Pensando sobre Marañon em sua terra: O médico e a tolerância
Por João A. G. G. Prats
Diário da nossa viagem: difícil escrever. Parece que foi tudo tão rápido. Mas tanto aconteceu nesses poucos dias que se passaram. Quanto amigo reviu? Poucos, mas pude conhecer novos amigos. A vida nos mostra lições a cada dia. Esta viagem certamente não foi diferente. Como pôde, Gregorio Marañon durante sua juventude ter visto, vindo das mesmas pessoas, brigas políticas durante o dia e filosóficas conversas “entre amigos” durante à noite em sua casa? A lição da tolerância seria a primeira de muitas que Marañon nos ensinaria e quero colocá-la em foco neste texto.
Parece que ser um grande médico é pouco perto de ser uma grande pessoa. Um médico, strictu sensu, é incapaz de entender a complexidade da existência humana. É incapaz de perceber as tênues questões implicadas no cuidado de uma pessoa, quem dirá das muitas que cruzarão seu caminho. O quadro “está melhor?” o único que reproduz Marañon em tela mostra talvez a pergunta mais importante a se fazer a um paciente, ainda que nada saibamos de “medicina”.
Não seria essa a primeira lição que deveríamos aprender? Em Cordoba, recordo da grande mesquita, ou seria igreja? Tudo que os árabes construíram, foi apenas modificado. Como poderiam os cristãos, depois de perder suas famílias, amigos e até suas vidas em incontáveis batalhas nas cruzadas, não destruir aquilo que simbolizava talvez o mais importante, os ideais de seus inimigos?
Façamos uma reflexão. A tolerância desses nobres homens, indiscutivelmente, uma lição que nos preenche só de olhar. Será que a maior virtude de um líder não seria a tolerância? Descobrimos em Córdoba, que o grande líder árabe, Saladino, conquistador de incontáveis vitórias, tinha como médico de si e de sua família, ninguém menos que um judeu, Maimônides. Vimos também na visita ao museu das cruzadas em Toledo, que esse homem tinha grandes acordos com os cristãos. Fazendo um paralelo com o filme Cruzada, lembramos que Saladino honrou a bravura do barão de Ibelin, que saiu de Jerusalém, em troca da segurança de seus semelhantes. A tolerância põe-se mais uma vez adiante de grandes atos, que salvam vidas.
Em nossas vidas médicas, não faria parte da tolerância, ver que o doente mais difícil de cuidar, talvez seja o mais importante? Em um almoço com nossos colegas em Toledo, discutimos sobre isso. Ideais, não devemos tolerar tudo, para mantê-los? Não seria esta mais uma lição de tolerância? Discutimos o paciente que precisa de mais tempo, de mais cuidado, que faz tudo errado mesmo quando fazemos o máximo. Talvez haja mais do que os olhos podem ver. A tolerância nos faz enxergar mais. Tolerar é tentar entender.
Volto novamente a Marañon, e me pergunto como pode ter sido tão grandioso médico. Talvez ele tenha sido apenas, menos médico do que todos os outros. O que quero dizer é que talvez ele tenha menos de médico, proporcionalmente, do que os médicos de hoje. Marañon era amigo de todos, filósofo, escritor, mestre, artista e daí médico.
O congresso me deu a oportunidade de me unir a novas pessoas pra construir um trabalho fantástico. O que eu inicialmente pensei que não seria muito diferente da ultima vez, mostrou-se muito mais proveitoso. Trabalhamos duro com nossas apresentações. Tivemos a oportunidade de trabalhar juntos de uma forma que talvez não pudéssemos de outro modo. Foi maravilhoso ver as nossas discussões virando apresentações, aprender com críticas construtivas e um indescritível senso de união. Tolerar um ao outro, como cristãos e árabes.
Quero dar um significado maior a esta palavra, tolerar. Tolerar nos possibilita aproximar, conhecer, e até entender mais. A tolerância é base pro trabalho em equipe. E me impressiono após este trabalho todo, entre pessoas tão diferentes, de origens e criações, conhecimentos, qualidades e defeitos, num uníssono: vamos fazer o melhor.
Recordo um dos trabalhos, Ivan Ilitch ensinando medicina. Não é mais interessante entender uma doença quando nos escrevem os que sentem? Não somos capazes de entender melhor algo quando temos um professor que nos tolera e vice-versa? Os livros podem ensinar muito, mas no meu entender, eles ensinam apenas porque foram escritos por pessoas. E nos atos de pessoas que deixam palavras, desenhos, esculturas, ou grandes construções é que realmente aprendemos. Construir sem ter o objetivo de ver pronto foi o marco das maravilhas de grande parte do milênio passado e de antes. Dar sua vida para uma coisa que você não verá o resultado imediato é parte do que o médico faz. E eu explico: Quando cuidamos de uma criança e depois de um jovem, depois de uma mãe, e de seu filho, quando damos alta a alguém, quando deixamos de saber o que acontecerá com aquela pessoa de novo e de novo, no íntimo, estamos trabalhando com pequenos resultados imediatos, mas os grandes resultados virão muito depois e com certeza não veremos todos eles. Ver catedrais incríveis me fez pensar nisso. A historia é tão mais bonita quando vislumbrada de perto. As pinturas quando interpretadas, mesmo elas, nos ensinam história.
