- a presença de algumas mães, que foram também convidadas estrategicamente para a ópera. O que estarão pensando? . “Afinal, este sujeito dá aula do quê mesmo? Medicina Psicossomática, antropologia, medicina de família, sei lá…. E esta idéia da ópera? Vamos conferir” Estão certas elas; é a força da família, a mãe que vê e observa, silenciosamente, em atmosférico clima, modelando os temperamentos dos filhos.

Entramos. Não, não é aqui. Subimos mais dois lances de escada, e nos sentamos quando se ouvem as notas do prelúdio. Abre-se a cortina. O cenário é esplêndido, não poupa recursos. Uma vila italiana, do século XIX. Olho de relance à minha volta, e vejo caras sorridentes, uma mistura encantadora de surpresa e expectativa. Nemorino entra em cena e, sem vergonha, nos situa na sintonia do lirismo. “Quanto é bella, quanto é cara”. Morro de amores por ela, uma mulher culta, que estuda e progride, enquanto eu, um pobre coitado que mal sabe ler, não passo de um ignorante. Adina é o centro das atenções. Chega o sargento Belcore, um perfeito vaidoso, confiante no poder de fogo do seu uniforme: na guerra e no amor, ninguém resiste. Será que é isso o que procuram as mulheres? Não posso evitar pensar, enquanto ouço a ária maravilhosa do barítono, que tem muito sargento Belcore por ai, ridiculamente enrustido, pensando ser um estouro quando não passa de espantalho. O duo é fantástico: Adina justifica sua frivolidade:  “Sou como o vento, como a brisa, que sopra de um lado ou outro, e me curo de um amor, substituindo-o pelo seguinte”. Ninguém acredita nessa conversa que é puro charme, nem mesmo o bobo Nemorino: “Não pergunte porque procuro o teu coração. Do mesmo modo que rios, e córregos caminham para o mar, assim o meu afeto gravita pelo teu ser”. Bravo Nemorino, vamos colocar as coisas como devem ser. Pena que os homens hoje sejam tão pouco decididos, analfabetos de ideais, e fiquem por conta dos caprichos das mulheres; quer dizer, são elas as que se submetem à mediocridade deles pensando, deste modo, conquistá-los. Difícil geometria quando o que impera é a pobreza interior, e o culto da fachada é a moda. O que todos fazem, sem saber por que o fazem.

Entra Dulcamara. Bárbaro. Excelente ator; e tem de ser mesmo para que a ópera não perca força. “Udite, o rustice”. A voz do baixo, entremeada de toques cômicos, conquista a plateia. O elixir vende-se por três liras. Nemorino gasta suas parcas economias na mágica receita do amor, e encara Adina com indiferença. Perplexidade, o que houve com ele? “Assim somos as mulheres -diz uma personagem de um drama clássico do século XVII- que quando queridas desprezamos e, quando odiadas, queremos”. É a história de sempre, que os homens não acabamos de aprender; talvez por isso o mundo é mesmo das mulheres.

A vingança está preparada. Adina casará com Belcore hoje mesmo, e o elixir não terá tempo de surtir efeito. Nemorino canta impregnando de lirismo o teatro: “Aspetta ancora..um giorno solo, um breve giorno….Domani o cara, ne avresti pena, te ne dorresti al par di me”. Te arrependerás, se não esperas; amanhã lamentarás tua imprudência, mais mesmo do que eu. A reflexão torna-se inevitável,  e a emoção nos envolve pensando no bate-pronto das paixões, que lamentamos depois. São os carnavais da vida, as alegrias impensadas que têm, todas, sua Quarta-Feira de Cinzas. E por motivos vitais, talvez aquela afinidade com a arte que nos inunda e faz sonhar, lembramos da cena do aeroporto de “Casablanca”, quando Rick diz a Ilsa que entre no avião rumo a Lisboa: “Se não o fazes te arrependerás um dia; talvez não hoje, nem amanhã, mas um dia”. Sinto Bogart e Nemorino, cantando a duas vozes, os valores da vida, dentro de mim. Um pouco disso, penso, acaba aparecendo espontaneamente, nas nossas conversas -são mais conversas do que aulas- nas quintas feiras de manhã.

Intervalo. Encontramos os que não tínhamos visto na entrada. Todos vibrando. É um momento delicioso. Impõe-se um refrigerante, pois a emoção também seca a garganta, mesmo sem cantar. Combinamos uma foto no final. Começa o segundo ato, com a barcarola maravilhosa de Dulcamara, que canta o que ninguém -nem ele mesmo- acredita: o amor é volúvel, o dinheiro eterno. Nemorino, sem querer, fica rico, e as donzelas se prostram aos seus pés. Adina decide enfrentar a situação e declara seu amor por ele. Belcore dá de ombros; mulheres não me faltam, tenho-as em qualquer canto. Cômico este Belcore; assim são os Don Juan, provocam riso, quando não pena. Nemorino é o triunfo da simplicidade e, nela, do amor verdadeiro. Fecha-se o espetáculo.

Várias tentativas são necessárias para a foto da “escadaria”. Finalmente conseguimos, justo no momento que nos informam que é proibido fazer fotos. Isso dá um sabor especial à empreitada que é -todos o intuímos- um desejo de imortalizar o instante, de congelar os momentos de felicidade. Caras alegres, agradecimentos, tudo foi ótimo. Sinto-me, também, feliz. Não importa se sabemos ou não explicar o motivo; há coisas, importantíssimas,  na vida que não precisam de explicações, e que quando queremos justificar perdem o seu encanto. Assim é arte, a poesia, a música. É evidente que há sentimentos que somente podem se exprimir com música; mesmo sem conhecer o argumento, sem entender o idioma, a sintonia se produz, atinge-se o coração e conquista nosso afeto. Por isso todos saímos radiantes quando a noite já avança, serena e cálida, nas ruas da cidade. Declino gentilmente um convite para jantar pois digo a mim mesmo que é o momento deles. Na verdade quero voltar só para casa, saboreando as lembranças  úmidas das gotas do elixir de Donizetti, que salpicam os veludos e dourados do Theatro Municipal. Atravesso a rua, olho para trás. Suspiro enquanto procuro ordenar as ideias. Sim, é isso; é uma fresta que a arte e a convivência abrem na nossa alma, pavimentada de tecnologias, para podermos enxergar melhor o ser humano, e servi-lo como médicos. Não há dúvida; sim, isto é também a Universidade.

Pablo González Blasco
Novembro, 1997

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