Medicina e Pessoa Humana

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Uma medicina técnica, institucional e despersonalizada

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Em nosso tempo, presidido por uma medicina altamente técnica, a prestação de serviços compete, em geral, às instituições – sejam elas públicas ou privadas – e, conseqüentemente, de perfil cada vez mais impessoal. A relação médico-paciente, essência da prática médica, dificilmente encontra espaço neste universo. Caminha-se, fatalmente, para uma despersonalização da medicina. Aqui está, em poucas palavras, o cerne da questão que emerge com evidência quando contemplamos o panorama que o atendimento médico nos oferece neste final de século.

Essa é a questão e o problema, se é que de um problema se trata. A nossa tarefa não consiste tanto em encontrar os culpados – que, a rigor, não existem com consciência culpável – como em achar soluções para recuperar a base da arte médica. Cabe, no entanto, uma análise breve das razões que conduziram a medicina – e com ela os médicos – a esta condição que, curiosamente, parece não preencher as necessidades básicas do paciente. Afinal, é com ele que está a palavra e o juízo de valor: se a prática médica não satisfaz o indivíduo doente pode ser útil para muitas coisas mas, falando com propriedade, aquilo não será medicina.

Vivemos tempos de progresso tecnológico vertiginoso; as novidades e descobertas sucedem-se em ritmo onde os dias são medida insuficiente, devendo se recorrer aos minutos para registrar os avanços da técnica. O aumento do volume de conhecimento requer, para sua correta administração, a necessária divisão técnica. Surgem as especialidades, as sub-especialidades, as micro-especialidades, uma tentativa de armazenar o progresso, de catalogar os recursos para, estudados com profundidade, poder depois prestar um serviço altamente especializado e eficaz. Nunca foi mais evidente que os sonhos de “enciclopedismo”, em tentativa frustrada de reunir o conhecimento vigente da época presente, são hoje postura anacrônica quando não ingênua. O progresso é uma realidade incontestável. Os especialistas e super-especialistas são o fruto natural desse contexto.

O atendimento médico deve-se setorizar em especialidades para poder assim levar até o paciente os avanços da técnica, convenientemente assimilados. A eficácia terapêutica aumenta embora, por imposição da própria dinâmica setorizada, paga-se um alto imposto que vai em detrimento da unidade do paciente. Acaba-se tratando de uma parte do paciente, e não dele como um todo; algo que surge mais como necessidade do que como falha do especialista, a quem, aparentemente, não lhe resta espaço para visões gerais que poderiam comprometer a profundidade de seu conhecimento particular. Abre-se assim uma brecha para a despersonalização do atendimento médico. Se não cabe ao especialista sanar esta deficiência, certamente alguém deverá estar incumbido de fazê-lo, pois o paciente é – queiramos ou não – uma unidade real: um alguém que está doente e que se sente, todo ele e não apenas uma parte, enfermo.

Saber que alguém cuida dele, é fator fundamental na luta do paciente contra a doença. Nele, no médico, deposita a confiança e, guiado pelos seus conselhos, enfrenta a nova situação que a vida lhe depara: estar doente. Não se sente uma patologia encarnada num indivíduo, nem um caso de estudo, nem sequer um diagnóstico, porque não é somente isso. A doença acontece sempre em alguém, num indivíduo concreto, e por isso reveste-se de individualidade, das peculiaridades desse ser humano, com suas caraterísticas próprias de personalidade, familiares, sociais. A doença é realmente pessoal e intransferível, como o próprio sujeito, como a alma, como o ser.

O perfil institucional do atendimento médico é, junto com as especializações crescentes, a segunda brecha para a despersonalização. Analisar a fundo este tema nos levaria muito longe. Em poucas palavras pode-se dizer que o sistema público – de per si congestionado – e as diversas instituições que prestam serviços necessitam centralizar o atendimento médico para poder suprir a procura sempre crescente. Paralelamente, os sistemas de saúde vigentes – seguros de saúde, empresas de medicina de grupo, convênios de um modo geral – apresentam a seus associados os serviços médicos fragmentados em especialidades, procurando assim cobrir as necessidades variadíssimas do público. Não é nosso objetivo -carecemos de competência e de experiência para tanto – analisar os meandros deste sistema atual de atendimento médico, instalado na louvável tentativa de racionalizar a prestação de serviços, de otimizar recursos. Mas é também uma realidade inegável a insatisfação freqüente do paciente. E são patentes e tristes as conseqüências que se refletem em críticas sobre o médico e no juízo, muitas vezes deturpado, que se faz da Medicina como profissão.

