O humanismo médico de Gregorio Marañón: um exemplo sempre atual

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The medical humanism of Gregorio Marañón: a timeless example

João Antônio Gonçalves Garreta Prats
Acadêmico do 5º ano do curso de Ciências Médicas do Centro Universitário Lusíada – Santos – SP.
Pablo González Blasco
Doutor em Medicina. Diretor Científico da SOBRAMFA.
RBM Jan 12 V 69 Especial Oncologia

 

Numeração de páginas na revista impressa: 18 à 24

Resumo

Gregorio Marañón y Posadillo (1887-1960) foi membro da denominada Geração do 14, um grupo de intelectuais espanhóis e homens de ciência, conhecido pelo europeísmo, racionalismo e cientificismo. O presente estudo relata alguns dos trabalhos inspiradores de Gregorio Marañón e a sua análise atemporal da figura humana do médico e da medicina atual. Dentre as atitudes do médico, Marañón confere particular importância ao entusiasmo e à dedicação, que são como garantia de qualidade da sua ação. Uma postura que hoje poderíamos traduzir como compromisso e empatia com a pessoa do enfermo. Para Marañón, a formação humanística é tarefa e compromisso essencial no médico, fonte de conhecimentos, recurso inestimável na sua profissão. Afirma também que o protagonismo do paciente implica em saber “defendê-lo” do uso indiscriminado da tecnologia. Propõe, assim, um verdadeiro resgate das origens da profissão médica, adaptada ao progresso moderno. Descreve-se o “conhecimento” que tivemos da vida e obra de Marañón na exposição realizada em Toledo (Espanha), por ocasião do cinquentenário da sua morte, que supôs algo de valor inestimável. 


Conclui-se o presente artigo com nossas reflexões sobre o pensamento do médico espanhol que demonstra com clareza as perturbações da prática médica na Europa, tão extrapoláveis e tão atemporais, que apresentam completa atualidade no século XXI. Formar médicos verdaeiramente humanistas requer a instalação de um processo de reflexão que lhe permita, de modo contínuo, reavaliar sua opção vocacional, sua resposta como pessoa e como profissional. O estudo dos trabalhos de Gregorio Marañón representa contribuição de enorme valor para as reflexões necessárias ao estudante de Medicina em sua formação.

A título de introdução

Quem foi Gregorio Marañón (1)?

Gregorio Marañón y Posadillo (1887-1960) foi membro da denominada Geração do 14, um grupo de intelectuais espanhóis conhecidos por seu europeísmo, racionalismo e cientificismo. Aquela geração era constituída por homens do mundo artístico, literário e, também, por homens da ciência.

Gregorio Marañón iniciou seus estudos médicos em Madrid, no antigo Colegio San Carlos, no curso pré-universitário de 1902-1903. Seu excelente desempenho acadêmico o levou a obter o Prêmio Extraordinário de Licenciatura em 1909. Concorreu também ao prêmio Martínez Molina, galardão concedido pela Real Academia Nacional de Medicina Espanhola. Seu trabalho – Investigaciones anatómicas sobre el aparato paratiroideo del hombre – foi o vencedor, a despeito de não haver completado ainda seus estudos médicos. Este prêmio proporcionou transcendência fundamental a sua carreira acadêmica e científica.

Marañón deu seus primeiros passos profissionais em duas direções principais: a endocrinologia e a luta contra as doenças infecciosas. Em Frankfurt, trabalhando com o dr. Ehrlich, ajudou no desenvolvimento do 606, que foi tido como um grande avanço no combate às doenças infecciosas, sobretudo no combate à sífilis. Marañón finalizou seu doutorado e elaborou sua tese – La sangre en los estados tiroideos – com a qual obteve o Prêmio Extraordinário de Doutorado. Tão importante foi a presença de Marañón como endocrinologista na Espanha que, com a guerra e seu exílio para Paris, a Endocrinologia praticamente desapareceria naquele país até 1947. Após sua morte, em 1960, a cadeira de Endocrinologia permaneceu vazia até 1969.

Marañón foi conhecido em toda a Europa e ao redor do mundo e toda a sua história, seus feitos, pesquisas, trabalhos e contribuições estão muito além do mérito deste estudo.

