Antes de Partir: a alegria de fazer as opções certas na vida
(The Bucket List). Diretor: Rob Reiner. Morgan Freeman, Jack Nicholson. 97 min.
Devo confessar que já faz algum tempo que assisti a este filme.
Mas faltou-me ocasião para escrever; não encontrava o momento para alinhavar as idéias – muitas e de todo tipo – que se juntaram na minha cabeça. Aconteceu-me, no fim, o mesmo que às personagens: nem sempre se consegue fazer o que previmos. É preciso decidir, estipular hierarquias, pois a sabedoria não consiste em fazer cada vez mais coisas – a pesar de que a técnica nos faz acreditar o contrário – mas em fazer as coisas que de verdadeiramente importam.
Não as coisas importantes – afinal a importância é muito relativa – mas as que devem ser feitas. Sabedoria é, por tanto, abrir mão de muitas outras coisas que nunca se poderão fazer, para centrar-se naquelas que devem ser feitas. O universo de possibilidades que nos cerca é muitas vezes uma desculpa confortável para fugir de algumas tarefas – ações, conversas, decisões, ou mesmo saber perder tempo com um sorriso que conforta o próximo – que são nossa missão na vida. Por isso, bati o martelo e decidi escrever sem deixar passar nem um dia mais, enquanto coloquei na espera… algumas coisas ditas importantes que insistem em tomar a dianteira, e querem monopolizar o meu tempo.
O filme é um “mano-a-mano” genial de quase 100 minutos entre dois autores consagrados. Não há perigo de contar o argumento, porque não existe como tal. Mais se assemelha a um diálogo de Platão, em versão Hollywood, com a sabedoria de Morgan Freeman no papel de Sócrates, e um prosaico, deselegante e encantador Jack Nicholson, que personifica o sofista de turno. Pura reflexão sobre o que de verdade importa na vida e, como me dizia um amigo animando-me a escrever, um filme “sem desperdício”. Impossível não se lembrar daquele Schmidt de Nicholson, que se confessa por carta com o menino que adotou na África, e não consegue ver a utilidade da sua vida que se acaba. O Schmidt precisa agora de um câncer e de um interlocutor, também com câncer, para nos brindar as reflexões que vão muito além do cômico ou do anedótico. ”Antes de partir” é o título em português da lista de pendências que os dois protagonistas querem completar numa corrida contra o “relógio” do câncer que vai tomando conta do seu organismo. Quais são as coisas importantes na vida, as que não posso deixar de fazer? Eis uma excelente colocação que serve para quase tudo: decidir e fazer o que não pode deixar de ser feito, sem distrair-se – e depois desesperar-se – com o que poderia ser feito. A vida é um leque de possibilidades, e a escolha de uma excluirá possivelmente as outras. A figura do leque de possibilidades associa-se na minha mente ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, desde os tempos das aulas de filosofia no colegial. Bons tempos aqueles, em que se estudava filosofia com 15 anos. Não estou certo de que aprendêssemos grandes teorias, mas ao menos tomávamos conhecimento de que existiam pessoas cujo ofício era pensar, questionar-se. Mesmo que, como Kierkegaard, sofressem por isso. Hoje, temos muito que fazer e não podemos dar-nos o luxo de pensar, muito menos de nos questionar. Vai ver que de repente descobrimos que não sabemos porque fazemos as coisas, ou porque fazemos sempre o que não é importante, e ignoramos o essencial. No dia em que essa ficha vier a cair a angústia será tremenda, como a do Schmidt, e o sofrimento dos filósofos existencialistas – que ao menos tiveram a coragem de pensar no assunto – será “café pequeno” comparada à do insensato que passou a vida em piloto automático. Não temos tempo – dizemos – e quase nos convencemos. A pressa é tanta, que não paramos para colocar gasolina no carro… e fatalmente o carro ficará no acostamento, cedo ou tarde. A perspectiva da morte – a única realidade certa na vida do homem – é a temática do filme. E por isso aborda o essencial. Já dizia V. Frankl – o estudioso do sentido da vida – que um dos melhores desafios que o homem tem é saber que não é eterno, que o seu tempo se acaba. E por isso deve empregar o tempo com sabedoria. Se tivéssemos todo o tempo do mundo provavelmente não faríamos nada de útil. Daí o mesmo Frankl aconselhar a, antes de realizar qualquer tarefa, fazê-la como se fosse a segunda vez que a fazemos, depois que, na primeira, a tivéssemos feito tão defeituosamente quanto estamos quase a ponto de fazer agora. Vale a pena pensar na frase, que é mais do que um jogo de palavras. Mas a morte parece estar longe demais do nosso dia-a-dia. Acontece a toda hora, lemos nos jornais, nos atinge de perto, mas parece que não é conosco. Não há outra explicação para que vivamos sem