O paciente não se encontra propriamente sob a responsabilidade de um médico, mas sim de uma equipe, geralmente vinculada a uma instituição. Por outro lado, o paciente procura diretamente o especialista, para os assuntos ordinários de saúde, pois é de esse modo que lhe é oferecida a opção de atendimento no serviço público ou privado. Neste contexto, como um direito que o paciente reclama – com “saudades” talvez, mas com conhecimento de causa das suas necessidades – surge o que gostamos de denominar “Medicina de Família”. É como um desejo por recuperar o médico como elemento que oriente, integre e guie nesse labirinto que é a doença. Um médico que “saiba traduzir” em linguagem comum toda a avalanche técnica à qual o paciente será submetido, quando necessário. Um médico que é técnico e, ao mesmo tempo humano. Esse é, na nossa opinião, o objetivo da prática da Medicina de Família, em resposta aos anseios dos pacientes que, não poucas vezes, encontram-se perdidos no meio de instituições, equipes, grupos, e inúmeros especialistas sem ter um médico pronto a quem recorrer.

A prática da Medicina de Família assume forma de redescoberta, de volta às noções médicas de sempre, inseparáveis da figura do médico – seja qual for sua área concreta de atuação. Algo que, no íntimo, todo paciente espera encontrar em nós, médicos. Na perspectiva anteriormente descrita de atendimento à saúde , tem o médico de família algo de explorador que penetrando nas florestas variadíssimas das especialidades médicas e das patologias correlatas, esforça-se para que “as árvores não lhe impeçam de ver o bosque”. Um bandeirantismo médico à procura de algo tão simples e complexo como é o homem, e no caso, o homem que está doente. Fazer com que as doenças, na sua dimensão científica – diagnóstico, tratamento e prognóstico – não façam esquecer o doente, é a meta almejada nesta procura de um verdadeiro “ovo de Colombo”.

Saber dosar a especialização, sem embebedar-se nela, conservando a visão de conjunto. Eis uma ciência sempre imprescindível para se tender a ponte sobre a necessária brecha aberta pela especialização, por onde se esvai o trato pessoal com o doente. Nada contra o especialista, que cumpre sua função, tantas vezes imprescindível. Advertência, sim, contra uma mentalidade especializada, de perspectiva estreita, que exclui a pessoa do paciente da própria patologia que se pretende tratar. É mais uma questão de limites e de maneira de perceber a realidade do que de ser ou não especialista. Quem carece dessa visão ampla caricaturiza até a própria especialidade e se encaixa bem na figura que com ironia comenta Ortega y Gasset: “O especialista ‘sabe’ muito bem seu mínimo recanto do universo; mas ignora radicalmente todo o restante”. E precisando mais: “Antigamente podiam dividir-se os homens em sábios ou ignorantes (..) Mas o especialista não pode ser incluído em nenhuma dessas duas categorias. Não é um sábio, pois ignora formalmente o que não faz parte da sua especialidade; mas também não é ignorante, já que é ‘homem de ciência’ e conhece muito bem sua pequena porção do universo. Teríamos de chamá-lo de ‘sábio-ignorante’, coisa extremamente perigosa, pois significa que é um sujeito que se comporta em todas as questões que ignora, não como ignorante, mas com toda a petulância de quem no seu âmbito especial é sábio” (2).

O paciente despersonalizado

A doença é fruto de vários fatores se não como causa direta, sim, certamente, como modificadores da mesma. Assim a personalidade do paciente, o âmbito familiar, a cultura, o entorno social levam a que a mesma entidade mórbida se exprima de modo diferente em cada paciente. Não existem doenças, existem doentes. Insistamos: a doença se encarna em cada paciente de modo personalíssimo.

Analisemos qual é a reação do paciente quando repara que está doente. Podem seguir-se, basicamente, dois caminhos na abordagem deste fato. Por um lado, uma abordagem prudente, isto é, chamar o médico. Se o paciente se encontra enfermo chama um profissional para que cuide dele. Não se preocupa com o tipo de enfermidade, com o sistema ou aparelho cuja fisiologia está alterada. Algo simples que costuma funcionar bem: como quando o carro quebra, o normal é levá-lo ao mecânico de confiança, àquele que resolve qualquer problema. Se a falha é no motor, ou no sistema elétrico, ou em qualquer outro dispositivo cabe ao mecânico resolvê-lo ou então chamar o especialista, encaminhá-lo a alguém, também de confiança. Não é tarefa do usuário fazer os diagnósticos – nem sempre fáceis – para ir convocando os diversos especialistas nos mecanismos avariados. Procurar ou chamar o médico quando se adoece, é pois o caminho que parece mais sensato.