Gregorio Marañón no Brasil

Impressiona que pouquíssimos médicos conheçam Gregorio Marañón no Brasil. Entre os estudantes de Medicina não encontramos um sequer que o conhecesse. Tivemos a oportunidade de melhor apreciar essa insigne figura numa viagem à Espanha, para um congresso internacional, durante uma visita à cidade de Toledo. Marañón foi um médico de alto prestígio na Espanha do século XX, além de um endocrinologista internacionalmente conhecido. No entanto, o que torna tão atraente estudar seus trabalhos é o fato de ele ter sido muito mais do que um médico famoso. Marañón foi um liberal, um historiador notável, pensador e crítico, professor, escritor, filósofo, mestre e um ser humano de categoria excepcional. Ele encarna com perfeição a figura do Humanista, a quem podem aplicar-se os dizeres clássicos: Nihil humanum alienum me est (nada humano é alheio a mim).

Este estudo objetiva comentar e refletir sobre alguns dos trabalhos inspiradores de Gregorio Marañón, em busca de uma análise atemporal da figura humana do médico e da Medicina atual. Faremos, pois, algumas considerações estabelecendo um paralelismo entre o estudante de Medicina e o médico dos dias de hoje, ao sabor dessas reflexões que também querem ser um motivador para o estudo do trabalho de Marañón nos anos da formação médica.



O humanismo médico de Gregorio Marañón: um exemplo sempre atual

O estudante de Medicina

Entusiasmo e vocação
O entusiasmo é um denominador comum dos estudantes de Medicina no início da faculdade. Entusiasmam-se comtudo o que há de novo. A primeira ida a um laboratório de anatomia, o primeiro paciente examinado, a primeira patologia estudada, a vida em um lugar novo, com pessoas novas, novas inspirações. O entusiasmo não é aspecto a ser desprezado, como se fosse elemento ingênuo; uma ingenuidade que o tempo fará perder. Marañón associa o entusiasmo com a nobreza interior, condição imprescindível para o futuro médico:

“Todo homem verdadeiramente entusiasta, na ciência ou na vida em geral, é sempre um homem bom; e talvez haja poucos índices mais certos do que o entusiasmo para julgar a qualidade moral dos outros. Nada abre o coração e mostra com menos reserva seus recantos como o entusiasmo (2).”

E ainda integra o entusiasmo com a verdadeira vocação:
“Esta força que penso deva chamar-se extra científica, depende em última análise de uma coisa só: do entusiasmo do médico, do seu desejo fervente de aliviar a seus semelhantes, em suma, do rigor e emoção com que sinta o seu dever. Nisto consiste a vocação: numa emoção primordial do dever, em detrimento dos possíveis direitos. Isto é muito mais importante do que um problema de aptidão, onde superficialmente se costuma localizar a questão vocacional. A aptidão se adquire – salvo raras exceções- mesmo que se careça dela completamente, no calor da emoção ética. Todos os homens servimos para quase todas as coisas, sempre que queiramos com vontade inamovível. A vocação é uma questão de fé, não de técnica (3).”

Daqui se percebe facilmente que o entusiasmo é uma qualidade de excelência que, no estudante de Medicina, pode motivá-lo ao encontro de sua verdadeira vocação. Temos aqui um primeiro ponto de reflexão: quando a motivação para estudar Medicina não está atrelada ao entusiasmo pela profissão, começou-se mal. Haverá, sim, outras motivações: dinheiro, reputação ou qualquer coisa. É fácil diferenciar esses colegas como bem adverte Marañón:
“Sempre tive facilidade para reconhecer, entre a multidão dos estudantes, os distraídos, que não são poucos em cada turma; percebe-se neles a impaciência inequívoca com a qual passam diante do cadáver ou junto da cama do enfermo. Falta-lhes aquele deleite crescente, moroso até, que dá o contato com a natureza e que se encontra na verdadeira vocação. É inútil para eles o bom mestre, o abundante material, o curriculum apurado, já que apenas aspiram a passar como cometas pela etapa acadêmica para tomar posse de um título que trocarão logo depois – isso é o que eles imaginam – pelo triunfo social que, naturalmente, nunca chegará (4).”
As palavras de Marañón nos levam a outra reflexão: Seria a falta de entusiasmo – que afinal é carência de verdadeira vocação – o que leva o estudante de Medicina a tornar-se um médico desumanizado?

