A Filha do Pai: romantismo e generosidade, num coração sem blindagens

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La fille du puisatier  (2011) Diretor: Daniel Auteuil. Atores :Daniel AuteuilAstrid Bergès-FrisbeyNicolas Duvauchellen, Kad Merad, Sabine Azéma, Jean-Pierre Darroussin, Emilie Cazenave. 107 min.

     Um filme encantador. O único senão é o título, ou melhor, a lamentável tradução do original. A filha do pai é, na verdade, filha de um poceiro, termo que consta no dicionário da língua portuguesa, onde se lê: cavador de poços ou poças. Esse é o ofício de Pascal Amoretti, um viúvo que sustenta a prole de seis filhas, com dignidade e competência. Não sei qual seja o apelo de marketing, se é que tem algum, da tradução desbotada do título do filme, que se não o destrói, pelo menos cria indiferença. Todas as filhas tem um pai, mesmo em tempos de produção independente. Não saber quem é o pai, ou a que se dedica, pode acarretar crises de identidade futura; no caso que nos ocupa, produz desconcerto no espectador que não faz a menor ideia do que vai lhe ser servido nos fotogramas.

     A Filha do Poceiro é uma historia singela, situada no belíssimo cenário da Provence francesa, às portas da segunda guerra mundial. Uma região querida e narrada pelo autor da história, Marcel Pagnol, da academia francesa que, em 1940, filmou a primeira versão do poceiro Amoretti e dos amores das suas filhas. A atual, dirigida e interpretada por Daniel Auteuil, grande expoente do cinema francês, respeita a história de Pagnol, a embrulha em cores vivas, com muito sol, muita luz, e o verde dos campos contrastando com o barro que impregna a roupa do poceiro no seu afazer quotidiano. O filme é uma delicada aquarela, sobre a qual se destaca nitidamente o perfil de cada personagem. Tem o aroma dos Souvenirs d’enfance de Pagnol, aqueles que aparecem na Gloria do meu Pai, e no Castelo da minha mãe. Pagnol também perdeu a mãe na infância e, já escritor consagrado, deixou claro o interesse que tinha pelos caracteres das personagens: “se eu tivesse sido pintor, somente teria pintado retratos”.

     Pascal enfrenta o desafio de educar seis filhas –todas lindas- sem a presença da mãe. Faz-se querer, é respeitado, mas sente falta da colaboração feminina e supre como pode apelando para as filhas mais velhas. Um trabalhador que coloca roupa de domingo, terno e gravata, quando tem de frequentar a modesta sociedade da aldeia em que todos se conhecem. Patrícia, a filha primogênita, é o seu apoio; se converterá na protagonista da historia por motivos que se adivinham nos primeiros compassos da fita. Felipe, o ajudante de Pascal e aprendiz de poceiro, é outra variante da equação que, naturalmente, inclui o galã Jacques Mazel e a sua família, gente de boa posição, dona do empório da cidade. Tudo muito simples, muito previsível, uma história “como as de antigamente”, onde circulam as virtudes –honra sinceridade, doação generosa- e as misérias humanas, também em espectro variado.

     Vi o filme por minha conta –penso que para treinar o ouvido no francês, um propósito sempre formulado, e poucas vezes cumprido- e gostei demais. Um bom sabor de boca, delicioso ao paladar. Uma canção –a preferida da mamãe, diz Amanda, a segunda filha, a Patrícia- faz-se ouvir em alguns momentos chaves. Conhecia a melodia, mas não acertava com quem fosse o cantor.

     Voltei a assistir de novo, agora em sessão conjunta com a minha equipe de trabalho, num agradável sarau mensal que denominamos “grandes momentos do cinema”. O decidir quais são os tais momentos do cinema que merecem esse espaço é tarefa que me foi confiada, e buscando agradar a todos, costumo selecionar filmes que já tenho visto, pensado, e refletido sobre eles. Nesta ocasião, a escolha guiou-se pelo simples gosto e por interesse: agradou-me, não tinha parado para pensar o porquê gostei, precisava de uma reflexão aconchegada das emoções de outros. Há filmes que somente se captam quando projetados em cenários propícios; a ressonância afetiva da plateia amiga modula o impacto do filme sobre nós mesmos. Talvez essa seja a razão de por que os chamados cine-fórum são educativos. Mais do que no que se comenta, o aprendizado está no sentir em conjunto, perspectiva nem sempre fácil de verter em palavras, as razões do coração –no dizer de Pascal- que a razão nem sempre entende.

     Nova sessão, pois, para saborear um filme que já tinha visto. Um colega, amante da música, mostrou-me um aplicativo do celular, que identificava músicas e intérpretes. Desta vez, nas cenas em que se escutava a sugestiva melodia, fiz rodar o aplicativo, e lá apareceu: “Core n’grato, cantado por Enrico Caruso”. Muito bem escolhida, pois fala do amor, daquele que eu te doei, e não tive de volta, da ingratidão que decanta em palavras amargas e ignora a minha dor. Um coração ingrato, que falha na sintonia do amor.

