Ian Ker: John Henry Newman. Una Biografía.
Ian Ker: John Henry Newman. Una Biografía. Palabra. (2010). 793 págs.
A primeira advertência que é preciso fazer é de que estamos diante de um livro de difícil leitura. Talvez porque não é propriamente uma biografia, mas um perfil biográfico, o que não quer dizer que seja superficial; aliás, é tudo o contrário. O autor conhece a vida e obras de Newman de modo admirável, interpreta o sentir da personagem que afirmava que “a vida de um homem está nas suas cartas” (pg. 740) e monta um verdadeiro puzzle biográfico, traçado com trechos das 20 mil cartas que se conservam de Newman. O resultado é uma exuberante coleção de dados onde se misturam a ciência teológica, as dúvidas, as crises, o amor a Deus, a vontade de reformar a Igreja anglicana, além do amor incondicional pela Inglaterra, elementos presentes na alma de John Henry Newman. Fica difícil saber qual é o fio condutor, a cronologia desta vida, porque o livro nos leva direto às interioridades, ao pensamento, à consciência de Newman, sendo o exterior mero detalhe. As arvores –verdadeira floresta de informação- não deixam ver o bosque.
Não é um livro para qualquer um; na verdade é um livro para poucos, certamente para os que conhecem bem a vida de Newman. A quem se aventure por primeira vez no estudo deste personagem admirável, recomenda-se que leia antes outra biografia, ou mesmo a Apologia Pro Vita Sua, que resulta um bom guia biográfico para enfrentar o livro que nos ocupa. Essa foi a minha experiência e a minha preparação prévia, e mesmo assim tive de investir alguns meses na leitura da obra, espaçando-a, deixando repousar o aprendido, lendo em diagonal alguns trechos onde o autor aglutina dados e personagens em profusão, como se tudo fosse familiar ao leitor e não fossem necessárias as apresentações. Um texto do próprio Newman serve de crítica construtiva ao estilo do autor, além de ser um importante conselho para quem pretende aumentar a cultura: “O que engrandece nosso conhecimento não é simplesmente aumenta-lo, mas mudar de lugar, um movimento para adiante, para o centro moral, em direção ao qual gravita todo o volume do nosso conhecimento. Um modo de pensar filosófico, a sabedoria na conduta ou na política, implica uma vinculação do novo com o velho, um penetrar na relevância e na influência de umas partes com as outras. Não é um conhecimento apenas de coisas, mas de relação mútuas; um conhecimento organizado e vivo.” (pg. 280).
Evidentemente, nada do aqui comentado, vai em detrimento do muito aprendizado que se decorre ao longo destas 750 páginas. O itinerário moral do Cardeal Newman, a construção da resposta honesta ao estudo através do assentimento moral à fé, fica patente a toda hora. “A fé precisa de uma salvaguarda que a proteja, e isto é a disposição interior: um estado correto do coração. Cremos porque amamos. A fé reta se da numa mente reta. A fé é um ato intelectual realizado com certa disposição moral.” (pg. 278).
Os ensinamentos são muitos, e envolvem bom senso, humor, e aspectos práticos de catequese. Assim, comenta-se que Newman “quase se resistia a promover a conversão para o catolicismo de mulheres trabalhadoras porque teriam depois dificuldades enormes tanto para conseguir trabalho como para casar.” (pg. 358). Outra passagem aponta que certo Bispo comentou a propósito de uma definição dogmática, que a fé do povo era o reflexo do ensinamento da Igreja. Newman saca ponta ao comentário dizendo: “Reflexo, isso é o povo. Um espelho no qual o Bispo pode ver-se, consultar seu espelho e desse modo conhecer detalhes sobre si mesmo que de outro modo não conheceria”. (pg. 492). “Considero de pouco interesse os livros que dividem os capítulos conforme as virtudes: fé, esperança, caridade, virtudes cardeais… Não manifestam como é um santo; apenas o fatiam em lições espirituais.” (pg. 494).
Enfrentou dificuldades e incompreensões durante toda a vida. Os ataques lhe chegavam dos anglicanos, seus antigos correligionários; mas também dos próprios católicos e até da hierarquia da Igreja, por vezes desconfiante da sua conversão. Não poucos, num afã irracional de defesa da fé católica, olhavam com receio o diálogo ecumênico que Newman assumia com os diferentes credos, ou o papel que atribuía aos leigos na construção de uma verdadeira cultura católica e britânica. Havia um pensamento entre a hierarquia católica inglesa, de que somente um leigo ignorante é manejável, fácil de submeter-se à autoridade. (pg. 674) Newman entende que a obediência sem formação é limitada, e conduz à mediocridade. Somente a formação das consciências gerará a reponsabilidade e a iniciativa que se pode esperar de um católico e de um homem religioso, que busca adaptar diariamente a sua fé à sua vida. Esclarecedoras são estas conhecidas palavras suas: “Se fosse obrigado a trazer um assunto de religião para um brinde após o jantar –coisa que nem sempre me parece conveniente- brindaria pelo Papa, se assim o desejam os comensais; mas, antes que pelo Papa brindaria pela consciência”. (pg. 693).
