Ponte dos Espiões: A sedutora criatividade do cumprimento do dever
“Bridge of Spies” (2015) Diretor: Steven Spielberg. Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda. 141 minutos.
Entrou em cartaz sem estardalhaço nenhum. No jornal, não encontrei estrelas qualificando o filme. Surge sem fazer barulho, em low profile, como o advogado protagonista, Jim Donovan, nesta magnífica história contada pelos irmãos Cohen, e magistralmente orquestrada por Spielberg. Bastam esses nomes para dispensar qualquer necessidade de propaganda. Fui atrás do filme e assisti duas vezes, no intervalo de um par de semanas. Senti uma necessidade imperiosa de apreciar, de saborear, a historia, o modo de contá-la e, naturalmente, a interpretação soberba de Tom Hanks.
A dupla Spielberg-Hanks é um arco voltaico de potencia superior. Vale lembrar O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes que mais me marcaram, um verdadeiro sonho de consumo em educação. Lá se mostra como é possível formar a vida de um homem, norteando seus próximos 40 anos, com uma frase –acompanhada do exemplo heroico- pronunciada in artículo mortis: “James, faça por merecer”. Frase esta, que escolta o jovem James Ryan todos os dias da sua vida, reflete sobre ela, lhe faz ajustar seu comportamento ao gabarito que lhe foi sugerido. Impactante. Emociono-me cada vez que a vejo, o que acontece com bastante frequência, por conta de conferências e seminários nos quais estou envolvido profissionalmente.
É fato conhecido a habilidade que Spielberg tem para mergulhar em histórias reais e injetar nelas humanismo. O fato histórico torna-se palatável, próximo, personalizado, como fazem os bons escritores de romances históricos e de biografias. A História, fria e distante, é iluminada com a presença de personagens de carne e osso, que carregam consigo tudo o que acompanha o quotidiano do ser humano: dilemas, medos, sofrimento, heroísmo, entusiasmo, júbilo. As suas produções – A Lista de Schindler, Amistad, por dar exemplos- rodeiam-se de possibilidades humanas, também de arte e poesia, o que lhes faz transpirar ensinamentos. É um humanismo plasmado em celuloide, que educa, ensina, eleva o espectador.
Não sei ainda se Ponte dos Espiões é um filme para comentar, ou para assistir e refletir. O espectro de aprendizado é amplo, variado, e cada um saberá tirar suas consequências. Sublinhar a moral da história – nunca gostei dessa atitude quando me atrevo a comentar um filme- empobreceria o tremendo poder pedagógico da fita. Assim, estas linhas não são mais do que reflexões em voz alta, e por isso, permito-me compartilhar o que veio à minha mente quando desfilavam os créditos finais. Uma frase, um pensamento que li há muito tempo no livro Sulco, de JM Escrivá, e que se tornou presente com enorme envergadura. Diz assim: “Para tirares importância ao trabalho de outro, murmuraste: ‘não fez mais do que o seu dever’. E eu comentei: ‘Parece-te pouco?’ ”.
Cumprir o dever, até o final. Saber qual é exatamente esse dever, abraçar-se a ele, e leva-lo à cabo, com serenidade e com esforço. Sem fugir ao compromisso, sem encontrar desculpas na mediocridade que nos rodeia e, também, sem perder o bom humor nem a criatividade. Bem dizia Gregorio Marañón, que o dever que se nos exige é somente um pretexto para inventarmos outros deveres. O dever não é apenas cumprir tabela, limitar-se a realizar o previsto, mas sabe decolar dessa primeira obrigação para gerar novos desafios, superar-se em criatividade fecunda, que é onde o homem encontra sua verdadeira realização, com espírito inventivo. A criatividade no dever: eis a diferença essencial de atitude em quem tem mentalidade de empregado –ou mesmo de gerente- e quem possui qualidades de empreendedor. Um exemplo atrativo, sempre sedutor, que nos dias de hoje –basta abrir o jornal, se ainda temos ânimo para isso- assume proporções gigantescas, quase um trabalho de Hércules que brilha na escuridão da falsidade reinante.
Um homem íntegro –standing man, diz o espião soviético, traduzindo ao inglês a expressão russa de fonética complexa, algo assim como stoiki mujik. Um mujique -lembrei dos camponeses de Tolstoi- , que nunca fez nada de extraordinário, mas quando agredido e derrubado pelos seus adversários, levantava-se uma vez e outra, até esgotar os inimigos, levando-os a desistir. Um homem persistente. É durante esse relato quando Spielberg aproxima lentamente a câmara do narrador, e produz um crescendo na trilha sonora envolvente. Esse é o humanismo de que falávamos no início; a lente de aumento, como o close da câmara, para destacar as virtudes que nos desafiam, nos conquistam, nos empurram a ser melhores.
É nesse momento, cercado por uma epifania de emoções no ambiente nada poético da sala de interrogatórios na prisão, quando percebemos que mesmo no meio da podridão, ou no fazer de conta que as artimanhas jurídicas envolvem, há pessoas que fazem toda a diferença. E almejamos ser uma delas. A qualquer custo, correndo os riscos, as incompreensões da própria família, passando por cima a falta de compromisso oficial, abraçando o dever que, voluntariamente nos impomos porque nos sabemos chamados a cumpri-lo. “Meu dever fez-me, como Deus ao mundo” –escreve Fernando Pessoa em Mensagem , louvando um dos reis de Portugal. É o dever o que nos constrói, e fugir dele renderá sempre a personalidade inacabada, a imperfeição, o incompleto, o insignificante.
Admiro os diretores como Spielberg, como Clint Eastwood, que não tem vergonha de amar o seu pais. Cavalo de Guerra, Gran Torino, American Sniper, destilam amor ao sonho americano. Criticam o que é censurável, mas defendem e se apoiam na Constituição que lhes dá sustento. Não se trata de moralismo mas sim de respeito. Ter consciência de que o que nos faz cidadãos é justamente o livro das regras –o rule book, diz Donovan para o agente da CIA- que nos permite exercitar a cidadania, com todas as suas consequências. Não apenas algo para inglês ver –e tem muito disso hoje- mas uma base para voos mais altos. Talvez por esse motivo, são diretores independentes, que se divertem fazendo filmes; e imagino que não ligam a mínima para Oscar e festivais, fazem o seu cinema, a modo de playground de diversão própria. E o fazem com entusiasmo, e por isso nos contagiam.
Embora sou suspeito –já me defini como um Spielberg-boy alguma vez- vai aqui o meu bravo para este Diretor superlativo. E para Tom Hanks. Spielberg o veste com roupas de capitão nas praias da Normandia, sem esquecer que era um professor na vida civil, um educador. James Ryan aprende com ele, de por vida. Agora o transforma num advogado sem brilho aparente, bom pai de família, que cumpre um dever que ele mesmo se impõe aperfeiçoando a tarefa que lhe é sugerida. Um duplo touché que nos convida a aprendermos, de uma vez por todas, a fazer por merecer!
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Li esse texto há muito tempo, logo após ver o filme. Nunca o esqueci, então, dia desses, tive vontade de lê-lo novamente. Depois de uma pesquisa curta consegui reencontrá-lo, ainda bem!
Inspirador. Obrigado e parabéns.