O CINEMA DE FRANK CAPRA
Às terças feiras à noite -isto faz mais de 50 anos- a televisão dedicava um programa aos astros do cinema. Lembro de um simpático velhinho, um pouco fanhoso e muito compenetrado, que fazia alguns comentários antes de passar o filme. Mais do que comentários eram afirmações rotundas: resultava evidente que para ele o cinema era algo muito sério. Não apenas um passatempo, como algum dos telespectadores poderia irresponsavelmente pensar, comodamente sentado na poltrona, depois do jantar. “Se você quiser relaxar, ou dormir, melhor mudar de canal. Aqui vamos trabalhar, vamos ver cinema do bom”.
Penso que nunca chegou a dizer isto, mas era o que eu -criança- conseguia ler nas suas feições. Provavelmente isso contribuiu para engordar minha curiosidade pela sétima arte. E, certamente foi lá onde ouvi pela primeira vez falar de Frank Capra. O velhinho fazia uma pausa, tomava fôlego e até enchia a boca quando pronunciava este nome. Deve ser alguém importante – pensei. Alguém muito sério, como este senhor…
Os programas de terça à noite eram ótimos. Não conseguia relacionar o que o comentarista falava com os filmes que, apesar da seriedade do velhinho, divertiam-me à beça. As imagens que de lá guardo sempre me acompanham, com o sabor peculiar do que marca na infância. James Stewart, que ficava de pé horas a fio para “manter a palavra” no senado americano, comendo maças, lendo a Bíblia para os parlamentares. E nas galerias aquela moça bonita, Jean Arthur se chamava, torcendo por ele. Já a tinha visto antes, judiando do Gary Cooper -um dos meus ídolos da infância- naquele filme onde ele fica rico de repente… “Mr. Deeds”. E Bárbara Stanwyck -minha mãe sempre falava dela- embrulhada num sobretudo em cima da camisola, segurando Gary Cooper -novamente ele- para que não pulasse do terraço na noite de Natal. Eram momentos emocionante, divertidos, românticos.
Passaram os anos e quando apareceu o Vídeo Cassete um amigo me emprestou o aparelho e uma fita de um filme antigo, “desses que você gosta”. Meu amigo era um bom conhecedor do cinema. Tinha a idade do meu avô e sabia de filmes tanto quanto ele. Bastante lógico, pois na época deles se frequentava o cinema duas ou três vezes por semana; de qualquer modo, a mim sempre me pareceu que sabiam muito, os dois.
Tinha este amigo, que já faleceu, um negócio de vídeo clube, um dos primeiros de São Paulo. Inesquecíveis momentos os que lá passei, conversando com ele, longamente, do cinema de uma época que sendo a dele, não era a minha mas -graças ao meu avô- conhecia bem. Alguma coisa devo ter falado dos programas de terça feira à noite, pois ele acertou em cheio. Levei para casa o aparelho e a fita, estudei o mecanismo do aparelho, que era novidade para mim, e liguei a televisão. Lá apareceu novamente James Stewart, a loirinha simpática Jean Arthur e nos créditos… Frank Capra!
Faltou-me tempo para juntar o quebra-cabeça. Os filmes de terça feira, os meus ídolos e, sobretudo, o nome “do amigo do velhinho”, do Capra. “Do mundo nada se leva” -essa era a fita do meu amigo- não foi um filme a mais. Foi uma cachoeira de lembranças da infância, um redescobrir o conhecido. Era uma tarde de feriado, Sete de Setembro, Independência do Brasil. Reparei, passados muitos anos, que o velhinho fanhoso tinha toda a razão: aquilo era cinema do bom, coisa séria. Emocionei-me pensando nele, num ambiente aquecido pelas recordações entranháveis que surgem por surpresa, e cheguei a sentir remorso pela minha ingratidão, por não tê-lo levado mais a sério.
Sirvam estas linhas de reconhecimento sincero ao trabalho esforçado daquele comentarista de televisão e ao seu grande amigo -Frank Capra- o nome onde convergiram aquelas vivências da adolescência. Descoberta demorada, mas em tempo de poder transmiti-la com vibração e agradecimento.
No plano delimitado pelo cinema e os valores, Capra possuí um amplo espaço, merecidamente conquistado. Bom cinema, feito profissionalmente, com excelentes atores; e valores, virtudes que seus personagens desenvolvem com naturalidade, sem estridência, convencendo-nos de que a honestidade compensa, tornando apetitosamente atrativa a bondade, a solidariedade humana. É o seu um cinema que se rege por estas constantes, presentes em todos os filmes, conferindo unidade aos muitos metros de celuloide. Não é cinema por atacado, monótono; cada filme tem sua peculiaridade, seus encantos, como variações sobre o mesmo tema, o tema da virtude humana. Tema tratado com maestria, esculpido em todos eles, marca registrada do diretor, a assinatura do artista, criador de um estilo inconfundível.