Devo dizer, no entanto, que não aprendi muito sobre aquela “história” que aprendemos pra passar nas provas, mas o que vi me deixou com uma incrível vontade de ler mais, aprender mais sobre tudo o que se passou ali. Não entendo por que, mas parece maravilhoso saber o que levou cada coisa a ser o que é.
Eu ia pular à conclusão, mas me lembrei de algo que preciso escrever. Após uma festa que fui durante a viagem, e sim, daquelas dançantes, tive uma longa conversa com um amigo. Agora reflito, percebo que contei a ele sobre o sistema único de saúde, sobre os políticos, sobre minha faculdade, e com o quanto várias coisas me incomodavam. Duas coisas me surpreenderam muito. Ele me disse pra fazer algumas coisas simples, do nível de: vá lá e mude, e é só fazer isso. Penso então, como poderia não estar clara, tal simplicidade? Era tudo tão fácil de mudar assim? Como eu não podia enxergar?
A segunda coisa que me surpreendeu e corrobora com a questão anterior é que eu realmente entendia do que estava falando. Eu nunca imaginei que seria capaz de falar de saúde publica, e afinal, fluía incrivelmente. E então, mostrando tanto conhecimento e vontade de mudança, crítica, eu não era capaz de enxergar. Faltava o que? Tolerância. Tolerar também é lidar com nossos sentimentos, também temos de tolerar a nós mesmos. Entendi algo mais que adiciono a esta lição de filosofia. As pessoas podem nos ensinar tolerância. Podemos aprender com bons amigos a nos olhar, nos tolerar melhor. Hoje está claro que vou fazer algo sobre o que discuti, e só tenho este colega a agradecer, por uma conversa da 1 às 4 da manhã pós-balada. Onde estava? Volto pra ler algumas linhas acima.
Falava sobre minhas reflexões neste vôo. Entender a dor dos outros é difícil, mas as histórias que conhecemos nos levam mais próximos disso. Ano passado, naquele congresso na Suíça, eu mesmo falei sobre isso. Como as historias podem nos ajudar a nos aproximar mais do entendimento. Aí falo novamente da tolerância, temos que tolerar pra poder ouvir e entender as histórias de nosso pacientes, que deveríamos chamar de nossos confidentes ou talvez de “aqueles que confiam em nós”. Naquela reunião que mencionei lá em cima, falamos: “Podemos cuidar bem dos nossos pacientes, com o tempo que precisarem e ainda ganhar dinheiro. Podemos tolerar tudo por nossos ideais”. Após muito tempo de “tolerância”, nossos pacientes nos dizem coisas que não diriam a ninguém, e isso é talvez um bem maior do que qualquer outro. Mais do que curar, devemos sempre paliar, e lá se vai mais um trabalho do congresso, que fiquei muito feliz em apresentar junto a dois amigos.
Deixar os cuidados do que resta de sua vida nas mãos de alguém, com confiança de que será o melhor, é outra lição de tolerância. Esse é outro trabalho em que investimos sem nos importar com o tal resultado final. Coisas imutáveis como a morte, mostram que nosso trabalho pode ser mais do que curar, daí então fazer com que alguém, nas palavras de Cecily Saunders, “viva até morrer”. E que lição de tolerância é um médico que trabalha com cuidados paliativos. Ele tem que tolerar suas limitações perante as coisas imutáveis da existência.
Ao escrever esta última frase penso, tenho que lembrar o leitor e a mim mesmo que tolerância não significa estase, ficar parado diante de algo. Precisamos nos esforçar pra tolerar. Tolerar é diferente de ficar sem fazer nada diante de um problema. Que isso fique claro, ficar parado, certamente é ser intolerante, e como? Simples. Não fazer nada diante de um problema é desistir, fugir em outra direção ao invés de tolerá-lo até que possa ser resolvido da melhor maneira. Tolerar as diferenças não é viver em cisão, mas sim em comunhão. Tolerar é não deixar de fazer nada, só porque há algum problema, alguma diferença ou insegurança. Cada lição que aprendemos tem que nos tornar mais tolerantes para mantermos nossos ideais. Marañon, o tolerante, se posso chamá-lo assim, já dizia: “jamais ficar ancorado” – ou seja, nunca parar de melhorar. E deve ser isso que buscamos. Nosso grupo teve desavenças e dificuldades que eu diria, magicamente desapareceram. Diria que o grupo tolerou-se em prol de um bem maior e que só mais tarde percebemos que o bem maior foi nos tolerarmos. Divertimo-nos bastante também, e nas palavras de uma amiga: “o que levarei pra sempre daqui são as amizades pra toda a vida”. Como Marañon, e volto a ele mais uma vez, quero meu cigarral em Toledo para convidar a todos, e talvez, em meio a amigos maravilhosos, boa comida, diversão e arte, aprender ainda mais lições valiosas como as desta viagem.
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