O Pequeno Nicolau: A tremenda simplicidade de uma alegria contagiante.

Staff Filmes 3 Comments

Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.
    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

    Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

    Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

    Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

    Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

    Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.

Comments 3

  1. Maravilha!

    Li o post e já tenho uma proposta de filme para assitir com a família na virada do ano, aqui em São José dos Campos.

    Um abraço,

    Adriano.

  2. Olá Pablo!

    Obrigado pela indicação e também pela reflexão!

    Um Feliz Ano Novo para você também!

    Kleber Basílio Senefonte

  3. Com mês de atraso acabo de saborear tão belas reflexões.
    Ainda não assisti ao filme,mas pretendo fazê-lo.
    Dr. Pablo, obrigada. O senhor tem o dom de tocar nossa alma.
    Maria do Carmo Maciel França Madeira.

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