Atul Gawande: “Mortais. Nós, a Medicina, e o que realmente importa no final”
Atul Gawande: “Mortais. Nós, a Medicina, e o que realmente importa no final”. Objetiva. Rio de Janeiro, 2014. 259 pgs.
Meses atrás, uma resenha tinha caído nas minhas mãos, e estava atrás do livro. De repente, numa das reuniões mensais de educação médica e humanismo, uma professora muito querida, entregou-me de presente. “Você precisa ler isto. Tudo a ver com o que você ensina”. Agradeci o presente, refleti na rápida sintonia, e comecei e pensar que é aquilo que eu ensino –ou pelo menos tento- que o cirurgião indiano-americano transformado em escritor e best-seller descrevia no seu livro.
Logo de cara, entendi o que Gawande iria abordar. O desconcerto, ou melhor, o descaminho do estudante de medicina. Ele entra na faculdade sabendo –ou suspeitando ao menos- o que é cuidar, e com o tempo esquece dos pacientes porque está muito ocupado com a medicina. Um esquecimento que, seja dito de passagens, deve-se creditar à Academia, responsável pela sua formação. Como disse um outro médico e pensador americano: “todo sistema está perfeitamente desenhado para produzir os resultados que oferece”. Não podemos reclamar do produto, quando o processo de fabricação é defeituoso.
O autor explica os motivos da distração, sem utilizá-los como desculpa: “O que nos preocupava era o conhecimento, Embora soubéssemos como demonstrar compaixão, não podíamos ter certeza de que saberíamos diagnosticar e tratar nossos futuros pacientes de maneira adequada. Pagávamos a mensalidade da faculdade para aprender sobre os processos internos do corpo, os complexos mecanismos de suas patologias e a ampla gama de descobertas e tecnologias acumuladas ao longo da história para impedi-las. Não imaginávamos que precisaríamos pensar mais do que isso.(…) Ser útil aos outros mas ser também tecnicamente competente e capaz de resolver problemas intrincados. A competência nos traz segurança, senso de identidade….Dedico-me a uma profissão cujo sucesso se baseia em sua capacidade de consertar. Se seu problema pode ser consertado, sabemos exatamente o que fazer. Mas e se não pode? O fato de não termos respostas adequada a essa pergunta é perturbador e provoca insensibilidade, desumanidade e grande sofrimento”.
E a seguir a grande revelação, o motivo do livro: “Escrevi este livro na esperança de entender o que vem acontecendo”. Quer dizer, Gawande escreve, em primeiro lugar, para ele mesmo entender o processo de esquecimento dos médicos, processo do qual ele foi também vítima.
Confesso que o meu entusiasmo inicial foi se esfriando ao longo das primeiras 100 páginas, onde o autor descreve o descaso do sistema de saúde americano, especialmente no que se refere ao cuidado do idoso. Idas a vindas de um modelo ao outro de asilos, casas de repouso, e variações sobre o mesmo tema. Depósitos de velhos mais ou menos sofisticados, mas que não cuidam em absoluto porque não foram pensadas para isso. Cito textualmente: “As casas de repouso nunca foram criadas para ajudar as pessoas que estivessem enfrentando a dependência da velhice; foram criadas para liberar leitos nos hospitais…Estão inundadas de processos, protocolos e tarefas. As tarefas –o check list- passa a importar mais do que as pessoas”.
Os motivos do descaso também estão apontados. “Os médicos enxergamos o paciente em declínio como desinteressante, a menos que ele tenha um problema específico que possamos consertar (…) O velhinho não tem uma queixa principal- o velhinho tem quinze queixas principais. Como é que você vai conseguir lidar com todas elas? Além disso, ele já tem várias dessas coisas há uns cinquenta anos. Você não vai curar algo que ele já tem há cinquenta anos”.
Estava na metade do livro, e tudo o que Gawande contava, não me soava a novidade. Pensei, até, que se eu escrevesse um livro sobre tudo isso, provavelmente ninguém o compraria, porque não traz soluções. É um relato cinza de problemas. Onde está a motivação que levou este cirurgião a escrever? Ou melhor: onde está a chave do sucesso da sua obra publicada? Passada a metade do livro, começam a surgir as histórias. Histórias de pacientes, o desconcertante caso concreto –como dizia Eça de Queiroz- e, finalmente, a história do pai dele. Aí sim, entendi. Ele escreveu o livro para contar as histórias, para recontar –e compreender a fundo- a maravilhosa história do pai dele, também médico e cirurgião, afetado de um raro tumor.
É nesse momento quando Gawande mergulha no grande tema do livro: os cuidados paliativos. Mas, insisto, não de modo teórico, como um manual, mas ilustrado com as histórias de vida de pessoas à sua volta. De fato, são os pacientes, os seres humanos que os médicos temos em volta todos os dias, os que nos humanizam. Esquecer deles, porque estamos muito ocupados com a técnica, é caminho que leva ao abismo: esquecermos dos pacientes, e depois da medicina que tornar-se-á sem sentido.
“A diferença entre os cuidados médicos padrão e os cuidados paliativos não é a diferença entre tratar e não fazer nada. A diferença está nas prioridades. Na medicina normal o objetivo é prolongar a vida. Sacrificamos a qualidade da existência no presente –realizando cirurgias, oferecendo quimioterapia, colocando na UTI- em troca da chance de ganhar mais tempo no futuro. Nos cuidados paliativos se ajuda o paciente com doenças letais a terem a vida mais plenas que podem ter, concentrando-se em objetivos como eliminar a dor, preservar as faculdades mentais o maior tempo possível, possibilitar que tenha uma vida que se aproxime do normal. A prioridade nos paliativos não é viver mais, mas viver melhor”.