Mas existe uma outra opção que vai se impondo hoje, pelas razões anteriormente analisadas. O paciente, o doente, realiza primeiro uma auto-análise – uma tentativa leiga de autodiagnóstico – para desse modo procurar o médico adequado. Naturalmente, isto é facilitado pela própria cultura médica de divulgação – na mídia – e, sobretudo, porque os sistemas de saúde são oferecidos ao usuários fragmentados em especialidades. Para “facilitar” o achado do médico certo, costuma incluir-se no manual do proprietário um breve resumo de sintomas versus especialidades. Estamos, pois, diante de uma verdadeira “triagem leiga” do caso; e além de leiga, é auto-triagem. Será o paciente quem deverá achar o especialista conveniente para sua moléstia guiado pelas “orientações do manual do convênio” e pelos conhecimentos gerais de medicina, engrossados pelos meios de comunicação, sempre sensacionalistas.

Os resultados desta auto-gestão não são animadores. O paciente, que não tem obrigação nenhuma de conhecer medicina, acabará buscando um especialista para cada sintoma que padece. Quer dizer, se tornará, na prática um sujeito fragmentado, dividido por uma longa lista de sintomas e especialistas, na tentativa de resolver seu problema. Com assustadora freqüência esta peregrinação de um especialista a outro, onde cada um vai “consertando sua parte”, mais se assemelha a uma verdadeira “via sacra”, onde no final o paciente nem sempre é assistido convenientemente e, muitas vezes, persistem suas queixas. Isso, quando a auto-gestão e as multi-consultas não acabaram “descobrindo” outros problemas de saúde, ou até mesmo, provocando-os com medicações que todos os facultativos sentem-se na obrigação de prescrever. O resultado além de precário, carece de postura científica: não se pode delegar na mão de um leigo a gestão da própria saúde. É como querer construir uma casa, sem nada conhecer desses afazeres, e convocar pedreiros, encanadores, eletricistas, vidraceiros – todos muito competentes – e, “guiado pelo bom senso e olho clínico” ir dando as instruções pertinentes.

Não basta boa vontade, nem dedicação: é preciso competência. Perante a doença o único profissional é o médico; o paciente é sempre um amador. Não há doentes profissionais.

A fragmentação do paciente supõe – para o próprio enfermo – uma curiosa mudança de mentalidade. Visto que deverá consultar o especialista x para o sintoma y, o paciente sonega informações “do resto do corpo”, pois afinal, não são sintomas dessa especialidade. “O que mais o senhor sente”? – perguntamos em certa ocasião. A resposta foi contundente: “Doutor, da sua parte é só isso”. E por acrescentar outro exemplo, citaremos o da paciente que procurou o gastroenterologista por sentir náuseas e certo incômodo epigástrico. Felizmente, o colega “foi além da sua especialidade” e acabou diagnosticando… uma gravidez.

São alguns exemplos reais, extraídos de uma lista infindável, fruto da experiência clínica dos últimos anos.

O paciente fragmentado – na mente e no corpo – procura o médico como um técnico, como alguém que resolverá uma questão particular, e não como um profissional a quem confiar o cuidado da sua saúde. Mais ou menos, como procurar um serviço nas páginas amarelas da lista telefônica. Nesse contexto, não se pode pedir que o paciente conserve o sentido profissional do médico. É um prestador de serviços, alguém a quem foi terceirizado um aspecto peculiar da saúde global que, essa sim, parece ser gerenciada pelo próprio paciente.

Como é lógico, nem sempre o paciente é capaz de “administrar” tudo isso e, quando percebe que se lhe escapa das mãos, que está doente, perdido na doença, e apesar de consultar os técnicos-médicos não se chega a uma conclusão, o normal é apelar para alguém que ponha ordem. Esse apelo “integrador” deveria ser dirigido “ao seu médico”, ao profissional de referência, que ele, infelizmente, não tem… Quando se agrava a situação não costuma ser incomum recorrer ao Pronto Socorro que, obviamente, não existe para essa função. O Pronto Socorro é sinônimo de urgência médica, idealizado para atender emergências e não para ordenar histórias clínicas mal conduzidas. Juntar os fragmentos de prontuário que o doente apresenta fruto da sua auto-gestão não é o serviço para o colega plantonista no Pronto Socorro. Entre outras coisas porque carece de tempo para tal. Os bombeiros destinam-se a apagar incêndios;. cabe ao arquiteto construir a casa, prever os sistemas de segurança. Um prédio que carece desses recursos e solicita os serviços dos bombeiros habitualmente deve ser interditado, talvez demolido, e construído de planta, com profissionalismo. Uma analogia jocosa, exagerada até, mas que serve para esclarecer o dilema.

