O médico de família, hoje
Medicina de família, médico de família. Uma moda que volta? Um retrocesso saudosista que abre mão dos progressos da ciência e da medicina? Ou talvez um oportunismo no vácuo de um programa do Governo –Programa de Saúde da Família- que chega com ares messiânicos como solução de todos os problemas de saúde do cidadão comum? Afinal, o que é medicina de família, onde estão os tais médicos de família?
Duas historias para esclarecer os termos. Em certa ocasião, já faz alguns anos, atendi um chamado médico na casa de uma família que me procurou, por indicação, sem conhecer-me. Apresentei-me na porta, atendi o paciente, expliquei para a família o que estava acontecendo, fiz as prescrições necessárias, assim como as recomendações para cuidar do enfermo, e aceitei, de bom grado, o cafezinho que me ofereceram. Neste momento de descontração, cumprido o dever profissional, a filha do paciente confessou:
– Posso lhe dizer uma coisa. Doutor?
Assenti com um sorriso.
– A amiga que me recomendou o Sr, disse-me que era médico de família. Eu, para ser franca, esperava ver entrar pela porta um velhinho com aquelas malas antigas, vestindo um terno com colete e….
– Ficou decepcionada? –perguntei.
– Não, de modo algum. Mas é que hoje em dia não se vem médicos de família por ai. Eu lembro quando era criança que o médico da cidade do interior onde a gente morava, sempre ia em casa, e mal entrava já sabia o que nós tínhamos… Morreu faz tempo, nós mudamos e nunca mais tivemos um médico assim. Hoje é tudo muito complicado, exames, hospitais, e a gente não sabe o que acontece com a gente…..
– Mas, a senhora pergunta para os médicos?- Eles não explicam nada, falam entre eles numa linguagem que a gente não entende. Hoje o médico nem te examina, pede exames, não olha para você. Uma pena isso de não ter mais médicos de família, aquilo sim que era bom.
– Mas, minha senhora está falando com um deles… – Será que isso vai voltar, doutor?
A minha interlocutora não estava muito convencida de que o médico de família é uma realidade, que estava na frente de um “elemento” da espécie que ela considerava extinta. A lembrança do velhinho simpático da cidade do interior que conheceu quando menina, monopolizava todas suas lembranças e saudades, como se fosse Papai Noel. A gente, quando adulto, continua ganhando presentes no Natal, mas o encanto do Papai Noel esse já foi-se embora para sempre.
A história encerra ensinamentos e torna clara a questão em pauta. O médico de família, logo sabia o que estava acontecendo, acertava o diagnóstico do mal que acometia o paciente, e resolvia com facilidade, de modo prático. Acabei a minha segunda xícara de café e, após despedir-me entrei no carro, dei partida, e mal engatei a primeira vieram à minha mente as palavras que com freqüencia utilizo nas minhas aulas para explicar o que os médicos de família fazemos. Algo que a filha do meu paciente acabava de dizer ao seu modo. “Tão importante como conhecer a doença e conhecer a pessoa que tem a doença”. Ou também: “Não existem doenças, mas doentes”. Sem esquecer de William Osler, um grande médico, que com audácia afirmava: “ Mais importante do que o médico faz, é o que o paciente pensa que o médico está fazendo”. Toda essa sabedoria, sem dúvida, estava incarnada na saudosa figura do velhinho, do médico de família versão Papai Noel lembrado por nossa nova amiga.
A segunda história vêm não de um paciente, mas de um velho médico e professor, com quem conversei diversas vezes sobre as questões de medicina de família.
– Olhe –dizia- eu costumo dizer aos meus doentes que sou o médico de “passando mal”.
– Como assim, professor? –perguntei surpreso, ciente da quantidade de títulos acadêmicos que constam no seu curriculum.
– Veja, Pablo, quando as pessoas tem dor de cabeça, procuram o neurologista. Quando tem dor nas costas, vão atrás do ortopedista e alguns do reumatologista. Quando o assunto é dor no peito, pontadas, batedeiras, toca procurar o Cardiologista, quem sabe até pneumologista. Agora quando as pessoas “passam mal” acabam me procurando diretamente. Acho que sou o médico de passar mal.
Por associação de idéias lembrei nesses momentos do Geraldo, o mecânico do meu carro, em quem deposito toda minha confiança. Como não entendo nada de automóveis, sempre que surge algum problema, levo-o para o Geraldo dar uma olhada. Já lhe disse muitas vezes:
– Geraldo, nós temos profissões parecidas. Quando o carro dá problema eu não trato de adivinhar se é carburador, câmbio, diferencial, ou motor desregulado. Trago aqui e você providencia o que for necessário. Medicina de família é a mesma coisa: as pessoas tem um problema e, ao invés de tentar adivinhar o que tem, e acertar o especialista adequado –coisa que raramente acontece- nos procuram e nós dignosticamos, resolvemos, ordenamos a confusão que a doença causa e até podemos chamar um especialista quando for o caso.
– Mas, doutor – me diz o Geraldo concordando – não é fácil hoje encontrar esse médico. A gente vai de um especialista a outro, que nem bolinha de ping- pong, faz um monte de exame, e no final nem sempre resolve.
