Batman – O Cavaleiro das Trevas: um líder sem férias

Pablo González BlascoFilmes 3 Comments

(Batman – The Dark Knight) Diretor: Christopher Nolan. Atores: Christian Bale, Morgan Freeman, Michael Caine, Aron Eckart, Heath Ledger, Maggie Gyllenhal. 152 minutos.
Duas semanas em cartaz e mais de dois milhões de expectadores. Houve quem conseguisse comprar os últimos ingressos – aqueles que dão “direito” à primeira fileira e ficar com o nariz colado à tela – mas preferiu sentar-se lá em cima, no chão do corredor, para não perder o visual da estréia. Muitos jovens, alguns nem tanto, como aquele senhor que comentava entusiasmado na saída: “Você viu isso? Fantástico! Até que o ingresso a dezessete reais é ridículo. Bem que o Brasil precisava de uns quatro ou cinco batmans, principalmente em Brasília. Quem sabe dariam um jeito nessa corrupção que nos envergonha”. Fui reunindo os comentários que me chegavam nos dias que se seguiram ao lançamento do filme. Em todos os lugares, no ambiente profissional, nos hospitais onde trabalho – médicos, pacientes, funcionários – todos tinham Batman na ponta da língua. Lembrei-me de George Lucas, quando lá nos idos de 1976 contemplava a reação do público que tinha acabado de assistir a estreia de “Guerra nas Estrelas”. Parece que estava num bar, sentado, à frente do cinema. Vendo a multidão que saia vibrando, confirmou o que já desconfiava: as pessoas gostam de ver o bem e o mal convenientemente delimitados. “É como um faroeste, só que nas galáxias” – declarou à imprensa, na época. “A verdade é que todos nós gostamos que o mocinho ganhe. As pessoas, no fundo, querem enxergar claramente o que é bom e o que é mau. Daí, talvez, o sucesso do filme”. Quem sabe se as multidões que se entusiasmam com Batman não pensam o mesmo, muito embora não tenham consciência disso. A velha briga entre o bem e o mal: nem sempre com fronteiras tão claras como na epopéia galática de Lucas, mas embaralhadas, como na vida real. Ou será que tudo não passa de uma simples estréia, de mera novidade?


Não é do meu estilo entrar no vácuo dos booms de lançamentos. As coisas novas são apenas isso, novidades. Somente o tempo dirá se a novidade é boa, medíocre, ou ruim. O tempo – esse juiz implacável – encarrega-se de desgastar a novidade vazia, deslocando-a da gôndola intitulada “lançamento”, para encostá-la em outras, classificadas como “catálogo”, “acervo”, ou – o que é mais freqüente – nas gôndolas do “saldão”, vendidas a preço de banana. Talvez por isso eu tenha o costume de entrar nas locadoras com uma lista bem definida de filmes sobre os quais me informei previamente, selecionados à luz das críticas da imprensa, de revistas especializadas, mas também escolhidos muitas vezes na contramão das criticas. Porque nem sempre os críticos acertam, e garimpar o material que desprezam me faz encontrar, não poucas vezes, verdadeiras pérolas. A vida é curta, o tempo escasso. Não se pode perder tempo assistindo a inutilidades. Por isso, é preciso entrar nas locadoras com espírito de caçador, ir atrás dos filmes que valem a pena assistir. Vai aqui uma recomendação que pode ser útil nestes tempos de correria, de toneladas de informação inútil. Mas voltemos ao Batman.

Bruce Wayne, um multimilionário, é o Batman. Quase ia dizer que o é somente nos tempos livres, mas seria incorreto dizê-lo. Ele poderia ter todo o tempo livre que quisesse: não tem dificuldades para fechar as contas no fim do mês. A verdade, porém, é que não tem um minuto de folga sequer. Hobby? Diletantismo? Uma brincadeira de escoteiro vestido de preto que apenas pratica boas ações? Sempre me intrigou saber por que esse sujeito, que tem a vida resolvida, mete-se em tantas enrascadas terríveis. Não é seu ganha-pão. Tem cultura e recursos de sobra para montar, por exemplo, uma fundação e promover a paz em Gothan…, e no mundo. No entanto, insiste em investir em tecnologia, que sempre acaba o conduzindo a arriscar a própria pele, de modo espetacular, o que por sua vez faz as delícias do expectador, rendendo-lhe dividendos em golpes e contusões. Mas, por que esta teimosia?

É bem verdade que o nosso Batman anda querendo se aposentar. O mito cresceu de tal modo que o disfarce do homem-morcego é utilizado por alguns agentes da lei, que pretendem desse modo intimidar os bandidos. Mas isso não funciona. Confesso que quando vi a cena em que os falsos batmans apanham dos malandros, lembrei-me das inúteis tentativas de instalar a ética – a arte de bem se comportar – por meio de “soluções fast-food”, tão originais quanto inúteis. O tema é atual. A ética brilha por sua ausência. E no desespero, empresários montam verdadeiros “mutirões de ética”, com cursos de fim de semana em hotéis fazenda, para no final das contas entregar às pessoas nada mais que um manual medíocre de boas maneiras. Por outro lado, códigos profissionais regulam a “ética dos mínimos”, buscando cortar a sangria da pilantragem, aquilo que já é demais e envergonha a própria classe. Nada disso, porém, funciona. São fantoches vestidos de homem-morcego, que na hora do “vamos ver” são trapaceados pelo Coringa e pelo bandido. Esse bandido que todos nós levamos dentro. Já, já voltamos a isso.

