Entre Irmãos: A família que nos cuida e nos cura.

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Brothers . Diretor: Jim Sheridan. Jake Gyllenhaal , Natalie Portman , Tobey Maguire ,  Sam Shepard. 105 min. 2009.

A família é um tema recorrente –na verdade, uma paixão- nos filmes de Jim Sheridan. Nota-se que mamou os valores familiares da Irlanda profunda, sua segunda paixão. De um modo ou outro, o diretor irlandês plasma seus amores entre os fotogramas dos filmes que dirige. Vale lembrar “O Meu Pé esquerdo”, um tributo magnífico à mãe irlandesa, um monumento de mulher. E, anos depois, “Em Nome do Pai”, o elogio rasgado de um pai que, por trás de uma aparente pusilanimidade, demonstra a honestidade e a fortaleza de um colosso. Sheridan fez um encantador ensaio do amor entre irmãos –ainda crianças- no pouco conhecido “Terra dos Sonhos” (In America). Agora chega “Entre irmãos”, outro mergulho familiar de categoria. Chega e vai embora, porque o tempo em cartaz foi mínimo. Enquanto escrevo estas linhas, acabo de falar com a Locadora onde alugo os filmes e me dizem que não chegou; e mais, que nunca ouviram falar dele. Parece que os filmes de Sheridan não tem cartaz, ou lhes falta marketing. Uma pena: com tanta bobagem como circula hoje em dia, seria uma opção consistente, um oasis no deserto das perdas de tempo e dos absurdos.

O argumento é simples, e não é o caso de detalhá-lo aqui. De um lado, o irmão exemplar, casado com uma mulher maravilhosa, pai de duas meninas encantadoras, militar responsável que defende seu país. Do outro, o irmão torto, beberrão e briguento, que vai sobrevivendo entre a cadeia e o desemprego, e embaraça a família de continuo. A vida da voltas, a virtude não é conquista perene –o vício, para esperança de todos, também não o é- e dessas mudanças e reviravoltas se aproveita Sheridan para dar o seu recado. Contundente, profundo, faz pensar. E fará com que muitos agradeçam, e outros se lamentem –por sentirem falta nas suas vidas- da força que nos chega da família. É da família de onde provém a seiva nutritiva, o alimento que nos sustenta.


É na família onde somos compreendidos, onde tudo tem desculpa e perdão, onde se recupera o alento para tentar melhorar. Na família há tempo para escutar, ocasião para despir nossa intimidade sem medo de ser magoado. Lá encontramos o sparring em quem podemos descarregar nossas raivas, e sabemos que agüentará. Não importa o tamanho nem a quantidade das nossas misérias, pois sabemos nos entenderão, buscarão soluções do nosso lado, injetarão ânimo e vontade de recuperação. E tudo isso porque na família impera a doação: dar sem nada esperar em troca, sem passivos contáveis. Na família aboliram-se os egoísmos, para fazer questão de pensar no bem dos outros. Não se fala de direitos, apenas se pensa em deveres, nos deveres que o carinho faz descobrir sem impô-los. Não se pensa em usufruir, mas apenas em servir.

Não importa quão grande sejam as dificuldades –mesmo tragédias- que a vida nos depare, se esses valores estão presentes. Esse é o recado forte que o diretor irlandês traz a tona. Quando a violência e o desespero fazem pensar que é necessário apelar para a autoridade de modo a contornar a situação crítica, as convicções de Sheridan se encarnam nos gritos do irmão torto: “Isto é uma questão de família- Family Matter”. As desavenças familiares nunca são um caso de polícia; são assuntos de família, expediente interno que deve se tratar intramuros. A roupa suja lava-se em casa. Sempre. Este é o argumento incontornável para deixar de fora os intrusos: “Você e meu irmão! Você é a minha família”. Gosto da expressão original em inglês, onde fica mais claro que você, meu irmão, não é apenas parte da minha família. Você é a minha família! You are my family! Você é a essência da minha família, não um apêndice do qual possa prescindir. Preciso de você, porque você é a unidade também. E nessa solidariedade, encontraremos um motivo sólido para viver. Um sentido para a vida, a tua, a minha, a da família.  A cena é tensa, rápida, repleta de suspense. O coração na mão. Mas a mensagem é uma carga de profundidade.

Não importa quem somos ou o que fazemos. Nada valem os títulos nem credenciais. Na família somos nós mesmos, sem maquiagem. Como dizia um velho amigo: Não adianta representar um papel diante de quem te viu de pijama!  Por isso na família é possível curar as mentiras que nos machucam, as insinceridades nas quais se vive mergulhado neste mundo de faz de conta. A falsidade é como faca de dois gumes, e o lado que nos atinge acaba fazendo um estrago maior. Quando não reconhecemos os nossos erros vemos o mundo distorcido, através da lente da nossa própria mentira. Tudo nos parece suspeito, com segundas intenções; projetamos nos demais a sombra da nossa própria indigência. Falta-nos coragem –clareza de inteções- para admitir nossas claudicações; os desajustes, instáveis como o vazio, atraem um corpo que lhes consolide. A culpa, fatalmente, incide sobre os que estão à nossa volta: pessoas, instituições, sistemas, este mundo às avessas. Somente na família, é possível desfrutar um clima que desmascare este triste engano. Com suavidade, apalpando a confiança, sabendo que seremos compreendidos, perdoados, animados a viver de novo com sinceridade, sem disfarces.