– É claro, Geraldo. Acertar é problema do médico, não do paciente. Ao invés de enfrentar uma via sacra de médicos, para tentar achar o especialista para o seu problema –bingo!- melhor seria que procurasse o medico de família.
As histórias que um médico de família tem a oportunidade de viver diariamente, são muitas e constituem a melhor explicação para a sua profissão. Os pacientes logo entendem o que é Medicina de Família e quando ela existe e funciona a procuram sem hesitar. Mas a cultura de especialidades que se encontra instalada na assistência á saúde –pública e privada- atinge o próprio paciente que desconfia de uma novidade que lhe lembra tempos antigos, de velhinhos de colete, com cara de Papai Noel. Será que isso está voltando? Não sei, não.
Quando o paciente nos procura, sem saber que somos médicos de família, e perguntamos “O que mais o senhor sente”, já ouvi diversas vezes: “Doutor, da sua parte é só isso”. E quando nos apresentamos num serviço como médicos de família, o paciente vislumbra que podemos ajudar nos seus problemas de saúde, ainda pergunta para certificar-se : “Doutor, que sintoma devo ter para poder passar em consulta com o senhor”. Claro é, que a resposta vem das conversas com o velho professor: “Minha senhora, eu cuido de gente, de pessoas. Quando a senhora estiver passando mal, pode me procurar”. Igualzinho que eu procuro o Geraldo –penso com os meus botões.
É preciso reinstalar a cultura do Médico de Família, com credibilidade. Não é difícil, mas requer competência, dedicação, compromisso com um ideal que se resume em “saber cuidar, querer cuidar” dos outros. Estar do lado de quem sofre, esforçar-se por entendé-lo, dar respostas ás dúvidas do paciente, ampará-lo nos seus medos. “Quando a gente está doente –diz outro professor de medicina de família- o primeiro que quer do lado é a própria mãe; depois, um médico que nos cuide”. Esse médico que cuida é o médico de família. E cuida sempre, sem importar-se com a doença que afeta ao paciente. Cuida porque conhece o paciente, e é conhecido dele. Cuida a todo momento, está junto do paciente onde quer que o paciente estiver: no seu consultório, na casa do enfermo, no hospital onde por ventura o doente tem de ser internado. E está do lado com consciência de missão, procurando resolver, atento ás expectativas do paciente e da família. “ Quem tem muitos médicos acaba não tendo nenhum” –diz um ditado popular. E é verdade. “Quanto mais médico, pior –dizia outra paciente, velha conhecida- a gente não sabe o que acontece, e acaba tomando um monte de remédio, fazendo muito exame. Olha, doutor, muito médico com o paciente é como muita mulher numa cozinha: só dá confusão e nunca sai o almoço”.
A Medicina de Família, especialidade reconhecida em muitos países, luta por abrir-se caminho no nosso Brasil. Um caminho que implica atender as necessidades da população e, ao mesmo tempo, instalar-se na Universidade, nas faculdades de medicina –que é onde se fabricam os médicos- para fazer deles profissionais competentes. A sabedoria do nosso velhinho com colete e sorriso do papai Noel, mas com ciência moderna, com tecnologia, com informação, para poder oferecer ao paciente o que de melhor se produz no mundo científico. O médico de família não pode ser um profissional anacrônico, do passado, desatualizado. Deve ser alguém que incorpore os progressos da ciência e os faça chegar ao paciente numa linguagem compreensível.
A Medicina vive tempos de vertiginoso progresso técnico. Paralelamente, nunca se chegou a semelhante nível de despersonalização –de desumanização, por usar uma linguagem na moda- na hora de tratar o paciente. Parece até que o médico está tão preocupado com a doença., que esquece do paciente que é o portador dessa doença. Não é culpa de ninguém, mas sim uma situação que requer um posicionamento novo, para recuperar o aspecto humano da medicina, isto é, para colocar o paciente em primeiro lugar. No cenário da medicina o paciente sempre é o protagonista, o ator principal; o máximo que o médico deve ser é um bom coadjuvante. O médico de família surge assim como a figura integradora, como um referencial de confiança para que o paciente possa consultá-lo nas questões ordinárias de saúde. Saberá este nosso médico de família –que tem a sabedoria do velhinho, mas com roupa nova, sem colete do século XIX- estudar o paciente como um todo, numa abordagem geral, completa. Saberá ouvir o paciente, saberá ajudar, cuidar.
Saber-se cuidado é aspecto fundamental na luta do paciente contra a doença. Um médico que é técnico, moderno, atualizado; e que é ao mesmo tempo humano, compreensivo, cuidador.
Medicina de Família, Medicina centrada na pessoa, Medicina Integral são variações sobre o mesmo tema que representam o que em outras épocas chamava-se médico de cabeceira, aquele que como o livro de cabeceira se consulta para tudo, que vai com a gente, a toda hora. Um verdadeiro vade- mecum. É o médico que cuida de você e lhe ajuda a superar os problemas, que você pode consultar sem ter que se preocupar de acertar diagnósticos ou de padecer determinados sintomas. O médico de família não é o médico do seu coração, nem do seu rim, nem da sua artrose, nem da sua depressão. Ele é, simplesmente, o seu médico. Você já tem um?
Artigo publicado na revista Videtur.