G.K. Chesterton: “Ortodoxia”
G.K. Chesterton: “Ortodoxia”. Ed Mundo Cristão. São Paulo. 2007. 263 pgs.
Desta vez foi sugestão de um amigo incluir um capítulo de Ortodoxia na nossa reunião mensal onde tratamos temas de atualidade. Mais do que uma reunião é uma conversa com troca de impressões: aquilo que os intelectuais denominavam tertúlia, logicamente com café incluído. E como ler um capítulo implica situá-lo no contexto, debrucei-me novamente sobre o clássico de Chesterton.
Longe de mim fazer aqui um resumo desta obra que é a trajetória biográfica e de conversão do escritor inglês. Se não se deve isolar um capítulo, menos ainda pode se apresentar uma versão reduzida deste importante escrito. Os conversos ingleses são assim: quando entendem que devem justificar –para o mundo e, principalmente, para eles mesmos- sua mudança de rumo ao encontro com a fé, escrevem uma obra seminal: basta lembrar a Apologia pro Vita sua, do Cardeal Newman. E, em outro sentido, o De Profundis, de Oscar Wilde. Por tanto, nada de resumos; apenas um modesto comentário.
O tom irônico e sincero de Ortodoxia é introduzido no prefácio desta edição. Lá se comenta que certa vez o jornal London Times pediu a alguns escritores que respondessem à pergunta: “O que é há de errado com o mundo?” Chesterton enviou a resposta mais sucinta. “Prezados Senhores: Eu. Atenciosamente. G.K. Chesterton. Este é o perfil do escritor inglês, e o seu propósito: vamos corrigir o que está errado comigo, sem gastar energias em criticar os outros.
As críticas –que existem- são apenas decorrências, um efeito colateral, que se dirige aos que como o próprio escritor se obstinavam em ideias preconcebidas, sem estar abertos à mudança. “Existe algo mais limpo e mais arejado fora do sufoco de um único argumento….Por exemplo, o homem que suspeita que conspiram contra ele, se lhe poderia dizer: Admito que sua explicação esclarece muitos fatos; mas quantos outros ficam de fora! Não há nada no mundo, outras histórias além da sua? Todos os homens estão ocupados com a sua ocupação?”. Atitude esta que vem representada por aquela frase –parece-me que de um filósofo americano: ‘quando o que você tem nas mãos é um martelo, todo problema apresenta-se como um prego’. Aqui encaixa bem a conhecida –e densa- afirmação de Chesterton do que venha a ser a loucura. “O louco –que é aquele que perdeu tudo menos a razão- está na limpa e bem iluminada prisão de uma ideia só: é afiado num só doloroso ponto. Está desprovido da sadia hesitação e sadia complexidade”.
O gosto pelas coisas simples e corriqueiras perpassa toda a obra. Tomar o mundo como ele é, e viver com espírito de aventura. “Quase todas as pessoas concordam que precisamos dessa vida de romance prático; a combinação de alguma coisa que é estranha com alguma coisa que é segura. Precisamos ver o mundo de tal modo que nele se combine uma ideia de deslumbramento com uma ideia de acolhimento. Precisamos nos sentir felizes nessa terra deslumbrante sem nunca nos sentir meramente confortáveis”. É nessa alegria de viver onde também Deus atua; somos os homens, os que complicamos as coisas, afastamo-nos de Deus, perdemos a alegria. “Deus é forte o suficiente para exultar na monotonia. É possível que Deus todas as manhãs diga ao sol: ‘Vamos de novo’; e todas as noites à lua: ‘Vamos de novo’. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de cria-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; nós pecamos e ficamos velhos, mas Ele é mais jovem do que nós. A repetição na natureza pode não ser mera recorrência; pode ser um bis teatral”.
