Cavalo de Guerra, um promotor da Paz
Cavalo de Guerra, um promotor da Paz: O Cinema antropológico de Spielberg
(War Horse) 146 min. Dir: Steven Spielberg. Jeremy Irvine, Emily Watson and David Thewlis
Alimentava boas expectativas diante do último filme de Spielberg. Não me decepcionou; sai satisfeitíssimo. E enquanto esboço estes comentários desfilam pela minha memória as lembranças do meu relacionamento com esse diretor, um eterno menino, que sabe sonhar, que desfruta fazendo filmes, que toca fundo a fibra afetiva do expectador.
Quando Spielberg nos apresentava há mais de 30 anos seus ensaios cósmicos –Contatos Imediatos, E.T– recordo que, apesar da boa acolhida do público, não me interessei pela temática. Talvez fosse a minha juventude, ou o gosto por um cinema direto, ou a pouca simpatia que sempre tive pela ciência ficção. A saga de Indiana Jones –divertidíssima- vinha assinada pela dupla Spielberg- George Lucas, quer dizer, não era um Spielberg genuíno. Foi anos depois, com A Cor Púrpura, quando percebi que por trás de temáticas variadas os filmes de Spielberg destilavam poesia, a inspiração que o ser humano encerra. Acordei: comecei a respeitar os filmes dele, respeito que se transformou em admiração. Hoje, além da admiração sou obrigado a creditar dividendos nesta conta de relacionamento, pois as cenas de A Lista de Schindler, Amistad, O Resgate do Soldado Ryan, fazem continuo ato de presença nas minhas aulas e conferências. Sou quase um Spielberg-boy, um Spielberg-freak, e me sinto irmanado com ele no amor pelo bom cinema, ou melhor, pelas possibilidades que o cinema nos oferece para mergulhar no mistério do homem. Uma antropologia em versão celuloide.
Cavalo de Guerra é, contra toda aparência, um filme antropológico. Os variados comentários que escutei não chegam, no meu modo de ver, no âmago da questão. Ouvi dizer que era um filme ingênuo. Escutei que era um filme bonito, talvez longo demais. Comentou-se que era muita aventura para um cavalo, areia demais para um modesto caminhão. E alguém se atreveu a afirmar –e aqui concordo plenamente- que era a versão equina do Soldado Ryan. Penso que o cavalo de guerra é uma elegante metáfora. Spielberg põe num cavalo tudo o que gostaria de colocar no ser humano, mas é difícil de encontrar um protagonista que reúna esses predicados.
Lembrei de um pensamento que li há muitos anos e reproduzi em outros comentários a propósito dos filmes que se atrevem a falar com franqueza. O filósofo em questão afirmava que a simplicidade que conquista e se impõe é própria das crianças, dos loucos e dos santos. As crianças falam o que pensam porque não tem discernimento nem conhecem a vergonha. Fácil lembrar situações embaraçosas, onde o menino fala para a mãe em voz alta que “aquela amiga chata está no telefone te esperando”. O louco perdeu a crítica que governa as boas maneiras e o relacionamento social. O santo não se preocupa com a plateia humana, pois atua de cara a Deus. Para dizer verdades contundentes, fazer filmes de santos teria pouco marketing; daí que o cinema utilize crianças e loucos –gente atípica: Rain Man, Forrest Gump, por dar um exemplo- para transmitir ideias sem incomodar ninguém. Uma solução politicamente correta à qual Spielberg acrescenta agora um cavalo. Crianças, loucos e agora os animais (não de modo figurado, como Disney), mas em carne e osso, em plenitude do seu mundo irracional, evocando timidamente o ser humano, convidando-o a assumir o papel que o animal é obrigado a desempenhar até que apareça algum homem que seja capaz de substitui-lo.
O Cavalo de Guerra é um promotor da paz. As aventuras e vicissitudes pelas que atravessa têm um denominador comum: a descoberta de pessoas de bem. O cavalo de guerra é como uma linha que costura homens de paz, de boa vontade, independente do credo, do país, ou da bandeira à qual servem. Suas missões aparentemente bélicas são motivo para atrair as pessoas certas que ele se encarrega de descobrir. Lá onde ele vai parar –ou melhor, onde é levado, não tem vontade própria, lembremos que é um cavalo- invariavelmente se depara com pessoas que sintonizam e são congregadas para uma missão de paz no meio de uma guerra mundial. E tudo isso o consegue desempenhando sua função a consciência: cumprindo o seu dever. Não é Pégaso, nem Centauro, nem mesmo cavalo adestrado de circo. É simplesmente um cavalo que trabalha, que não se poupa e que enfrenta desafios novos embebido pela boa vontade de ser útil.
Veio à memória a condição de eficácia que um santo contemporâneo resumia em quatro ações: calar, trabalhar, sorrir, rezar. E, por vezes, também metaforicamente, personificava estes verbos não na figura de um cavalo, mas num burro. Evidentemente, nem um nem outro, rezam nem sorriem; mas trabalham caladamente, eficazmente, dão conta do recado. O sorriso e a prece ficam por conta do ser humano que tenha a coragem de assumir o papel que o burro ou o cavalo desempenham enquanto esperam que alguém se candidate.
Quando se trabalha caladamente, sorrindo e com sentido de transcendência, as circunstâncias mais adversas se convertem em terreno fértil, onde é possível encontrar no meio da podridão que nos rodeia, gente de bem, pessoas de boa vontade, ar para respirar, luz no fundo do túnel. Um belo desafio para qualquer ser humano: ser um promotor da paz e do bem.
Parabéns para o Steven Spielberg, esse garoto de 68 anos que se permite sonhar, e nos arrasta no seu sonho estético, sem vergonha de ser feliz. Um filme ingênuo? Um filme bonito? Depende do que você procura no cinema. Para mim o resultado é claro: um épico com sabor de western de John Ford – horizontes que o pôr de sol tinge de vermelho. Uma avalanche de virtudes silenciosas à espera de um protagonista. Um convite a fazer o mundo melhor. Uma epopeia humana montada num cavalo de guerra que teima incansavelmente em promover a paz.