Aos Cem Anos da Morte de Machado de Assis
Por Sérgio Sardinha de Azevedo
No dia 29 de setembro de 1908, o Rio de Janeiro assistia à morte do maior escritor brasileiro: Machado de Assis. Com ele, a literatura brasileira havia conhecido não somente um estilo novo mas, sobretudo, uma acuidade intelectual penetrante, com maturidade suficiente para analisar e compreender personalidades, acontecimentos, instituições e correntes de pensamento.
Quando Machado morreu, o século XIX havia terminado há pouco tempo, deixando como legado o materialismo, o cientificismo, o ateísmo, o agnosticismo e uma enxurrada de “ismos” que afogou diversas mentes promissoras. No entanto, Machado ensinara a desconfiar dessas escolas de pensamento, desarticulando seus longos raciocínios com um olhar irônico. Permanecia, porém, a dúvida: “Todos os “ismos” simplesmente não passam de um: o pessimismo?” Machado não respondeu essa pergunta. Assim como Brás Cubas não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, Machado morreu sem legar à posteridade a solução do enigma.
Enquanto o corpo de Machado de Assis atraía uma multidão de visitantes à sua casa no Cosme Velho, vivia na então capital do País um menino chamado Gustavo, estudante do Colégio Pedro II. Destinado a receber a forte influência do pensamento do século XIX, passaria do cientificismo para o materialismo, defenderia o ateísmo e se perderia nos labirintos do agnosticismo. Nas letras, teria sempre Machado como seu mestre. Tornando-se escritor, devido a um de seus livros em que analisa a obra machadiana, seria elogiado por ninguém menos que Manuel Bandeira, o qual afirmaria que ele havia escrito “um dos livros mais belos e mais fortes de nossas letras”.
Em meio à comoção que envolveu o Rio de Janeiro pela morte do grande escritor, passou despercebida para muitos – e principalmente para um garoto com doze anos ainda incompletos, como Gustavo – o lançamento de um livro do outro lado do Atlântico, mais precisamente em Londres. A 25 de setembro daquele ano, um jornalista de 34 anos publicava uma obra intitulada Orthodoxy. Naqueles últimos dias de setembro de 1908, Gustavo não soube da publicação desse livro nem que seu autor se chamava Gilbert Keith Chesterton. Sobretudo, não suspeitava que havia sido dado a conhecer ao público um livro que mudaria completamente sua vida.
Em Ortodoxia, Chesterton apresenta uma das mais desconcertantes defesas do cristianismo já escritas até hoje. Após confessar ter sido “um pagão aos doze anos e um completo agnóstico aos dezesseis”, constrói uma apologia do cristianismo em que refuta – sem nunca recorrer à Bíblia – diversas objeções lançadas contra a Igreja. O comentário feito para desmascarar a falta de liberdade dos chamados livres-pensadores ilustra bem seu estilo argumentativo. Sobre eles, Chesterton afirma que: “O homem do século XIX não deixou de acreditar na Ressurreição porque seu cristianismo liberal lhe permitia duvidar dela. Ele deixou de acreditar nela porque seu materialismo demasiadamente estrito não lhe permitia acreditar nela.” À medida que o leitor avança pelas páginas de Ortodoxia, vê inúmeros preconceitos contra a religião serem desarmados através de paradoxos, inversões de ponto de vista e reduções ao absurdo; uma arte, enfim, que Chesterton manejava com habilidade singular. É perfeitamente meritório e justo que Chesterton tenha sido elogiado por uma multidão de escritores, entre os quais se encontram nomes como Ezra Pound, Jorge Luis Borges, Evelyn Waugh, C. S. Lewis, Aldoux Huxley e Graham Greene.
O menino Gustavo cresceu e um dia, quando já era conhecido por Dr. Corção, recebeu como presente de um amigo um exemplar de Ortodoxia. Ficou fascinado e, como ele mesmo revelou, “muitas vezes entrava pela noite a dentro, lendo até não poder mais, e amanhecia abraçado ao livro”. Através da apologia de Chesterton, Gustavo Corção, como muitos outros, descobriu a força e a beleza do cristianismo. Além de escrever um livro sobre a obra e a figura de Chesterton, Corção manteve até o fim da vida sua admiração pelo apologista inglês, como bem atesta um artigo – intitulado simplesmente G. K. Chesterton – publicado em 1974 no jornal O Globo, no qual confessa que “grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton”.
Quem, porém, julga que em Ortodoxia encontrará uma defesa do cristianismo intelectualmente fria e sem vida, engana-se rotundamente. O bom humor transborda da pena de Chesterton, que chega a escrever, já no final do livro, que “a alegria, que foi a pequena marca pública do pagão, é o gigantesco segredo do cristão”. Essa alegria levou Corção a admitir – referindo-se ao livro – que “com ele brinquei as horas mais felizes de meus quarenta anos”. Tivesse Machado vivido mais tempo, provavelmente também teria se deleitado com a obra do escritor inglês.