Reputação

No início da faculdade, o estudante de Medicina pouco se preocupa com sua reputação. Não fica incomodado de não ser conhecido por todos ou de não ser reconhecido como médico pelos pacientes. Cabe uma pergunta: por que, com o passar dos anos, o estudante de Medicina passa a se importar tanto com seu currículo, com sua imagem, com exibir seus feitos acadêmicos e científicos e vangloriar-se com um ou outro diagnóstico, comentário ou ponderação? Por que passam a importar-se menos com sua relação com os outros e mais com certificados? Marañón comenta sobre a reputação do médico:

“O pecaminoso é a verdade que muitos médicos dizem por vaidade profissional, pelo gosto de acertar, à custa da dor do seu enfermo. Eu cumpri muitas vezes com a minha obrigação, ocultando a verdade, mesmo sabendo que pouco depois apareceria como erro o meu juízo, em detrimento disso que chamam “reputação”. Não tem a têmpera de médico aquele que não sabe, desde o início da sua atuação profissional, que talvez uma das suas missões principais seja a de saber sacrificar a reputação perante a dor do próximo, todas as vezes que for preciso (5).”

Mais uma vez, as palavras de Marañón demonstram sua atemporalidade, ao explicitar um problema tão comum nas faculdades: a preocupação excessiva com o curriculum vitae. Isso leva o estudante a preocupar-se menos com o cuidado dos seus pacientes e focar-se numa simples pesquisa científica, desprovida de significado, apenas para aumentar o número de páginas de seu currículo. Isso será abordado mais adiante.

Uma “proporção” de valores
O estudante de Medicina também apresenta outro aspecto contrastante com o médico que é digno de discussão, uma proporção de difícil definição. O estudante é menos médico, mas não teria uma proporção maior de vários outros valores? Não teria o estudante mais caracteres humanos? É difícil compreender, mas o estudante de Medicina, para dar um exemplo, é proporcionalmente mais conhecedor de história, música, literatura e muitos outros conhecimentos ausentes da grade das faculdades. É como se ainda tivesse tempo de ocupar-se com outras coisas que não Medicina. Algo que com o tempo parece perder-se. A este respeito dizia Marañón:

“O médico que somente sabe Medicina nem sequer Medicina sabe. […] Existe uma fronteira tênue entre os doutores que, por saberem somente medicina, ignoram esta ciência e aqueles que, pretendendo saber tantas outras coisas, ignoram a medicina elementar e eficaz, a que serve para aliviar fadigas e dores. O enciclopedismo pedante é obstáculo para o verdadeiro saber. Deve-se fugir daquele que exibe os seus títulos acadêmicos como garantia de suficiência e se dedica a cultivar suas aptidões expositivas para surpreender os ingênuos com o seu enciclopedismo faustoso. E deve-se confiar naquele que dedica à investigação o tempo necessário e, depois, dedica o seu descanso a outras inquietudes que mantêm viva a tensão do espírito e aprimoram a eficácia do instrumento profissional (6).”

Esses dizeres também corroboram a sua crítica em busca pela reputação, pelos títulos e pelo reconhecimento. Levam a considerar o cientificismo exacerbado, representado muitas vezes nas faculdades de Medicina pela mínima quantidade – ou total ausência – de aulas de ética, filosofia e humanização do cuidar.

O médico atual

As maiores críticas de Marañón para o médico espanhol são recolhidas em seu trabalho “La medicina y nuestro tiempo”. Ele aborda na obra o dogmatismo e o cientificismo, como verdadeiros entraves da atuação médica. Marañón define o dogmatismo como “a presunção dos que querem que sua doutrina ou suas afirmações sejam tidas como verdade irrefutável”.