A auto-gestão leiga do paciente faz com que haja também uma verdadeira “inflação de doentes”. A facilidade em consultar um especialista é tentação cômoda para tentar eliminar o primeiro sintoma que aparece. De fato, quando falta ordem e sistema prolifera o “doente imaginário”: o recurso ao médico não se vê como una necessidade mas como um luxo fácil, quando não como direito adquirido visto que “se paga determinado convênio”. Terreno árduo para que possa crescer nele um verdadeiro sentido profissional do médico, e uma relação médico-paciente eficaz. E no meio desse universo de doentes imaginários diluem-se aqueles que precisam de ajuda médica e não acertam com o médico que assumirá suas dores. Um curioso panorama, nascido de uma tentativa de levar até os pacientes os avanços técnicos da medicina, e que deixa os próprios doentes órfãos de um médico que cuide deles.

São esses os verdadeiros dividendos da auto-gestão leiga: um conjunto de especialistas – um para cada sintoma -, acúmulo de medicamentos, despesas desnecessárias com exames complementares, procura indiscriminada do Pronto Socorro e, muitas vezes, a própria persistência do problema de base, que não foi convenientemente tratado. Parece, pois, razoável uma volta ao primeiro caminho proposto: chamar o médico, consultá-lo, quando se está doente. Os desdobramentos posteriores são assunto da competência dele, não do paciente.

O médico despersonalizado

Também o médico sofre as conseqüências desta despersonalização. A mais importante de todas é, talvez, a falta de motivação. Visto que é procurado como um técnico, como um consultor terceirizado de um problema setorial, limita-se a dar sua opinião nesse tema, deixando o resto por conta do paciente.

Mas o médico não é insensível a este modo deturpado de praticar a medicina. Algo no seu interior lhe diz que é preciso assumir a responsabilidade do paciente, que não pode desentender-se dela, e que essa responsabilidade não cabe a instituições, sistemas de saúde, convênios médicos e, muito menos, ao próprio paciente.

Segue-se, então, a revolta de um ideal que se possui e que, diariamente, se defronta com umas condições indignas na prática do exercício profissional. A remuneração desproporcionada – graúda nos procedimentos técnicos, ridícula na atuação clínica – é causa não desprezível da falta de motivação. Porque afinal, é na atuação clínica, no raciocínio e nas decisões onde se encontra a representação prática da responsabilidade do médico quando assume um caso: é isso que ele empenha, já que a ninguém se lhe ocorre despejar a responsabilidade por um paciente num aparelho sofisticado ou num exame de laboratório. É o médico, que tem nome e sobrenome, o responsável por aquele paciente. Os exames complementares são auxílio de uma decisão pessoal. A desproporção patente nos honorários profissionais é mais um exemplo de que a sociedade premia a técnica e pune a pessoa, e é somente ela – a pessoa do médico – a que é capaz de assumir a responsabilidade por um paciente.

Essa revolta se não resolvida, desemboca em conformismo, em acomodamento. Diante do panorama descrito sempre existe o perigo de ater-se única e exclusivamente ao estritamente necessário. E como o necessário é apenas a consulta técnica, de especialista terceirizado, limitar-se a cobrir o expediente. Perde-se o entusiasmo profissional, enxerga-se o paciente como um caso – já que ele mesmo, fragmentado, parece fazer questão de não ser outra coisa – e o médico se limita a “cumprir tabela”. É um triste panorama da arte médica agonizando, esvaziando o sentido de própria vida profissional e, naturalmente, prejudicando o paciente que sempre leva a pior parte.

A Figura do Médico de Família

Quando se contempla a situação do ponto de vista do paciente, que é quem pretendemos servir com nossa ciência médica, salta à vista a necessidade de esse elemento integrador, que ordene a desordem provocada pela doença. Um referencial de confiança que é ponto de apoio para guiar o paciente, com sentido profissional, na sua condição de enfermo. Existe uma distância desde o paciente – acometido por uma moléstia – até o especialista – caso seja necessário – que não pode ser percorrida sozinho. Uma verdadeira integração e gestão do caso clínico, uma responsabilidade plena pelo paciente que precisa de ajuda.

