Alma de Herói – Seabiscuit: A Liderança que nos constrói nas dificuldades.

StaffFilmes 20 Comments

(Seabiscuit) Diretor: Gary Ross. Atores: Jeff Bridges , Chris Cooper , Tobey Maguire , Valerie Mahaffey. 140 min. 2003

seabiscuit1Após alguns meses de silencio – apenas mutismo virtual: muito trabalho, pouquíssimos filmes, nenhum comentário cinematográfico- nesta semana que antecede o Natal penso que é tempo de pagar mais uma velha dívida. Assim, rascunho estas linhas para promover Seabiscuit – que encontramos traduzido ao português como Alma de Herói. Estou quase certo que quando assisti, há quatro anos, o título que constava na caixa do DVD era esse mesmo: Seabiuscuit- Um sonho americano. Tanto faz. Seabiscuit, que é um cavalo, tem mesmo alma de herói, e também é um sonho. Não somente americano, mas um sonho possível de todos nós.

Alguém poderia perguntar: mas por que isto e uma dívida? Por que você sente a obrigação de escrever sobre este filme, que é uma diversão familiar com perfil Disney? Acontece isso com todo filme que você assiste? Uma necessidade –incômoda dívida – de escrever? Não, em absoluto. Mas, meu caro leitor, eu conheço as minhas dívidas, o quanto devo a alguns filmes, e o peso que tiveram –e têm- na minha vida. Há muitos anos, François Truffaut escreveu um livro que intitulou: “Os filmes da minha vida”. Não é um catálogo dos 100 mais, nem dos 100 melhores. São, simplesmente, os filmes de Truffaut, os que lhe marcaram e tiveram um significado peculiar, as suas dívidas.

Seabiscuit é a história de um cavalo de corridas. Ou melhor, a história de um cavalo desajeitado, quase manco, que participa nas corridas, se supera, e conquista os louros do triunfo. Seabiscuit é também a história dos que, como satélites, vivem à volta desse cavalo. São seres perpassados de limitações e fraquezas, machucados, que vão se construindo, se arrumando, saem adiante. “Pensam que pegamos esse cavalo estropiado e o consertamos! Não é verdade: foi ele quem nos consertou a nós. Em certa maneira, fomos nos consertando uns aos outros.” Esse é o resumo do filme e o núcleo vital da minha divida.

seabiscuit2O trabalho destes meses de ausência foi sulcado por dificuldades de índole variada. Na verdade, nada de especial; coisas de ordinária administração que, por outro lado, estão presentes na vida de qualquer um. Mas, no frigir dos ovos, quando falta reflexão – quando há tanto que fazer que se suprime o tempo necessário para pensar – o panorama assume proporções que chegam a angustiar. O perfil desengonçado de Seabiscuit, que tira forças do coração e não das patas, para explodir na arrancada vitoriosa, cercou-me com o seu alento esbaforido e alegre, convidando-me a segui-lo. Falei dele, utilizei inúmeras vezes essas cenas nas minhas conferências, comprovei no sorriso dos que me ouviam a luz da esperança. Sentia minha divida crescer.

Quando as contrariedades se nos apresentam, costumam vir revestidas do fator humano: alguém deve ser o responsável pelos entraves. Surge o incômodo, buscamos soluções e esquecemos-nos de olhar – e de escutar!- os que estão do nosso lado, trabalhando, sofrendo os mesmos golpes, apalpando as próprias limitações, que são sempre as mais dolorosas. Desavenças e mal-entendidos, quando não suspeitas de que alguém está se poupando, presidem o trabalho numa equipe que se desarticula. Carece procurar um culpado – solução simplista e ineficaz – e como cada um de nós é sempre o último da lista dos suspeitos habituais, transferimos a culpa para os outros. Não expressamente, nem se nos ocorre mencioná-lo abertamente; mas carregamos essa sombra no coração. E com essa sombra, nunca se chega à vitória.