Lembrei nesse ponto de um filme que vi e comentei há alguns anos. “Coragem sob Fogo”, onde as trapalhadas da guerra –e da consciência- eram apresentadas magnificamente por Denzel Washington, sob a direção de Edward Zwick, sempre comprometida com a consciência de missão. Naquela ocasião, me permiti algum devaneio sobre a verdade e recordo ter invocado filósofos e escritores. Gilson, por exemplo, que afirmava ser a busca da verdade, sobretudo, um problema ético mais do que intelectual, porque os homens são muito propensos a procurar a verdade, mas pouco inclinados a aceitá-la. Achar a verdade não é difícil, o difícil é não fugir dela uma vez que se encontrou.  E também Maritain, quando fala das meias verdades, ou verdades diminuídas, das quais se alimentam as almas por ser a verdade plena forte demais, quase indigesta. Mas a minha invocação predileta correu por conta de Susanna Tamaro, que junta com sabedoria os conselhos de uma avó à neta rebelde, no seu Vá onde seu coração mandar. Diz a escritora italiana: “Não podemos fugir das mentiras, das falsidades. Ou melhor, podemos fugir durante algum tempo, mas, quando você menos espera, lá vêm elas à tona, já não são mais tão submissas como na hora em que as dissemos, aparentemente inofensivas, nada disso; durante o momentâneo afastamento, transformaram-se em monstros medonhos, em horrorosos ogros. Mal chegamos a nos dar conta e, na mesma hora, já estamos sendo vencidos, devoram-nos e a tudo que está em volta com uma voracidade espantosa”.

A família anda maltratada nos dias de hoje. E assim andamos todos, órfãos desse manancial de seiva que nos nutre. Há quem proponha repensar o conceito de família, por em pratos limpos o que é família, para que ninguém se sinta excluído. De fato, a perspectiva de ser um “sem família” apavora qualquer um; mas, não sendo fácil construir uma família com os predicados que acima articulamos, a solução é tornar o conceito mais amplo, flexível, confortavelmente globalizado, para que ninguém se sinta abandonado na sarjeta. A polêmica é ampla, e não é o momento de envolver-se nela. A briga nominalista pela idéia de família não é privilégio deste pós-modernismo que vivemos. Na verdade, o termo vinha sendo desgastado, talvez aproveitado, pelos magos do marketing quando ofereciam a esperança de encontrar uma família como anzol da publicidade. Escreve um pensador: “Respeito, comunidade, afeto, compreensão, preocupação, lealdade, liberdade, alegria, amor e até um par de sorrisos se oferecem agora como aquilo que vamos encontrar, por exemplo, numa cerveja, num perfume, num restaurante ou num banco; os propagandistas sabem que, infelizmente, cada vez são menos os que encontram isso na própria casa, se é que tem uma. Apesar dos esforços por encontrá-la, ainda não se descobriu uma alternativa para a família. A família é, como o amor, imortal”.

Esclarecendo que nada tenho contra as inovações nem quero marginalizar ninguém, bom será que cada um veja se o conceito de família que almeja será de fato ambiente de crescimento, de conforto, atmosfera onde seja possível se recompor das falsidades e curar as chagas das nossas misérias. Se será, verdadeiramente, um lugar onde possamos nos achegar cansados, abrir o coração sem pudor, pedir ajuda – e oferecê-la sem trégua-, e sairmos melhor do que entramos. Posto isto, o resto é por conta de cada um. Convocar variedades humanas, animais de estimação ou mesmo um zoológico no projeto familiar é prerrogativa da liberdade humana; os resultados dirão o quanto é flexível o conceito e, sobretudo, se é sustentável, por utilizar uma expressão moderníssima. O tempo mostrará se as variações familiares são alavanca para nos tornar melhores e empurrar-nos a viver a vida com alegria, ou um conchavo de egoísmos –cada um cuidando da sua vida- uma farsa efêmera, circo carnavalesco que inexoravelmente se aboca à quarta feira do desengano.

Há muitos anos –e com isto acabo as reflexões que são, por natureza, infindáveis- o meu pai ficou desempregado, com cinco filhos para sustentar. Não me lembro de tê-lo visto reclamar, nem queixar-se. Soube depois –ele mesmo me contou- que foi nesse momento quando “nasceu” o papel timbrado familiar. Conservo uma folha até hoje, como verdadeira relíquia de otimismo. Encomendou-a numa gráfica –não havia computadores na época- e mandou colocar no canto superior esquerdo o sobrenome da família, endereço e telefone; no direito lia-se o nome dele, o da minha mãe logo em baixo, e na linha imediatamente inferior o nome dos cinco filhos. O dono da gráfica lhe perguntou: “Mas, isto o que é exatamente?”. Meu pai sorriu e respondeu: “Esta é a única empresa que montei que deu certo”.

Estas linhas são um merecido tributo a ele, ao seu otimismo, e à “empresa” que, felizmente, continua dando certo.

Comments 2

  1. Belas citações caríssimo Pablo. Fostes muito feliz ao relacionar o poder de cura familiar com o estrategismo cinematográfico que Sheridan tem para tocar os amantes de sua arte.
    Mais uma vez, brilhante análise.
    Grande abraço,

    Pedro Nor

  2. Como bien ha explicado Pablo, los humanos necesitamos de otros humanos capaces de perdonarnos siempre, de escucharnos, necesitamos alguien a quien corresponder igual; ademas de llorar, recordar, sufrir y reír juntos. Estas relaciones son mas poderosas que los medicamentos, y mas duraderas que los gobiernos. El nombre que reciban tiene menos importancia, ahora les conocemos como -familia-. Pero, cuando las relaciones familiares son dañinas, el daño es inmenso. Las sociedades sabias se organizan para que sus familias sean nutritivas con sus hijos.
    Un saludo y enorme abrazo para Pablo González Blasco desde Guadalajara, México.
    Ismael Ramírez V.

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