Ele defendia a medicina antidogmática, pontuando com clareza a fugacidade das “verdades” na medicina e mostrava também a humildade como característica necessária para o médico, assim como a contrastante oposição ao dogmatismo:
“Sempre disse àqueles que trabalham ao meu lado que nunca devem esquecer que cada coisa que nós médicos sabemos, devemos procurar saber com a maior exatidão possível, mas sem perder de vista o seu valor provisório. O vazio que surge entre a imperfeição da verdade que possuímos e a verdade que almejamos conseguir deve ser preenchido com entusiasmo, boa fé e, acima de tudo, com doses abundantes de modéstia […] O médico dogmático vive escravo da sua reputação, ignorando que esta serve, não para que a sua família se envaideça, mas para arriscá-la sempre que for preciso, para manter alto o moral dos pacientes. O moral alto é quase sempre o melhor remédio e, às vezes, o único que podemos receitar7 .”
Outro alvo de críticas de Marañón, o cientificismo exacerbado, permanece hoje como problema evidente. Cada vez mais, como já mencionado, os estudantes e médicos acabam por experimentar por diletantismo, sem ter em vista algo de benéfico a contribuir com o meio científico ou no benefício do paciente. Marañon dizia:

“Aquelas numerosas e inúteis obras do experimentar por experimentar, ou para chegar ao título de professor, têm muito mais de esporte do que de ciência verdadeira e, em sua maioria, são infecundas, pois estão desconectadas da trajetória do grande pensamento científico (8).”

Escreveu ainda sobre a postura do médico diante dos avanços da ciência:
“O médico, cuja humanidade deve estar sempre alerta dentro do espírito científico, tem de contar, primeiramente, com a dor individual; e mesmo que cheio de entusiasmo pela ciência, deve estar disposto a adotar a paradoxal postura de defender o indivíduo, cuja saúde lhe é confiada, contra o próprio progresso científico (9) .”

Não cabe interpretar esses pensamentos do médico espanhol como oposição à ciência e ao progresso. Marañón também aborda as dificuldades de manter-se na carreira acadêmica, o que dificulta o trabalho dos professores responsáveis pelas pesquisas científicas relevantes:
“Aqui e na Europa em geral não se realizam experimentos […], sobretudo pelo modestíssimo saldo que recebem os professores, o qual os obriga a repartir seu tempo em ocupações díspares, se não querem morrer de inanição10 .”

Ainda mais atual é a discussão sobre a transformação da Medicina, de profissão humana latu sensu em carreira científica – na verdade pseudocientífica –, com a perda de seu estilo sacerdotal, artístico e enigmático. Dizia Marañón:
“O pecado dos médicos, nos últimos anos, foi abdicar de tudo quanto nossa missão tinha de entranhável, de generosa – de sacerdotal, para usar um lugar-comum –, e tentar convertê-la numa profissão científica, quer dizer, exata como a do engenheiro ou a do arquiteto. […] No fim, tudo se voltará contra o próprio médico, pois, mesmo que não o queira, a sua ciência será embrionária, cheia de lacunas e de aspectos pouco exatos. Estas falhas somente podem ser preenchidas pelo amor. Seu prestígio exclusivamente científico estará, inevitavelmente, sujeito a quebras graves e contínuas. E é por isso que o médico se verá privado do respeito cordial dos seus pacientes e da própria sociedade, que não aceitará seu erro com generosidade mas espreitará suas falhas, perseguindo-o onde quer que esteja11 .” [..] Se esquecermos o conceito sacerdotal do médico, a supremacia da vocação para exercer nossa arte, então não teremos direito a queixar-nos quando nos exigirem responsabilidades por algum erro no exercício profissional que, na realidade, somente se podem resolver no ambiente do mútuo amor em que se desenvolvia a medicina de outrora. […] “Porque esquecemos que a sabedoria não é apenas conhecer as coisas, mas amá-las (12).”

Alinhavando reflexões e conclusões

A leitura e discussão dos trabalhos de Gregorio Marañon contribuem sensivelmente para esse processo de reflexão, especialmente ao pontuar a importância da prática crítica e reflexiva, do entusiasmo e do conceito de vocação. A despeito do lapso temporal, suas palavras são inegavelmente atuais. Faremos a seguir algumas anotações, nos moldes de um simples “fatorial” desse produto enorme que é a obra desse insigne médico humanista.