O autor não oferece a cronologia lógica que se espera de uma biografia, mas mesmo assim é possível deduzi-la ao longo da obra. E, nesse trabalho investigativo que cabe ao leitor, a personalidade do Cardeal Newman vai se agigantando, de modo sereno e amável, como os retratos que dele conhecemos. Um homem de viver simples, que vai se inundando de serenidade e compreensão; mas um homem de contundente intelectualidade, e de produção científica enciclopédica. Trabalhou até o final de vida, sem desistir, sem colocar as incompreensões como desculpa para se aposentar no seu trabalho de intelectual e de pastor. Um trabalhador incansável que não gostava de ficar em evidência. “Como São Gregorio Nazianceno, gosto de ir pelo meu próprio caminho, ter o meu próprio tempo, viver sem barulho, sem compromissos que me pressionem. Se me colocam uma veste oficial não valho nada; deixem que vá ao meu ritmo e conseguirei fazer alguma coisa. Se me vestem oficialmente, farão do vestido o meu sudário; se me deixam sozinho viverei o tempo que me corresponda”. (pg. 634).
O Concílio Vaticano II, um século depois, daria razão a Newman em muitos dos aspectos inovadores da sua ciência teológica. Como ele mesmo dizia, “existe um tempo para tudo, e muitos homens desejam a reforma de algo que foi um abuso, ou um desenvolvimento mais completo de uma doutrina, o adotar uma política particular; mas esquecem de se perguntar se é o momento adequado para isso. Entendem que não haverá ninguém que o faça no tempo que dura a vida deles, que somente eles poderiam provocar essas mudanças, não ouvem a voz da autoridade e deitam a perder boa parte do seu tempo e da obra que empreendem; além de que impedem que outro homem, que ainda não nasceu, possa no futuro aperfeiçoar essa obra, já no tempo oportuno.” (pg. 563)
Muitas das perseguições e incompreensões que Newman sofreu tiveram origem na inveja que uma personalidade como a dele suscita à sua volta. Também as que lhe chegavam dos católicos, e mesmo de Roma, que segundo ele não acabava de entender os ingleses. E a defesa que teve de fazer da sua postura, como em Apologia, serviu como meio de aproximar-se dos anglicanos e protestantes, sem afastar-se da ortodoxia católica. “Os católicos não nos converteram em católicos; foi Oxford quem nos fez converter-nos em católicos”. (pg. 504). Mas, afinal, como ele advertia, chega o tempo certo. E John Henry Newman, próximo aos 80 anos, é criado Cardeal da Igreja Católica ao tempo em que Oxford o distingue com a nomeação de primeiro Fellow Honorário.
O prestígio deste homem que abrangeu todo o século XIX continua crescendo. O Papa Bento XVI se desloca pessoalmente até a Inglaterra em 2010 para beatificá-lo. Uma viagem histórica que encerra os cinco séculos de ausência de um Papa como chefe de estado na Grã Bretanha. No emaranhado deste livro, não é difícil entender a simpatia que o Professor Ratzinger –sem dúvida, o maior intelectual nos dias de hoje- deve ter pelo Cardeal inglês. E há quem comente que chegará a ser Doutor da Igreja Católica, também no tempo certo. Saber esperar, esperar trabalhando, é outro dos legados do Cardeal para a posteridade.
Por outra parte, os ingleses consideram Newman como patrimônio próprio, e com razão, pois era inglês até o último fio de cabelo. Os santos ingleses –Becket, Thomas More, agora Newman- tem essa particularidade: são santos que sabem aliar a excelência nas virtudes com um profundo amor por Inglaterra. Ninguém nunca lhes poderá criticar a menor mingua de vibração pelo sentir britânico. Até se poderia afirmar que se a igreja anglicana é inglesa e confessional na sua medula, os santos ingleses, como
resposta à altura, são de uma anglofilia também confessional, uma demonstração de que o amor a Deus é compatível com o orgulho de sentir-se inglês.
Para quem conhece a fundo a vida e obra de John Henry Newman, este livro lhe brindará a oportunidade de muitos outros ensinamentos, além dos que aqui se recolhem. Mas, insisto no conselho inicial: antes de enfronhar-se neste estudo árduo, é preferível primeiro ler alguma obra de Newman, como a Apologia, ou Discursos sobre a Educação Universitária e sem dúvida esta outra excelente Biografia. O ritmo e o tempo certo também são necessários para não incorrer num erro de metodologia na leitura, que colocaria em risco o interesse por este personagem fascinante.
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