Tudo “sobra” para o Batman, que por algum motivo insiste em estar presente. Talvez seja vocação, consciência de missão, algo do qual não consegue fugir, por mais que queira. Já dizia Ortega na sua “Rebelião das Massas” – a qual, certamente, Batman deve ter lido – que o homem superior não é aquele que se crê melhor que os outros, mas o que se exige mais do que os outros. Não briga por seus direitos, mas está atento aos deveres que lhe cabem. Por isso, dizia o filósofo, nada se pode esperar do homem satisfeito consigo mesmo, que não sente falta de nada além de si próprio. Os milhões de dólares que o Bruce Wayne tem na conta não são desculpa para deixar de fazer aquilo que lhe foi confiado.

Entretanto, alguém pode se perguntar: Isso tudo não terá fim? Até quando terei de lutar? Não dá para tirar férias? Se a queixa fosse apenas do atarefado Batman, ainda vá lá. O problema é quando nos diz respeito. Aí a coisa muda de figura: Será que nunca mais terei um minuto livre para mim? Terei de estar sempre em função? Já fiz minhas obrigações, por que me “esquentar” com mais coisas? Se não recordo mal, foi Gregorio Marañon, médico e pensador, contemporâneo a Ortega, que disse que os deveres que temos são apenas uma alavanca para inventar novos deveres. O homem superior, portanto, é aquele que inventa deveres. Inventar no sentido latino do termo: invenire, que significa descobrir. Os deveres já estavam lá, à espera de serem descobertos, com iniciativa e responsabilidade vital. Este é o homem que age – vai atrás, descobre os deveres – e não apenas reage, dando conta somente do que lhe cai no colo, fazendo da vida um eterno “cumprir tabela” – como se diz no futebol. Não há folga para Batman, nem para os que encaram a vida com espírito de aventura.

Coringa entra em ação, numa interpretação colossal do ator que morre de overdose, logo após as filmagens. Ironia do destino? Acidente de trabalho? Algo semelhante, talvez, ao caso daqueles atores do Actor Studio, que de tanto interpretar papeis tão controversos, acabam se esquecendo de quem são eles mesmos, na realidade. Não há como não se lembrar de um deles: James Dean, que morre com Giant (“Assim Caminha a Humanidade”), recém-saído do forno. Mas Coringa, como o próprio nome sugere, precisa de outras cartas para fechar o jogo. Ele, sozinho, não é nada; são os outros que lhe dão força e lhe permitem catalisar o mal que todos nós levamos dentro. É o lado negro da “Força”, voltando à imagem de “Guerra nas Estrelas”. Se há o lado negro, é porque existe a “Força”, porque o lado bom é uma realidade. A luta entre o bem e o mal não está fora, mas dentro de cada homem. De algum modo, Harvey duas-caras é um símbolo adequado dessa realidade controversa com a qual convivemos. O esforço do Coringa é alavancar a maldade que o homem encerra, assim como o medo e o desejo de poder arrasta Anakin Skywalker até transformá-lo em Darth Wader.

A verdade é que cada um de nós é Harvey duas-caras: temos o nosso lado ruim, e por isso o Coringa nos agarra. Ele não teria vez se nós não tivéssemos “culpa no cartório”. Somos nós quem conspiramos contra nós mesmos. “A vida é terra, e vivê-la é lodo – diz Fernando Pessoa. E continua: “Tudo é maneira, diferença ou modo. Em tudo quanto faças sê só tu, em tudo quanto faças sê tu todo”. E é nessa dúvida, na falta de integridade de sermos nós por inteiro diante da vida, a qual sempre traz dificuldades, é ai onde o Coringa nos pega.

Conhecedor da miséria humana, Coringa carece de esperança nas possibilidades do ser humano. O convívio com o mal o tornou definitivamente pessimista. Desconhece que é possível extrair virtudes, heroísmo, doação total, generosidade esmagadora desse homem que ele considera perdido. O homem é capaz de grandeza, e para isso precisa de um Batman que o cutuque. Essa é a função do nosso homem-morcego, que não é um herói, alguém que vem suprir as deficiências e as mediocridades dos seus pares. É muito mais que isso: Batman é um guardião silencioso, que trabalha eficazmente, sem fazer barulho. É um protetor zeloso, incansável, que extrai do homem o seu melhor. É, de fato, o cavaleiro – no sentido medieval do termo, isto é, o “homem honrado” –, que cavalga nas trevas que por vezes envolvem o ser humano, para trazê-lo, uma e mil vezes, para o lado bom da “Força”.

Não reclamemos do mundo e das trevas. Façamos a nossa parte. Todos nós podemos ser Batman. E o seremos, de fato, para os outros e para nós mesmos, sempre que estejamos dispostos a não tirar férias – jamais! – da nossa missão.

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