Impõe-se a necessidade de que o médico consulte e estude o paciente como um todo, em unidade, numa abordagem geral e completa. Atua deste modo o médico como elemento unificador na desorientação que os variados sintomas produzem no paciente. Estabelece as hipóteses diagnósticas principais, programa os exames complementares e prescreve, seguidamente, a terapêutica adequada em cada caso. Finalmente coloca hierarquicamente os diversos problemas médicos que acometem o paciente, estabelecendo a seqüência devida para que os tratamentos obedeçam as prioridades corretas e às peculiaridades do paciente. Quando necessário, solicita a ajuda do especialista, para um aspecto determinado. Esta é a figura do Médico de Família, que, cada vez mais, vai se tornando necessária e cuja reabilitação propomos.

O paciente deve ser trabalhado e tratado até chegar, quando necessário, ao especialista, a quem devem chegar somente os casos necessários. Isto é administração racional dos recursos, aproveitar o tempo do especialista para o que é da sua estrita competência. As questões ordinárias – ou extraordinárias – de saúde devem ser consultadas ao médico referência. É ele quem deve assumir a responsabilidade pelo paciente. É o médico do paciente, aquele que “ordena a caso”, traça os programas a seguir, convoca os especialistas quando necessários. E, sobretudo, explica e traduz em linguagem compreensível para o paciente, o que com ele está se passando e as perspectivas diagnósticas e terapêuticas. O paciente sabe então que alguém cuida dele , que é responsável pelo seu estado e que procurará os melhores recursos para atendê-lo.

O médico de família também se denominava, no passado, médico de cabeceira. Um modo sábio para designar uma função cujo alcance talvez não se conseguia prever. A desaparição deste profissional colocou em destaque sua verdadeira importância. Médico de cabeceira: aquele que se consulta para todo e qualquer problema, um vade-mecum que se adapta perfeitamente às nossas necessidades.

Características do Médico de Família

Uma função necessária, de origem antiga, com perfis modernos. Um papel que requer características peculiares, para desempenhá-lo satisfatoriamente. Trata-se de reunir a ciência com a arte médica, oferecer ao paciente o melhor conforto técnico e humano possível. Um resumo dessas características:

a) Deve o médico possuir um conhecimento amplo e profundo da Medicina Interna – da Clínica Médica, se preferirmos o termo – e do manuseio das principais patologias, daquelas que têm maior prevalência. O Médico de Família não é aquele que sabe um pouco de algumas coisas, mas é necessário saber bastante de tudo; do contrário resulta a incompetência para a função desejada. Não é alguém que se limita a receitar sintomáticos, nem um paliativo para uma situação que demanda competência científica.

b) Deve também procurar uma permanente atualização nos modernos métodos diagnósticos e nos avanços terapêuticos para conduzir os casos corretamente, oferecendo ao paciente o melhor possível. Não ser especialista não significa desconhecer os progressos da técnica, viver alheio a eles, e tratar os pacientes com terapêutica superadas ou anacrônicas. O perfil moderno – fruto dessa constante atualização e estudo – significa tratar o paciente com os melhores recursos técnicos do momento.

c) O esforço por adquirir uma sólida formação humanística e cultural que permite conservar a visão do homem no seu conjunto, integrado no meio social e familiar é elemento imprescindível. É preciso levar em conta as peculiaridades do paciente, idade, cultura, dependência. E, sempre, uma perspectiva realista da situação: fazer o que é possível de fato, sem perder-se em sonhos de possibilidades que estão fora do alcance do momento. Uma relação médico-paciente proveitosa depende em grande parte desta preparação do médico que deve ser, além de cientista, um acadêmico, um universitário: um homem de visão ampla.

d) Ganhar interesse e experiência na avaliação e tratamento de pacientes no meio domiciliar. A Visita Médica Domiciliar é prática inseparável do Médico de Família. O acompanhamento de doentes crônicos no seu domicílio, fornecendo uma orientação completa – nutricional, comportamental e medicamentosa – é fonte contínua de solicitações em Medicina de Família.

e) Uma postura profissional aberta e integradora, que lhe permita gerenciar o caso do paciente sob os seus cuidados, convocando quando necessário os especialistas, solicitando os auxílios específicos. Por isso deve saber dialogar, pedir con-selho, facilitar o trabalho do colega especialista, em atitude sinérgica que procura, sempre, o benefício maior do paciente.

