As Neves do Kilimandjaro: Humanismo em Tempos de Crise

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(Les Neiges du Kilimandjaro). 2011. Diretor: Robert Guédiguian.   Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilyne Canto, 104 minutos.  

     Foi um amigo que mora no Canadá quem, há meses, recomendou-me este filme. “Dá uma olhada. Eu o intitularia ‘humanismo em tempo de crise’. Acho que gostarás”. Segui o conselho, vi o filme. Gostei. Busquei o tal humanismo na crise. Penso que até o encontrei. Mas engavetei os possíveis comentários; as pendências eram muitas no último trimestre do ano. Depois vejo isso, pensei.

     Entre as pendências, figuravam um par de conferências num congresso que aconteceu numa cidade onde moram outros amigos. Um dos dias passei por lá para jantar. No final me anunciaram: vamos ver um filme, queres ficar? Naturalmente, o filme era este mesmo. Estas Neves me perseguem – pensei logo de cara. Tracei o plano: assistir a largada e depois pegar um taxi de volta para o meu hotel. Mas não consegui sair. O humanismo em tempo de crise martelava minha memória. Fiquei até o final e voltei de carona. Os comentários –no fundo da imaginária gaveta- revolveram-se, mas as pendências ainda pesavam. Tranquei a gaveta com chave. Mais para frente, agora não tenho tempo.

     O golpe de misericórdia foi há duas semanas, quando topei com outro amigo que não via há tempo. “Estranhou-me não encontrar nenhum comentário teu sobre ‘As Neves do Kilimandjaro. Você não viu o filme ainda?”. As pendências continuam em alta, mas a vida é assim mesmo. Não se pode esperar ter tempo para atender os outros, as solicitudes que nos dirigem. Não é que a vida de ninguém dependa de estas linhas, simples reflexões sobre um filme, mas vale a lição simbólica. Quem espera as condições ótimas de temperatura e pressão – leia-se tempo na agenda, esquema bem previsto – para se ocupar do que o próximo precisa, provavelmente incorrerá em omissões contínuas, isso sim, todas muito bem justificadas.

     Esse deve ser o tal humanismo em momentos de crise –crise de agenda, de tempo sempre escasso, naturalmente de dinheiro- que se caracteriza pela flexibilidade, pela improvisação elástica que, como o coração de uma mãe, sabe atender com carinho todas as demandas. Sem dar-se importância, sem fazer barulho. Certa vez me fizeram notar que a característica da mãe de “Os Incríveis” era justamente a elasticidade, porque chega a tudo. A gênese deste comentário encerra em si o mais importante. Lição aprendida; nem por isso fácil de colocar em prática de modo habitual.

     O cinema francês destes últimos tempos tem nos oferecido filmes simples, de temática bem centrada. Singeleza de forma –e de orçamento- e filosofia como guarnição, servida em diálogos que enriquecem. Abordando um problema de cada vez, um agradável fatorial da complexidade que a vida apresenta, para que ninguém desanime. Vamos aos poucos, uma coisa hoje, outra amanhã. Sem golpes espetaculares, nem efeitos especiais, nem surpresas, ou sustos, ou suspense. Tudo muito claro, apoiado em atores de imensa categoria, pois atuam como na vida mesma. Teatro filmado, a vida filmada.

     O humanismo na crise não é contundente nem heroico. É arroz com feijão, fazer o que é possível – que, por sinal, quase ninguém faz, porque na crise, colocar mais água no feijão implica no risco de ficar com fome. É cuidar dos outros, são os detalhes que se embrulham num pudor que nos impede comentar o que fazemos de bom. Com simplicidade, sem dar-se importância.

     Mas essa naturalidade em fazer o bem – grande recado do filme-, não é atitude que se conquiste sem esforço. O virtuoso toca o violino com aparente facilidade porque investiu muitas horas ensaiando. As virtudes da convivência são hábitos esculpidos com teimosa repetição de atos, numa ginástica permanente por vencer a gravidade –tremenda, constante, densa- do próprio ego que atrai com toneladas de força.