     O sarau cinematográfico foi um grande sucesso. Ao levantar a sessão, pareceu-me ver junto com algum lenço que se guardava discretamente, certa movimentação em busca de cópias do filme. Não vejo nisto motivo de escândalo: postos a conviver com o tráfico, melhor do que drogas ou armas, são os valores e historias de vida que impulsam o ser humano a ser melhor. Pode ser esse o caminho, e não outro, para combater o mal, e a miséria. O romantismo de sempre, aquele que nunca morre, como dizia Fellini. Degradamo-nos e caímos nas garras do mal quando perdemos a capacidade de amar, de sonhar enquanto amamos. Lembro, enquanto escrevo, daquela toada mexicana, inundada de tequila e de lamúrias, que falava de outro coração ingrato, e profetizava ao protagonista da infidelidade que lembraria “do amor bonito que tinhas comigo, e de como sentirás minha falta no abraço de outro, e não conseguiras beber tuas próprias lágrimas”. Mas aqui tudo é mais comedido, mais francês. Isso sim, com o toque de Caruso acusando o desamor de Catarina.

     Pascal é a integridade, enérgica e contundente, uma severidade que raia a incompreensão. Um contraponto necessário para a frivolidade de Jacques, ou para a irresponsabilidade da sua família. Patrícia está no meio do fogo cruzado, Amanda é um oásis de serenidade e de boa vontade, e Felipe é o campeão da generosidade, do amor, do desprendimento. Uma personagem que da vida à verdadeira dimensão do amor que se traduz em completo esquecimento próprio.

     Atores de imensa categoria dão total credibilidade às personagens. Virtudes e defeitos, grandezas e misérias, surgem em carácter puro, quase de fábula. Agravos, vinganças e perdão, compõem-se como atitudes que destroçam o constroem este difícil convívio que os humanos, animais sócias, temos de enfrentar. E, como telão de fundo para as reflexões que aqui anoto, vem a calhar alguns pensamentos que chegaram ao meu e-mail nestes dias, que estreamos um novo Papa: Francisco, o nome do Santo de Assis, o reformador do desprendimento e do amor.

     O documento em questão se chamava “Assim pensa o Papa Francisco” e recolhia alguns pronunciamentos do até agora Cardeal Bergoglio, no seu exercício de Arcebispo de Buenos Aires. Advertia sobre essa doença epidémica do individualismo, que produz vidas inseguras e frágeis que se defendem com uma blindagem que as torna impermeáveis às riquezas da vida e do amor dos outros. E ilustrava o pensamento com a figura das portas que se fecham aos pedidos alheios. “A porta fechada é um verdadeiro símbolo nos dias de hoje. Mais do que um dado sociológico, é uma realidade existencial que define um estilo de vida, um modo de encarar a realidade, os outros, o futuro. A porta fechada da minha casa, que é o lugar da minha intimidade, dos meus sonhos, esperanças e sofrimentos, e das minhas alegrias; essa porta está fechada para os outros. Não apenas a minha casa material, mas o meu coração”.

     Em verdade, não é uma metáfora filosófica que interpreta as tendências da sociedade. É a realidade nua e crua, porque o sistema social é cada um de nós. É o fato de fugir do convívio alheio e torcer para não encontrar com o vizinho no elevador porque vai ver que chega com problemas e me complica a vida, logo agora que estou cansado e a fim de relaxar. Não é apenas o condomínio de segurança máxima –em alguns somente falta o fosso de jacarés- mas a própria intimidade, a blindagem do meu mundo, que não tem tempo para dedicar aos outros. Lembrei-me do comentário de um amigo quando afirmava em certa ocasião que hoje, esmola boa, é dar tempo próprio, que é sempre a vista, sem cartão de crédito nem parcelamentos. “Como é desprezível–continuo citando o Cardeal Jorge Bergoglio- quem guarda tesouros para si mesmo, num coração egoísta, que somente pensa em engrossar um capital que não vai levar-se ao morrer. Ninguém leva nunca nada. Eu nunca vi um caminhão de mudanças acompanhando um carro de funerária. Minha avó dizia que mortalha não tem bolsos”.

     A sabedoria da avó do Papa encaixa perfeitamente com a candura dos personagens do filme. Alguns, como Felipe, transpiram uma bondade contagiosa. Outros sabem retificar seus erros, com dignidade. E todos vão descobrindo a aventura do perdão, da compreensão; a alegria de abrir o coração, livre de blindagens, ao serviço dos seus semelhantes. Um filme para assistir em família, desfrutar, aprender, e refletir. Certamente, no final, a canção de Caruso, Core n’grato, pedirá um bis.

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