O papel do entusiasmo

Dentre as atitudes do médico, Marañón confere particular importância ao entusiasmo e à dedicação, que são garantia de qualidade da sua ação. Em hipótese alguma se pode interpretar esta consideração como um desprezo ao progresso científico ou à tarefa de investigação. O próprio Marañón era um pesquisador notável, com particular dedicação ao campo da endocrinologia. O significado de dedicação e entusiasmo é o que hoje poderíamos traduzir como compromisso e empatia com a pessoa do enfermo: o médico sabe os limites da ciência que possui e esses limites que sempre existirão – diante do sofrimento e da morte – têm de ser preenchidos com competência profissional. Os recursos dessa competência se encontram no campo humanístico.

Estamos desumanizando-nos durante a faculdade?

Para Marañón, a formação humanística é tarefa e compromisso essencial no médico, fonte de conhecimentos e recurso instrumental de sua profissão.
“O humanismo, ambicioso e ao mesmo tempo humilde, serve para amadurecer, para firmar e fazer prudente e eficaz o instrumento da profissão13 .”

O humanismo que Marañón propôs e viveu é um humanismo que visa – como tudo no médico – o benefício do paciente. É tão prejudicial a falta de cultura como uma cultura que não reverte em serviço alheio.

As reflexões humanistas de Marañón têm sua tradução imediata nas atitudes do médico que vai sendo forjado de acordo com este modelo. O protagonismo do paciente, tema constante em Marañón, implica em crítica contumaz de uma postura médica não comprometida, sem consciência de sua missão, preocupada apenas com a sustentação da imagem profissional.

A crítica que todo médico deve ter
Do compromisso com o paciente decorre a necessidade de saber oferecer ao paciente o melhor possível, sem deixar-se guiar pelo progresso indiscriminado. Saber “defender” o paciente do uso indiscriminado da tecnologia é também aspecto que Marañón sublinha. E discute sobre a crítica:
“Seria lamentável se alguém concluísse que desrespeito a Medicina, e que sou pessimista sobre o seu presente ou seu futuro. Respeito a Medicina, porque a amo; e o amor é a fonte suprema do culto, no humano e no divino. Mas o amor é também, e deve ser, crítica. Somente quando esmiuçamos o objeto amado, retirando o que tem de deletério, conseguimos encontrar, lá no fundo, o que tem de imperecedouro. Aquele que fala valentemente dos defeitos da sua pátria é o melhor patriota, e quem vai polindo com censuras justas sua profissão, esse é quem a serve com toda plenitude (14).”

O médico “latu sensu”
Marañón reconhece o recurso humanístico como elemento permanente no exercício da Medicina. Neste sentido, adverte que o processo de formação universitária deve ensinar a praticar o que, em épocas outras – os médicos antigos que ele denomina médicos de família – se fazia de modo natural. Propõe, assim, um verdadeiro resgate das origens da profissão médica, adaptada ao progresso moderno. Se antigamente os médicos, para exercitar sua profissão, precisavam do componente humano como elemento indispensável – até o ponto em que carecer dele impedia a prática da medicina e o sucesso profissional –, hoje o progresso não pode embaçar nem fazer esquecer o que é o núcleo essencial da arte médica: a compreensão humana do paciente, do ser humano que sofre.

“Devemos lutar com empenho heroico para conservar, enquanto for possível, algo deste espírito (da medicina enigmática, artística, humana), adaptando-nos às necessidades dos nossos dias. Assim, faremos tanto pelo prestígio da Medicina como queimando as pestanas com os livros ou na ocular do microscópio (15).”

A competência que buscamos na formação de futuros médicos implica Humanismo. Sem Humanismo não há competência possível. Formar médicos humanistas vai muito além de dar um verniz humanitário ao futuro médico. É instalar um processo de reflexão que lhe permita, de modo contínuo, reavaliar sua opção vocacional, sua resposta como pessoa e como profissional. Um elemento essencial que se insere na alma do profissional e se faz vida da sua vida (16).

A formação cultural e universal surge como uma necessidade. É natural que, sendo o próprio ser humano a matéria-prima da profissão médica, tudo aquilo que contribua a entendê-lo melhor se converte em instrumento de trabalho. Daí que o médico não deva contentar-se com saber só Medicina; deve procurar um conhecimento amplo, universal, tonalidade universitária na própria vida. A introdução desses conceitos na formação acadêmica tem grande valor e se impõe diante da realidade atual.