Gawande narra a sua descoberta dos cuidados paliativos através de uma história. “Uma reunião familiar –disse-me uma médica paliativista- é um procedimento e requer tanta habilidade quanto é necessária para realizar uma cirurgia. É preciso saber como ter essa conversa familiar, os termos a empregar, qual é o foco do que se deve discutir, as prioridades do paciente, as preferências dele. (….) O primeiro contato é fundamental. Uma enfermeira que trabalha com paliativos tem cinco segundos para fazer com que um paciente goste dela, que confie nela. Tudo depende de como você se apresenta, da sua postura. Não se pode entrar dizendo ‘sinto muito’, mas sim ‘sou dos paliativos, estou aqui para ajudar’. A postura inicial é essencial”.
A conversão do autor aos cuidados paliativos, fez com que se debruçasse sobre a pesquisa. Encontra estudos variados que mostram que pacientes com doenças terminais vivem mais tempo quando colocados em programa de Paliativos, do que quando tratados com medicina tradicional mediante cuidados oncológicos normais. O autor –que pensava que os paliativos aceleravam a morte- comprova que não é assim, que vivem melhor e alguns vivem até mais tempo. E conclui: lição zen, você vive mais tempo quando para de tentar viver por mais tempo.
Nessa altura do livro, agora sim em perfeita sintonia, descubro mais uma faceta, esperada de um estudioso. Atul Gawande: o gestor em saúde. “O problema com a medicina e as instituições geradas para cuidar dos doentes e dos idosos não é o fato de terem uma visão incorreta que dá sentido à vida. O problema é que praticamente não tem visão nenhuma. O foco da medicina é estreito. Os profissionais da área médica concentram-se na reparação da saúde, não no sustento da alma. Porém –e esse é o doloroso paradoxo- decidimos que são esses os profissionais que devem definir a maneira como vivemos nossos últimos dias. Por mais de meio século, tratamos as provações das doenças, do envelhecimento e da mortalidade como questões técnicas. Tem sido um experimento de engenharia social, colocando nossos destinos nas mãos de pessoas valorizadas mais por suas capacidades técnicas do que por sua compreensão das necessidades humanas”.
Reconheço que a conclusão à qual Gawande chega me conquistou. É o cirurgião experiente, que enxerga o cuidado com o mesmo rigor profissional que as intervenções cirúrgicas, e que, por tanto, ambos procedimentos requerem um reconhecimento adequado, também financeiro. “Considerando que algumas dessas conversas (dos cuidados paliativos) precisam ser longas muitos argumentam que o problema-chave tem sido os incentivos financeiros: pagamos aos médicos para que façam quimioterapia e cirurgias, mas não para que dediquem seu tempo a determinar quando não são aconselháveis. Temos aqui uma questão ainda não resolvida: qual é a verdadeira função da medicina; para que deveríamos estar pagando aos médicos”.
A figura da professora que me presentou o livro volta à minha mente neste momento. Certamente deve ter me ouvido dizer, mais de uma vez, que enquanto o mercado mantenha altos investimentos em tecnologia, mas considere a humanização da medicina como um voluntariado apenas louvável, não vamos nunca mudar o sistema. O gestor gasta em aparelhos, mas fecha o orçamento quando se trata de educação, de sensibilizar os profissionais da saúde para os cuidados reais, para “o que conta no final” como diz o título do livro. De novo, o sistema entrega o produto para o qual foi desenhado. Um desastre.
Os paliativos surgiram nas últimas décadas para trazer esta dimensão de cuidado aos pacientes que estão morrendo, com expectativas limitadas de vida. A especialidade avança, mas o autor não vê nisto motivo de comemoração. O entusiasmo do cirurgião converso aos paliativos –catalisado pela história de vida do pai dele, é claro- leva a conclusões de vulto. “Só será possível comemorar quando todos os clínicos tiverem esse tipo de posicionamento com cada pessoa por eles tratada; quando não houver mais necessidade de uma especialidade separada”.
Concordo com Gawande a grosso modo. Se os médicos fossem o que se supõem que tem de ser isso seria verdade. Mas a distração e o descuido já leva décadas acumuladas. Não advogo por deixar os cuidados apenas nas mãos de alguns especialistas, dos assim chamados paliativistas, para que o resto dos médicos continuem divertindo-se com a medicina e esquecendo-se dos pacientes. Não me parece uma solução sustentável, porque estaríamos certificando o fracasso da medicina como ciência humana. Mas por ora, que um grupo de médicos competentes assuma esta tarefa, e seja como um despertador para todos os outros, uma lembrança hipocrática, parece-me imprescindível.
Como diz o autor, quando fala da fragilidade humana, “gostaríamos de implantar um aparelho que podemos chamar de desfragilizador, e o conectaríamos diretamente ao nosso coração, para resolver o problema…….Mas não há desfragilizadores”. De fato não existem: o que temos hoje é medicina, cuidados paliativos, dedicação que alia ciência com arte. Aquilo que eu gosto de chamar Medicina Integral, uma bandeira que tenho levantado e que estou pensando em compartilhar com Gawande, para ouvir a opinião dele. Pode ser um caminho para resgatar os médicos da distração e animá-los a mergulhar nas histórias e vidas dos seus pacientes. Para entender, no dizer do autor, que para os seres humanos, a vida tem significado porque é uma história. E o final da história conta, e muito.