pensar, para que a tal ficha “do que realmente importa” demore tanto a cair. Os cursos de liderança tentam retomar o tema e propõem aos participantes que imaginem o dia do seu enterro, quem vai estar lá, o que falarão dele. Mas mesmo assim, tudo isso é visto mais como a passarela da fama do que um funeral. A realidade da morte – fenômeno de maior prevalência neste mundo – ignora-se, dissimula-se, esconde-se das crianças. Certa vez falaram-me de um menino americano a quem disseram que o seu avô tinha morrido. Ele perguntou muito triste: “Mas,… quem disparou nele?” Há algum tempo li um magnífico livro: “A Morte Íntima” de Marie de Hennezel, – uma psicóloga francesa que dirige uma instituição hospitalar dedicada aos cuidados paliativos. Os pacientes que lá se internam não costumam sair. Mas se cuida deles, com carinho e dignidade, até o fim. A autora afirma que ao invés de enfrentar a realidade da proximidade da morte, empenhamos-nos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos a nós mesmos, e ao invés de falar do essencial, envolvemos com o silêncio esse momento único da vida. Isso acontece antes e depois: basta ver a falta de originalidade – e o conseqüente martírio para a família – das conversas de velório. As monótonas perguntas de sempre: “Mas, como foi? Parecia estar tão bem…As reflexões de Hennezel colocam o dedo na ferida, com maestria. “Os que têm o privilégio de acompanhar alguém nos últimos momentos sabem que se trata de algo especialmente íntimo, porque aquele que morre falará do essencial, daquilo que de verdade importa e nem sempre pôde ou soube dizer. A morte nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas, nos faz aprofundar. E talvez por isso nos angustie tanto: porque nos situa diante das últimas perguntas, das autênticas, dessas que tantas vezes deixamos para responder em outra ocasião, quando sejamos velhos, ou mais sábios, quando tenhamos tempo de colocar-nos questões essenciais. Os nossos personagens têm a oportunidade ímpar de conversar sobre este tema que todos parecem evitar. É verdade que a condição que padecem une-os, e por tanto de nada serve disfarçar. Freeman é Carter Chambers, um mecânico culto, um humanista, que faz questão de elaborar a lista de pendências. Nicholson é o terrível milionário Edward Cole, que entra no jogo, e acaba gostando. O mecânico almeja realizar as pendências, ao mesmo tempo em que comprova que a vida que viveu tem substância e não a trocaria por nada. A proximidade da morte é uma confirmação de que o importante é o de sempre, o que se fez com amor e carinho, as pequenas coisas da vida onde reside o encanto. O milionário vem descobrir o contrário: que não é feliz porque lhe falta simplicidade, saber apreciar os detalhes, e lhe sobra dinheiro. E descobre que também com dinheiro se pode ser feliz, sabendo usá-lo. Os dois constroem um diálogo filosófico – um banquete de Platão -, para descobrir que a felicidade e o sentido da vida têm muito a ver com a doação, com o que se faz pelos demais. “A porta da felicidade abre-se para fora e se tentarmos abri-la para dentro, para nós mesmos, acabaremos por fechá-la inexoravelmente”. Atenção a estas palavras que são de Kierkegaard, nada menos!!O humor e bom gosto do filme não lhe impedem dar o recado. Nestes tempos globalizados, em que a informação nos chega em tempo real, é preciso recorrer ao Cinema para provocar a reflexão, num mundo governado pela pressa e pela impaciência. Um pensador que faz o elogio da lentidão – característica da qual carecemos quase a nível cromossômico – comenta que o tema da velocidade não é de dimensão técnica, mas sim transcendente, porque é difícil admitir que vamos morrer, é desagradável. E por isso procuramos maneiras de distrair a consciência da nossa mortalidade. A velocidade seria uma espécie de estratégia de distração. Chegamos de novo ao início das nossas reflexões: conseguimos esquecer o que realmente é importante, para ocupar-nos com o periférico. Os nossos filósofos atores nos guiam nesta reflexão plasmada no celulóide. A morte é o pano de fundo, mas o filme é alegre, positivo, real. Certamente porque a “ficha do importante” cai ainda em tempo. Na verdade, é na vida, no dia-a-dia, quando estas questões devem ser colocadas, e temos de conquistar o espaço para refletir, roubando-o à pressa infecunda, à globalização que nos massifica. Não há como deixar de lado os versos do nosso poeta, que colocam ponto final a estas linhas: “Podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida/ Mais, que a medida do homem/ Não é a morte, mas a vida”. Para saber morrer, é preciso saber viver, com intensidade, sem medo, de portas abertas aos outros.
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