A monotonia da rotina consiste não em fazer as coisas de sempre, mas fazê-las como sempre: e Deus consegue ser original naquilo que os homens, curtos de vista, consideram monótono. A ansiedade pela mudança é próprio de quem não sabe desfrutar das rotinas diárias, com a mente aberta, saboreando os momentos. Esta postura otimista é marca registrada de Chesterton, e perfila seus comentários irônicos: “Restringir-se a uma única mulher é um preço pequeno diante dos simples fato da visita a uma única mulher. Queixar-me de que eu só poderia casar-me uma vez era como queixar-me de ter nascido uma só vez. Era algo desproporcionado em relação à emoção terrível de que se estava falando. Louco é quem se queixa de não poder entrar no Éden por cinco portas ao mesmo tempo”
A educação realista, que foge de qualquer teoria, focada na natureza humana, é também tema amplamente abordado. “No momento em que se entra no mundo dos fatos, entra-se no mundo dos limites. Pode-se libertar as coisas de leis externas ou acidentais, mas não das leis da sua própria natureza(…) Falamos de animais selvagens; mas o único animal selvagem é o homem. Foi o homem que se evadiu. Todos os outros animais são domésticos e seguem a inflexível respeitabilidade da sua tribo ou espécie. Todos os outros animais são domésticos; apenas o homem é sempre indômito, seja ele um devasso, seja ele um monge”. Está ai delineada a grande aventura da liberdade humana: entende-se porque diante do mesmo estímulo existem respostas heroicas e mesquinhas; o homem não é doméstico (formatado de fábrica, diríamos hoje) mas utiliza a liberdade que lhe permite ser herói, santo, ou perverso. “É fácil ser louco; é fácil ser herege, ou modernista, ou snobe. É fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça”. Educação que começa na infância, onde se dão as cartas e se traça o destino do homem: “Um menino só é enviado à escola quando já é tarde demais para lhe ensinar alguma coisa. A verdadeira educação já está pronta, e graças a Deus ela é quase sempre feita por mulheres”.
Pertence a Ortodoxia o conhecido capitulo Os Paradoxos do Cristianismo, onde o autor comenta como foi reparando que as críticas dirigidas à Igreja originavam-se por motivos contrários, e simultâneos: assim a mansidão e falta de coragem por um lado, e promover as guerras do outro. Mas o que ele descobre é que a Igreja mantém as cores vivas, mesmo sendo antagónicas e opostas: a grandeza e a miséria do homem. Cores brancas e vermelhas como no escudo de S. Jorge, porque tem um ódio sadio pelo rosa…ou pelo cinza. Não é uma simples apologia, mas também uma crítica ao comportamento de alguns cristãos que deformam a verdadeira fé. “Quando um sistema religioso é estilhaçado, não são apenas os vícios que são liberados. Os vícios são, de fato, liberados, e eles circulam e causam dano. Mas as virtudes também são liberadas, circulam mais loucamente e causam um dano mais terrível O mundo moderno está cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque foram isoladas uma da outra e estão circulando sozinhas”. E conclui: “O cristianismo, mesmo quando diluído, é forte o suficiente para reduzir toda a sociedade moderna a trapos. O simples mínimo da Igreja seria um ultimato mortal para o mundo”.
No final fala da alegria, que é a bandeira do cristão. Uma alegria do conjunto que sabe passar por cima detalhes e dificuldades. “Reparei que os pagãos eram infelizes acerca da totalidade dos fatos, e alegres no demais. Os cristãos, viviam em paz com a totalidade dos fatos e estavam em guerra com tudo o demais”. Uma alegria que , afirma, é como uma carta na manga que Deus tem. Um Deus que pisou na terra e não nos ocultou as lágrimas, nem a sua ira. Mas ocultou a tremenda alegria, porque a frenética energia das coisas divinas nos derrubaria sem remédio. Um silêncio, uma timidez de Deus, como o silêncio que se respeita no quarto de um doente: somos pouca coisa para conter toda a alegria de Deus”. Este é o otimismo avassalador de Chesterton, plasmado nesta importante obra. Uma perfeita descrição do seu curso vital, de um caminho que quis construir como sendo uma dissensão, uma heresia, e resultou na Ortodoxia que agora temos nas mãos.
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Pingback: G. K. Chesterton: “ O homem que foi Quinta Feira”. (Um pesadelo). | Pablo González Blasco
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