ENTRE O INFERNO E O PROFUNDO MAR AZUL

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

(Between the Devil and the blue sea. Li) Diretor: Marion Hänsel. Stephen Rea, Ling Chu, Adrian Brine 92 min.

Hong Kong, encruzilhada dos mares. Um navio pertencente a uma empresa em falência, fundeia no porto. O barco foi vendido e os marujos, fiel reflexo da malograda companhia, consomem os dias enquanto aguardam enrolar-se em outro serviço. Tempo gasto na indolência, tédio infinito, bebida e mulheres que atendem em domicílio, num bordel flutuante. A sordidez do ambiente é retratada num filme que, por ser europeu, acrescenta suas pitadas de niilismo, de esvaziamento vital. Nikos, o protagonista, acrescenta à tônica coletiva deprimente as angústias de um passado escuro e baforadas de ópio.

            Mas entre o esterco nascem as flores. Li, uma menina de dez anos, cuja vida destroçada nada tem a invejar a dos marinheiros podres, surge como ponto de esperança na vida de Nikos. Uma miniatura, em porcelana chinesa, de encanto e feminilidade. Sensatez e ternura, timidez de mulher feita -”nunca choro na frente de estranhos”- e fantasias de criança, juntam-se em Li, um monumento de doação. A simplicidade da menina perfuma o passar das camisas, o esfregar das panelas e o coração do marujo, náufrago da vida. “Você cuida de todos, inclusive de mim” – confessa o infeliz. “É nisso que consiste o melhor da vida”. Um guindaste de amor que extrai da lama uma vida em decomposição….e exige, -mulher com classe- que se barbeie quando acorda.

            Curioso tema este, o da menina que se mostra mulher, descortinando entre os modos ternos de adolescente o esplendor da alma feminina. O filme não se prende nestas questões, mas é inevitável pensar nelas. Somos mesmo, como gostam de afirmar os filósofos vitalistas, seres sexuados. A condição sexuada -da qual a sexualidade é apenas um caso particular- imprime o selo em tudo o que se faz. E assim, quando sorrimos ou choramos, quando nos sentamos, escovamos os dentes ou arrumamos as gavetas, a condição sexuada -feminina ou masculina- carimba indelevelmente o procedimento. É um modo de ser que acompanha o amplo espectro do nosso viver. Está presente nas funções peculiaríssimas da sexualidade, na fecundação e na maternidade, e também nas rotinas mais prosaicas. Existe, por isso, um jeito feminino e masculino de fechar uma janela, de atender o telefone ou descascar uma laranja. É como se essa qualidade particular fluísse através da ação até o sujeito, modificando suas feições com traços firmes de masculinidade ou delicados perfis femininos. Homem e Mulher são, em modos de ser pessoa. Uma verdade contundente que resolve muitos dos dilemas e das toneladas de tinta gasta com essa questão.

            Menina que se revela mulher, que cuida de todos, deixando adivinhar o cunho da maternidade. Pensava nestas coisas o Dr. Marañón quando fez notar que a sexualidade nas meninas se manifestava como antecipo entranhável do instinto maternal. E surpreendia-se comprovando que os estudiosos da sexualidade infantil -como Freud, por exemplo- não tivessem tocado no tema. Realidade contundente que qualquer fabricante de brinquedos, que oferece armas para os meninos e bonecas para as meninas, conhece desde tempos imemoriais. Talvez até melhor do que muitos psiquiatras que de tanto perscrutar o interior das almas atormentadas esquecem a interpretação da vida vulgar que lhes rodeia.

            Voltando ao filme. Produção lenta, de corte europeu. Não existe brilhantismo na ação nem golpes de cena. Nota-se a mão feminina conduzindo a direção e os movimentos da jovem protagonista, que tem “cheiro de camomila, uma infusão que tomamos para nos acalmar”. Um curioso e notável ensaio sobre a transcendência, tonificante, suave, com bom gosto. Tudo é comedido, ritmado, sábio, em contraste de oriente e ocidente. Simbolismo de dragões verdes, e do outro dragão, o bondoso, que só aparece uma vez e que se o tocamos, querendo aprisioná-lo, torna-se diminuto. Assim é o amor, força redentora, pura doação que não passa a conta. Afeto profundo que não se esvazia em sentimentalismos espasmódicos, nessa teatralidade tão ocidental.

            Um filme singular que agradará se o ânimo estiver disposto. Não é simples distração; tem densidade, espessura de sentimentos. E tem, sobretudo, a sabedoria de uma menina que, com dez anos, esbanja maturidade e desperta a inveja de muitos adultos. Uma espécie de variante, em feminino e de olhos puxados, do anjo da guarda que todos gostaríamos de ter por perto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.