Cada vez que assisto um dos seus filmes – e já perdi a conta de quantas vezes vi cada um deles – não posso deixar de lembrar o conselho de um santo dos nossos dias, Josemaria Escrivá: “Temos que afogar o mal em abundância de bem” – dizia, empregando uma imagem plástica. E para eliminar as dúvidas que por ventura restassem, costumava complementar esta afirmação com as palavras do místico de Castela, S. João da Cruz: “Onde não há amor, põe amor e obterás amor”. Isto é, sem dúvida, uma vivência pessoal, associação de ideias, pois desconheço o grau de conhecimento que Capra possuía desta Teologia do amor, por chamá-la assim. Com certeza algo devia intuir de tudo isto; de qualquer forma serve para nos entendermos.
O cinema de Frank Capra transborda bondade. É uma apologia do poder transformador que encerra o carinho humano. Sua crítica à hipocrisia, à corrupção, enfim, a todo o espectro da maldade humana, é por isso peculiar, construtiva. Crítica sem violência, direta, franca, discretamente ingênua. São apelos ao coração, tentativas de desentocar os bons sentimentos, sempre presentes no interior do homem, mesmo submerso em falsidade e calejado no ódio. Como a criança que tenta recuperar seu brinquedo das mãos do adulto. Nada lhe valem a força, a violência, o desespero estéril. Com ingenuidade e carinho, com persistência, seus apelos penetram as porosidades do afeto alheio até obter o seu propósito.
Capra, de origem siciliana, entrosou maravilhosamente em América. Seus filmes são americanos e não esconde que ama América. Apesar das críticas que neste sentido lhe foram dirigidas, não é o seu um cinema engajado no sistema, ao serviço dos valores americanos. O patriotismo é, no contexto, algo episódico, um valor a mais, e, nem de longe, o que mais destaca. Também não é -como por vezes se escuta- um cinema maniqueísta, o bem e o mal encarnados nas personagens que atuam a serviço de princípios opostos. No maniqueísmo o bem e o mal não se misturam, são como água e óleo. Não assim nos filmes de Capra onde o bem vai transformando o mal, redimindo-o, purificando-o. Suas críticas são construtivas, valorizam o objeto criticado, a pessoa. E a arrastam, com “abundância de bem”, convertendo-a, ganhando-a para sua causa. É, melhor dizendo, um cinema purificador, nunca maniqueísta.
Mas é sobretudo um cinema de esperança, onde se acredita na capacidade de mudança encerrada no coração humano. Nossas potencialidades para o bem são grandes, e devem ser trazidas à luz com a gestação prolongada da virtude crescente, com paciência, com partos não isentos de dificuldade. As personagens dos seus filmes ensinam que temos de acreditar no homem, que não devemos desistir de ninguém. Um aprendizado que consiste em retrucar com amor dobrado as indelicadezas dos outros, e até as traições.
“A verdadeira caridade -diz Tomás de Aquino- não só ama o que é bom; mas tenta fazer bom aquilo que ama”. Tarefa árdua que deve estar apoiada em sólidas convicções, imunizadas contra a incompreensão, essa substância -no dizer do nosso Drummond- refratária a qualquer liga, que surge patrocinada pelos céticos, os desenganados da vida e da condição humana.
Por isso nem todos entendem o cinema de Capra. É incompreensível para os que jogam a toalha conformando-se com as misérias alheias… e com as próprias. No fundo é o comodismo que toda desistência encerra, porque abdicando de ter que mudar os outros, declinando a responsabilidade de tornar o mundo melhor, não há por que preocupar-se com as próprias mudanças, que sempre são as primeiras a enfrentar, as mais difíceis.
Cinema de esperança, uma convocatória à reconquista dos valores que a pessoa humana traz impressos no seu íntimo. “Se tomamos os homens como eles são, fazemo-los piores. Se os tratamos como se eles fossem o que deveriam ser, conduzimo-los aonde cumpre conduzi-los” – disse Goethe. Empreitada singular, garimpo incansável, atrás da virtude escondida que como o ouro “afunda no mar, ficando a areia por cima”. E mais do que ouro, petróleo que é preciso extrair perfurando com paciência as camadas do egoísmo.
Novamente vêm à mente as lembranças dos filmes de terça à noite. O avô -Lionel Barrymore- tocando a gaita e oferecendo-a ao banqueiro. Gary Cooper e Bárbara Stanwyck, abraçados sob a neve que cai, desarmando com sua atitude “os abutres”. E a loirinha, Jean Arthur com seu sorriso definitivo… E lembro também – associação de ideias?- de outras palavras de santo já citado: “Nada arrasta tanto como o carinho”. Quem sabe lá está, no carinho sincero, a força perfuradora que irá abrindo poços petrolíferos na nossa vida, à procura de bolsões do precioso líquido que nos enriquece e torna nossa existência uma tarefa nobre e positiva. Como o cinema de Frank Capra.