Buscar o triunfo, superar as dificuldades a todo custo, sem cuidar de nós mesmos e dos que caminham do nosso lado é quimera fadada ao fracasso. Sobram os exemplos, que contemplamos diariamente e -forçoso é reconhecê-lo- nos espreitam na nossa própria vida, como um alter-ego sedutor que nos arrastará até o abismo no mínimo descuido. O vencedor que atropela seus colaboradores, o líder que se eleva à base de subir nas costas da sua equipe, o formador que esmaga os que lhe são confiados com exigências destiladas dos seus próprios complexos. Todas são situações não incomuns que representam a triste imagem do insucesso na gestão de pessoas. Além do que essas vitórias e lideranças são totalmente falsas, não enganam ninguém; e também não constroem o protagonista que, como títere solitário, sucumbirá às próprias fraquezas. “O professor descontente com ele mesmo – diz Pennac, nas suas sugestivas memórias recolhidas em ‘Diário de Escola’- é o mais propenso a maltratar os alunos”.

seabiscuit3Na freqüente condena à mediocridade que Ortega estampa nos seus escritos, lê-se: “Não duvidemos disto: na dor nos construímos, e no prazer nos desgastamos”. As dificuldades são parte da vida, e a dor que surge quando lidamos com ela, é recurso de crescimento, como o cinzel que esculpe em nós a imagem desejada, como o cimento que solidifica e aglutina com força os tijolos da personalidade. Mas para que tudo isso funcione é preciso olhar de frente para as dificuldades, como Seabiscuit faz com os seus pares: “Coloque ele na altura do outro cavalo, deixe ele olhar no olho do outro e verás como dispara, ganha terreno, e se torna invencível”. São os conselhos do Jóquei convalescente, para o amigo que conduzirá Seabiscuit para a vitória.

“A ausência de pressões e de problemas –é novamente Ortega falando nas suas Meditações para o povo jovem- apagaria nossa vida, porque o nosso viver é um constante aceitar feridas sabendo responder com energia. Nenhum povo ou indivíduo pode viver sem problemas: ao contrário, todo povo vive precisamente dos seus problemas, dos seus destinos. A vida histórica é uma permanente criação, não um presente que nos é dado. E para criar é preciso um treino constante. Convém lembrar que treino é a tradução da palavra askesis, ascetismo, que os gregos usavam para denominar os exercícios com que os atletas se mantinham em forma. Os místicos da Idade Média emprestaram o termo do esporte e da vida pagã, aplicando-o à atividade do homem que, mediante um constante exercício procura manter-se na virtude, para estar em forma, e conseguir a beatitude”

É preciso olhar de frente para as dificuldades, e olhar para os que estão do nosso lado, no mesmo páreo. Não estamos sós nesse esforço de crescimento. E justamente é no apóio que oferecemos aos que nos rodeiam e que deles tomamos, onde encontramos a força para superar os entraves, lidar com a dor, e crescer em conjunto. Certa vez ouvi comentar que os homens são como as cartas do baralho: sozinhos, somos incapazes de nos manter em pé; mas apoiando-nos uns nos outros, compartilhando nossa fragilidade, somos capazes de levantar castelos. A sinceridade de reconhecer nossa fraqueza, a busca de ajuda e a colaboração que de boa vontade oferecemos, fazem cristalizar o cimento que nos sustenta, a alavanca para a vitória.

seabiscuit4A imagem é conhecida, mas não por isso menos eficaz. Recomenda-se visualizar as pessoas que, se morrêssemos hoje, estariam presentes no nosso velório. Ai está o verdadeiro curriculum do ser humano: os que ele soube aglutinar em volta, ajudou, amou e dos quais se fez querer. Os projetos e conquistas, as vitórias, poderão passar para a história, mas logo serão despersonalizadas para converter-se –caso tenham esse merecimento- em patrimônio da humanidade. “O caixão não tem gavetas” – dizia um bom amigo, já falecido. E não tem mesmo. O que não se pode carregar no caixão, e que realmente vale a pena, é o que fica no coração das pessoas que estarão presentes no momento final. Daí que se torne necessário revisar os conceitos de sucesso e entender que a grande conquista é construir-se enquanto ajudamos os outros a crescer, entre fraquezas e limitações que se superam com enormes doses de boa vontade e de serviço alegre.

Não se preocupe leitor: Seabiscuit não fala de nada disto, não é um filme existencial. É um filme alegre, descontraído, para assistir-se em família, talvez nesta época de Natal. Mas como alguém já me comentou, afinal contamos a nossa vida com os filmes, ou talvez sejam os filmes os que contam veladamente as nossas lutas, as alegrias e tristezas que rodeiam nosso existir. Em qualquer caso, os filmes nos ajudam a entender melhor toda esta trama – fantástica!- em que a nossa vida está envolvida. E se dos esforços que o cavalo desengonçado faz por superar-se, e os coadjuvantes por arrumar-se entre eles, sabemos extrair o que necessitamos para nos consertar diariamente, temos mais é que agradecer a oportunidade.