Reflexões finais

O papel da atemporalidade de Marañón nas faculdades de Medicina
“Conhecer” Gregorio Marañón foi algo de valor inestimável. Tomar ciência dos trabalhos de um homem e que foi médico latu sensu tem algo de fantástico. Marañón foi um grande cientista e, apesar de sua reputação, de seus feitos, manteve-se como homem humilde, crítico até consigo mesmo. Demonstrou tão claramente as perturbações da prática médica na Europa, tão extrapoláveis e tão atemporais, que parece ser um médico do século XXI. Sua referência ao humanismo, a despeito de ser exímio cientista, é motivadora e pontua de forma inigualável que a ciência pura só contém parte das respostas. A lacuna que deve ser preenchida – em suas palavras – com amor e entusiasmo. Mostra também quão arte é a Medicina e quão pouco dessa arte aprendemos na faculdade.

Marañón leva a refletir: o paciente prefere o médico que está lá para ouvi-lo e tratar a sua dor ao médico cientificista, dogmático, para o qual se torna dado estatístico. É tão óbvio, mas ainda assim digno de nota, que são pouquíssimos, senão inexistentes, os pacientes que procuram um médico apenas por seu currículo. Talvez nosso grande erro seja querer que o nosso currículo seja reconhecido por colegas e professores, quando, na verdade, o alvo do nosso curriculum vitae, em seu sentido mais amplo, deva ser nosso paciente. Por que nos preparamos para o reconhecimento dos colegas e não para empatia com as pessoas que vamos tratar? O cientificismo nos influencia a cada dia, e cada vez mais, nossa reputação vale mais do que o humanismo. Marañón nos leva a pensar criticamente a esse respeito e a manter o entusiasmo que nos motiva desde o início da faculdade. Além disso, conhecer a história de um homem formidável leva a refletir, uma e outra vez, e essas reflexões tornaram possível a realização deste pequeno texto. Ainda que simples, esperamos que sirva como um estímulo para o estudo e o conhecimento de uma figura histórica da Medicina e da humanidade.
Para nós, o estudo dos trabalhos de Gregorio Marañón representa contribuição de valor inestimável para as reflexões necessárias ao estudante de Medicina em sua formação. Vai aqui o nosso reconhecimento – palavras de um estudante entusiasmado – ao médico humanista espanhol.

Agradecimentos

Ao professor Antonio Lopes Vega, diretor da Fundação Ortega-Marañon (www.ortegaygasset.edu), em Madrid, que nos apresentou Gregorio Marañón na cidade de Toledo de maneira envolvente, única, tendo certamente motivado a realização deste trabalho.

 

Bibliografia

1. Vega, A. L. Gregorio Marañón y el nacimiento de la endocrinología en España: ejemplo ilustrativo del impulso científico del primer tercio del siglo XX español. Circunstancia. Año VII – Nº 19 – Mayo 2009.
2. Marañón G. Vocación y ética. Espasa Calpe Buenos Aires,1946.
3. Marañón G. Los deberes olvidados. En Obras Completas, vol. III Espasa Calpe Madrid, 1966.
4. Marañón G. Vocación y ética. Espasa Calpe Buenos Aires,1946.
5. Marañón G. Ibidem.
6. Marañón G. La medicina y nuestro tiempo Espasa Calpe. Madrid,1954.
7. Marañón G. Ibidem.
8. Marañón G. Ibidem.
9. Marañón G. Ibidem.
10. Marañón G. Ibidem.
11. Marañón G. Ibidem.
12 . Marañón G. Mi homenaje a Francisco Huertas. En Obras Completas, vol. III Espasa Calpe Madrid, 1966.
13. Marañón G. La medicina y nuestro tiempo Espasa Calpe. Madrid,1954.
14. Marañón G. Ibidem.
15. Marañón G. Vocación y ética. Espasa Calpe Buenos Aires,1946.
16. Levites MR, Blasco PG. Competencia y Humanismo: La Medicina Familiar en Busca de la Excelencia. Archivos de Medicina Familiar y General. 2009; 6:2-9.

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