Finalmente, cabe um breve esclarecimento sobre o modelo humanista que propomos para o médico de família. Humanismo não é dar soluções filosóficas às doenças, desentender-se do progresso técnico. É não perder de vista e nunca esquecer que o seu objeto de trabalho é um homem doente como um todo. É não desconsiderar a condição humana e nortear, com base nela, toda a conduta.

Aprofundaremos neste tema no capítulo dedicado à formação do Médico de Família. Mas não parece supérfluo adiantar uma consideração de um conhecido psiquiatra que resume muito este novo desafio para o qual o médico deve estar preparado. “A medicina enfrenta-se hoje com a tarefa de ampliar sua função. Num período de crise, como o que experimentamos hoje em dia, os médicos devem cultivar a filosofia. (…) Os médicos se deparam hoje com questões que não são de índole médica apenas, mas filosófica e para as quais mal estão preparados. (…) É possível ser médico sem ocupar-se com estas questões; mas então aconteceria o que P. Dubois afirmava com relação a este caso: que o médico distingue-se do veterinário apenas numa coisa: na clientela (3).”

A figura do Médico de Família traz benefícios substanciais para o paciente. O primeiro e mais importante, é ter um profissional como médico de referência para os problemas diários de saúde, patologias crônicas e agudas, do paciente ou dos familiares. E, com ele, o paciente tem caminho seguro para recuperar a confiança na medicina, elemento imprescindível na relação médico-paciente e no sucesso terapêutico.

Não é de desprezar também – tudo deve ser dito – o benefício de diminuir custos, já que usando o médico de família como referência agilizam-se os exames complementares, fazendo somente os necessários; inicia-se o tratamento sem demora e, muito importante, evitam-se consultas desnecessárias a inúmeros especialistas, que serão envolvidos quando realmente necessário.

Conclusão: Medicina de Família, um Novo Estilo

Não são estas considerações restritas ao clínico, mas a todos os médicos, sobretudo aos que se encontram em período acadêmico de formação. A medicina de família é, no nosso entender, um estilo de praticar a medicina, o estilo de sempre, aquele que nunca deveríamos ter perdido e que nos governa e orienta para, no meio do progresso, não perder o objetivo e razão da nossa profissão: o cuidado do paciente. Quem não conceda importância a isto, dificilmente saberá explicar as coisas ao paciente, criará barreiras e incomunicações, aumentando assim a angústia natural da moléstia que padece. Daí o insucesso prático de profissionais que são, por outro lado, tecnicamente brilhantes. Não sabem desenvolver uma relação médico-paciente substancial; é uma prestação de serviços limitada, técnica e insuficiente.

Encerrando este estudo, parece obrigatório dizer que em momento algum nos animou o que erradamente poderia ser interpretado como uma crítica ao progresso e à especialização médica. O desejo e a urgência que sentimos na recuperação desses elementos que constituem o perfil do verdadeiro médico, e que estão cada vez mais ausentes, explica o tom destes comentários. Um matiz que poderia julgar-se crítico mas que, no fundo, pretende ser sempre construtivo, e abrir caminho para uma esperança de superação, pessoal e da arte médica como um todo.

As palavras de Gregorio Marañón – extraordinário médico e pensador – parecem as mais adequadas para colocar o ponto final.

“Sentiria muito que alguém concluísse que sou desrespeitoso para com a Medicina, e que sou pessimista sobre o seu presente ou seu futuro. Eu respeito a Medicina, porque a amo; e o amor é a fonte suprema do culto, no humano e no divino. Mas o amor é também, e deve ser, crítica. Somente quando esmiuçamos o objeto amado, retirando o que tem de deletério, acertamos a encontrar, lá no fundo, o que tem de imperecedouro. Aquele que fala valentemente dos defeitos da sua pátria é o melhor patriota, e quem vai polindo com censuras justas sua profissão, esse é quem a serve com toda plenitude”(4).

1- Texto para debate em seminário de Filosofia no programa Master em Jornalismo para Editores da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade de Navarra (Espanha), em São Paulo (ago-97).

2- Ortega y Gasset: “A rebelião das massas” Revista de Occidente. Madrid 1930, p.130.

3- V. Frankl : “Psicoterapia ao alcance de todos”.Herder. Barcelona. 1986, p. 24.

4- G. Marañón: “La medicina y nuestro tiempo”. Espasa Calpe. Madrid. 1957, p. 52.

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