A FESTA DE BABETTE
(Babette’s feast) Diretor: Gabriel Axel. Stephane Audren, Brigitte Federspiel, Bodil Kjer, Jalr Kulle. Dinamarca 1987. 102 min
Extrair poesia dos aspectos prosaicos da vida requer imaginação, em primeiro lugar. Depois, um olhar penetrante que não resvale no superficial; sensibilidade para captar os detalhes e o lirismo que se esconde atrás do corriqueiro; talento expressivo para transmiti-lo de modo atraente. E, em todo momento, medida e ponderação para não carregar as tintas ou tornar-se repetitivo, mantendo, do começo ao fim, a beleza e o bom gosto.
Se o prosaico é um banquete, e o modo poético de mostrá-lo é o cinema, a tarefa não é fácil. Gabriel Axel, diretor dinamarquês, aceita o desafio e supera a prova com louvor. A festa de Babette é uma obra de arte, um primor cinematográfico que destila poesia em cada fotograma.
É claro que não são os l00 minutos de duração do filme, prosa poética em torno a um banquete. Mas os prólogos e preparativos, o entorno histórico gira em volta da “festa”, atingindo no momento da comida -isso mesmo, comida e muita- o ápice da produção. É um condensado de valores, com uma delicadeza e sobriedade pouco comum no cinema de hoje e na arte em geral.
Um conto da escritora dinamarquesa Karen Blixen é base do roteiro. Babette é uma jovem francesa -magnificamente interpretada por Stephane Audren- que no final do século XIX chega a uma vila da Dinamarca fugindo da França, após as convulsões revolucionárias. É acolhida por duas irmãs, solteiras, já idosas, filhas de um pastor luterano. Traz Babette, uma carta de apresentação de um antigo conhecido das irmãs. A introdução deste personagem genial -Achille Papin- em flasback, nos oferece um dos momentos brilhante do filme, mas é apenas “aperitivo cinematográfico” para o resto da festa. Chegará o dia em que Babette, empregando o dinheiro ganho na lotaria francesa, preparará um soberbo banquete -genuína cozinha francesa- para os habitantes da aldeia.
Relatar com mais pormenores a trama é difícil, como é difícil descrever um quadro ou uma sinfonia. Somente vendo e ouvindo. Torna-se, inclusive, arriscado e injusto porque qualquer descrição ficaria pobre, prendendo o espectador a um argumento que é, por assim dizer, apenas a mesa do banquete, As iguarias que serão servidas, e que Gabriel Axel nos brinda em cenas sucessivas são surpresas extraordinárias. Se alguém tiver dúvidas, um Oscar de melhor filme estrangeiro -embora cada vez queira dizer menos o Oscar e poucos ligam para ele- vem creditar, a modo de sobremesa, esta produção.
A festa de Babette é um exemplo de cinema bem-acabado, com fotografia adequadíssima, interpretação precisa, que mostra as personagens dissecando-as no seu interior, perfilando os caracteres de cada uma. Um exemplo de narrativa e adaptação de roteiro, com descrições de um preciosismo quase literário. Mas é, sobretudo, um exemplo de arte denso em valores.
Deparei-me, não há muito, com uma entrevista de Gabriel Axel, no jornal do dia. O diretor esclarece ao repórter que, contra o que o público poderia pensar, não é versado em culinária nem exerce como gourmet. A comida é no seu filme apenas uma desculpa, papel de embrulho, ou, se preferirmos, travessa para servir valores transcendentais. Por isso recusou-se a fazer uma continuação do filme, uma segunda parte. E isto apesar da tentadora oferta (l milhão de dólares), que lhe fez um produtor: “para mim, pai de quatro filhos -afirmava Axel- não é assunto para se desprezar. Mas seria como servir um banquete ‘requentado’. O sucesso do meu filme está nos valores que se encontram lá incrustados, no meio das iguarias”.
Reconheço que ouvir de um diretor aquilo que sempre pensamos e captamos do seu filme traz um conforto particular nestas épocas de insensibilidade e confusão. Ora não se percebe a mensagem; ora se entende de modo errado, ora não tem o que se dizer, não há mensagem, somente niilismo. A vida é uma aventura e o cinema um desafio, quando se trata de garimpar valores no meio dos quilômetros de celulóide que se produzem. Mas com persistência aparece o precioso metal diante de aqueles que procuram com olho atento.
Voltamos ao filme, à festa, á comida de primeira qualidade. A consciência da festa – desse evento que, em palavras de um filósofo contemporâneo, tem algo de divino-, o aproveitamento virtuoso dos bens materiais e das coisas boas da vida, temperadas pelo serviço de quem sabe ser útil e agradável para os demais, emerge de modo notável. Babette não participa da festa, não provará nenhum dos deliciosos pratos por ela preparados, não procura aplausos nem elogios: esconde-se e trabalha com eficácia. Consegue com esta tarefa -importantíssima- de bastidores, despertar a consciência – e até a inveja – do espectador para as virtudes que, ocultas e sem barulho, como o bom tempero, dão sabor à vida: discrição, generosidade, doação, serviço. Tarefa que é toda uma arte, que enriquece a quem a pratica. “O artista nunca fica pobre”, diz Babette, com a satisfação de quem “sabe dar o melhor de si mesma” para tornar os outros felizes.
Uma jóia cinematográfica, uma delicada miniatura repleta de lições de magnanimidade para os que têm sensibilidade – paladar da alma!!- para apreciá-la.