Tudo vale a pena se a alma não é pequena – diz o poeta. Almas grandes, que se rebelam contra a mesquinhez e superam a mediocridade reinante, são as capazes de construir-se entre elas, a despeito de fraquezas e limitações. Almas grandes, almas de herói, como a de Seabiscuit. Sim, agora a dívida está quitada. Obrigado, Seabiscuit. Feliz Natal a todos.

PGB, Dezembro de 2009

Comments 20

  1. Prof. Pablo

    Mais uma bela crítica! A vida só tem graça quando reconhecemos nossa fraquezae nos propomos a construir castelos junto com outras cartas individualmente bambas!
    Um abraço e parabéns pelo blog!
    marcelo levites

  2. Prof. Pablo

    Mais uma bela crítica! A vida só tem graça quando reconhecemos nossa fraquezae nos propomos a construir castelos junto com outras cartas individualmente bambas!
    Um abraço e parabéns pelo blog!
    marcelo levites

  3. FeLiZ NaTaL a ToDos!
    E como essas palavras permitem vizualizar o essencial: ” VaLoReS não se negociam! ”
    ParaBéns Dr Pablo!

  4. FeLiZ NaTaL a ToDos!
    E como essas palavras permitem vizualizar o essencial: ” VaLoReS não se negociam! ”
    ParaBéns Dr Pablo!

  5. Caro Professor Pablo

    O blog é certamente de grande relevância nos dias atuais, para médicos ou não. Refletir sobre valores e virtudes hoje não é tarefa fácil. Certamente um grande desafio.
    abraços e obrigado por esta contribuição

  6. Caro Professor Pablo

    O blog é certamente de grande relevância nos dias atuais, para médicos ou não. Refletir sobre valores e virtudes hoje não é tarefa fácil. Certamente um grande desafio.
    abraços e obrigado por esta contribuição

  7. Querido Pablo,
    Como sempre e cada vez mais colaborativo, publicas novos aprendizados através de suas intervenções na vida de cada um de nós pelos filmes interpretados e outras providências que muito conhecemos e de bom tom. Aprendi mais um pouco do pouco que sei. Feliz ano de 2010 para ti e para todos que acessam o seu blog.

  8. Querido Pablo,
    Como sempre e cada vez mais colaborativo, publicas novos aprendizados através de suas intervenções na vida de cada um de nós pelos filmes interpretados e outras providências que muito conhecemos e de bom tom. Aprendi mais um pouco do pouco que sei. Feliz ano de 2010 para ti e para todos que acessam o seu blog.

  9. Almas grandes, almas de herói, como a sua como a de Seabiscuit. Sim, agora a dívida está quitada. Obrigado a você e Seabiscuit. Feliz Natal ao grande professor.

  10. Caríssimo
    Maravilha! De certa forma, me lembra a fábula da corrida entre a Lebre e a Tartaruga. Que ótimo será, se soubermos utilizar nossos dons de Lebre (poucos ou muitos) ,com a humildade e sabedoria da Tartaruga.
    Um forte Abraço

  11. Caríssimo
    Maravilha! De certa forma, me lembra a fábula da corrida entre a Lebre e a Tartaruga. Que ótimo será, se soubermos utilizar nossos dons de Lebre (poucos ou muitos) ,com a humildade e sabedoria da Tartaruga.
    Um forte Abraço

  12. Prof. Pablo,

    Como sempre suas palavras nos ajudam no dia a dia. Sou fã do Seabiscuit, ele consegue se superar e transmite isso a todos os que estão ao seu redor. E o que precisamos buscar são nossas próprias forças internas, para conseguirmos superar nossos obstáculos diários.
    Um grande abraço.

  13. Prof. Pablo,

    Como sempre suas palavras nos ajudam no dia a dia. Sou fã do Seabiscuit, ele consegue se superar e transmite isso a todos os que estão ao seu redor. E o que precisamos buscar são nossas próprias forças internas, para conseguirmos superar nossos obstáculos diários.
    Um grande abraço.

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