     E aqui está o grande segredo dessa ginástica do caráter: somente se pode progredir, ganhar forma física e, consequentemente, fazer a diferença na vida dos outros quando se enfrentam as próprias limitações e defeitos. Aqueles que todos tão bem conhecem, embora nós sejamos os últimos a reconhecê-los. Não se pode espalhar o bem, se não se admitem as imperfeições que levamos dentro, primeiro passo para enfrenta-las. Ninguém dá o que não tem. Tema difícil este, porque a consciência de culpa –responsabilidade consciente das más ações- é tema banido na nossa sociedade pós-moderna.

     Enquanto desengaveta as reflexões que o filme me tinha provocado, caiu em minhas mãos um livro que recolhe umas conferências que o Professor Ratzinger pronunciou em 1981, publicadas posteriormente com o título “Criação e Pecado”. Na última dessas quatro conferências Ratzinger explica de modo claro o tema que nos ocupa. A culpa é um tema silenciado no nosso tempo; a Sociologia, o Direito, a Psicologia, e mesmo a Religião tentam se arrumar sem inclui-la nas variantes da equação antropológica e, naturalmente, se perde a verdadeira perspectiva. De fato, é difícil ouvir alguém dizer que é responsável ou tem culpa de alguma coisa. Basta fazer a experiência e contar, com os dedos de uma mão, as vezes que se pode ouvir semelhante confissão. Provavelmente sobrarão dedos se nos dedicamos a essa pesquisa durante um mês, por exemplo.

     Mesmo encostada, a noção de culpa e maldade faz sua aparição diariamente. Assim lemos na conferência em questão: “Mesmo esquecida, continua existindo e fica suficientemente demonstrado com a agressividade disposta a saltar a qualquer momento, como experimentamos na nossa sociedade; e essa disposição para insultar o outro, considerando-o culpável da nossa própria desgraça; e estigmatizamos a sociedade tentando mudar o mundo através da violência”. Uma descrição que encaixa como uma luva no argumento do filme. A culpa existe, e sempre é dos outros. Trata-se de encontrar o culpado que, certamente, nunca serei eu.

     Os conceitos de bem e mal –seguimos o raciocínio do Professor Ratzinger- são substituídos pelas noções de comportamento desviado e normal, o que não garante que amanhã o desvio não seja incluído na normalidade, pois a moral passa a ser assunto quantitativo, estatístico, variável. O homem se faz norma para ele mesmo e abomina de qualquer medida objetiva externa, porque a enxerga como uma ameaça para a liberdade. Entendem-se bem as palavras de Simone Weil: “O conhecimento do bem somente se tem enquanto se pratica. Quem faz o mal, não o reconhece, porque o mal foge da luz”. O bem se reconhece somente quando se faz. Não existe um conhecimento teórico, isento. Para conhecer o bem é preciso envolver-se, comprometer-se, exercitar-se nele.

     Por isso, apenas quem enfrenta seus defeitos –que é assumir responsabilidade e intimar sem medo com as culpas que cada um carrega- é capaz de militar no partido dos que espalham o bem. É a própria limitação a que leva a entender a necessidade de um motivo superior que nos impulsione a promover o bem, a doar-nos aos demais. Precisamos sentir-nos compreendidos, perdoados, para poder compreender e perdoar. Sem transcendência, as tentativas de fazer o bem acabam se extinguindo em espasmos filantrópicos que nunca perduram. Afinal, por que vou me embarcar nessa empreitada se ninguém me recompensa? E eu, como é que fico? Quem se preocupa comigo?

     E as Neves de Kilimandjaro, onde estão? Foi a pergunta que me fiz quando vi o filme. O argumento arranca de um romance de Vitor Hugo, que também não tem neves nem montanhas africanas. Estes elementos são por conta de uma canção que fez sucesso nos anos 60 e que vale a pena escutar enquanto refletimos no recado deste pequeno-grande filme que nos fala de solidariedade comprometida.

     Fala do manto branco que as neves tenderão para podermos para dormir em paz. Com serenidade, com a consciência tranquila. Fazer o bem, semear o humanismo em tempo de crises, não é atividade de voluntariado, mas algo que toma conta da própria vida. Um compromisso inserido na alma que busca, mediante a ginástica por ser melhor – ginástica, askesis em grego- fazer melhor o mundo, e a diferença na vida dos outros.

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