Sully: O Herói do Rio Hudson. A Criatividade do Fator Humano
Sully. USA 2016. Diretor: Clint Eastwood. Tom Hanks, Aaron Eckhart, Laura Linney, Autumn Reeser, Anna Gunn, Jerry Ferrara, Sam Huntington. 96 min.
O evento foi manchete dos jornais. Um piloto pousa o avião sobre o Rio Hudson, após decolar do aeroporto de La Guardia – Nova Iorque e sofrer uma pane inesperada nos motores. Lembro perfeitamente das fotos que acompanhavam a matéria: o piloto sorridente, ostentando um cuidado bigode, com ar paternalista. Isso é capaz de dar filme -pensei. Clint Eastwood certamente ficou sabendo, mas, pelo que ele comentou depois, aquilo não lhe despertou a inspiração cinematográfica. Foi só posteriormente, quando soube que o piloto herói -que tinha salvado todos os passageiros e a tripulação com uma aterrisagem inédita e arriscada- teve de responder um processo para justificar a proeza e o seu sucesso. Daí o velho Clint acordou, e partiu para montar este filme imperdível.
O filme é fruto de um diretor maduro. Não se limita a contar uma história -o fato em si, foi um voo de poucos minutos- nem se dispersa perifericamente, com as histórias dos passageiros, porque na verdade também conviveram pouquíssimo tempo e não há espaço para relatos paralelos. Nada a ver com aqueles filmes de desastres-bem-sucedidos, aeroportos dos anos 70, incêndios, e variações sobre o mesmo tema. Aqui temos hora e meia longa de celuloide, onde um acontecimento encaixa-se perfeitamente no meio da produção -como o recheio de um sanduiche- e rodeia-se do antes e depois, das vicissitudes que abraçam o episódio, e que o tornam apetitoso. Uma perfeita unidade; mais do que um sanduiche nos é servido um suculento rocambole, onde é impossível separar o preenchimento da cobertura. E o paladar viaja de um ao outro, degustando-o, e sem saber ao certo, o que é futuro ou passado -recheio ou cobertura- como o próprio Comandante Sully, com quem se identifica completamente. Mérito de Clint, que deve ter desfrutado fazendo o filme, porque aos seus 86 anos, certamente ele faz estas coisas para divertir-se. E, também da interpretação única, entranhável e humana, de Tom Hanks. Uma dupla impagável.
Assisti duas vezes, porque precisava refletir mais sobre a avalanche de ideias que tomaram conta de mim enquanto desfilavam os fotogramas. Um homem realiza uma façanha, salva todos os que viajavam no avião avariado, e tem de dar inúmeras explicações por não ter seguido os procedimentos estabelecidos pelas normas de segurança. Monta-se um verdadeiro circo de investigação, e ninguém parece lembrar que em circunstâncias análogas o único interlocutor disponível costuma ser a caixa preta, quando conseguem resgatá-la dos destroços da aeronave. Aqui temos a tripulação em peso, os 150 passageiros, mas parece que ninguém repara ……nesse detalhe. Um absurdo que inerva e te faz pensar, porque é um reflexo do nosso mundo moderno. Essa é a pegada do filme, e o recado do velho diretor. Um mundo que somente enxerga o que está padronizado e mensurado, incapaz de lidar com os imprevistos, e com os sucessos inesperados.
A minha atividade habitual como professor de medicina aproxima-me diariamente de dilemas que o filme levanta de modo provocador. Vivemos tempos de tecnologia crescente, de avanços científicos de inegável valor, mas perdemos o bom senso da dimensão humana. E isto fica evidente na hora de avaliar os estudantes e certificar sua qualificação profissional. A bola da vez de educação médica é integrada hoje por processos mensuráveis -que medem, mais ou menos, conhecimentos e habilidades- de modo estandardizado. Montam-se laboratórios de simulação, contratam-se atores que simulam doenças (para que todos os alunos tenham o mesmo desafio diagnóstico e uma resposta padronizada), mas desconhece-se completamente o mundo real do paciente que sofre, e que faz filas quilométricas na porta dos hospitais. E quando se oferece a oportunidade a este aluno (que paga quantidades exorbitantes para cursar uma faculdade de medicina) de ver o paciente real, surge a surpresa e a fascinação…de ser médico. Tanto assim que há algum tempo ocorreu-nos convocar os estudantes para nossos estágios práticos, com dizeres que se espalharam no Facebook: Sem simulações, sem atores. A vida como ela é!
Lembrei de uma conversa há mais de uma década com um velho professor durante um congresso de Educação Médica. “Não se iluda, meu caro -dizia-me. Aqui há muita gente que nunca vê pacientes, jamais conversa com os alunos, mas são os que cortam o bacalhau de toda esta montagem de educação médica”. Porque a verdade, nua e crua, é que os teóricos são bons para montar protocolos, mas ineptos para qualquer tipo de criatividade que consiga superar suas expectativas mensuráveis. Como acontece com os engenheiros do filme, peritos em analisar desastres mas ficam completamente desnorteados quando há um sucesso não previsto.
Aos argumentos de tremenda sensatez do Comandante Sully -vocês analisam tudo do ponto de vista do computador; a nossa reação foi humana, portanto tornem a análise humana- vinham juntar-se na minha cabeça as duras palavras de C.S. Lewis na sua “Abolição do homem”: “Extirpamos o órgão, e exigimos a função. Fazemos homens sem coração e esperamos deles virtude e iniciativa. Damos risada da honra e nos estranha ver traidores entre nós. Castramos e exigimos deles que sejam fecundos”. A padronização, que nos garante medir os resultados de modo satisfatório (para satisfazer o relatório, nunca a vida), produzem uma total castração da criatividade, amputam a iniciativa. É uma segurança estéril, isso sim, com certificações internacionais.
Mas ninguém permanece nesse confortável processo eternamente. Nos últimos anos, grupos de pesquisadores e educadores médicos, os mesmos que trouxeram à tona o método do caso e da medicina baseada em evidencias (de inegável utilidade) começam a desconfiar que falta algo. Inicia-se um debate, já quase um movimento, em torno ao que eles denominam os “Gut Feelings”, em tradução literal, “o sentimento dos intestinos”, que poderia se traduzir por intuição médica. Não bastam as evidências, nem o caso padrão (que garantia um modelo standard, para evitar as variações individuais) mas é preciso a intuição, o faro, o “jeitão” como diríamos no nosso vernáculo, palavra repleta de sentido para nós e que outros idiomas não possuem. Sim, a intuição do caso concreto -que é sempre desconcertante, como dizia Eça de Queiroz- sem medo da variação individual, porque a vida é mesmo variada, surpreendente, e por isso, encantadora. E para responder aos desafios dessa variedade é preciso arte e criatividade.
Lembrei -e tento ainda colocar ordem na infinidade de ideias que se aglutinavam na minha mente- da conversa do Robin Williams com Matt Damon naquele filme formidável, Gênio Indomável. “Se te pergunto por Michelangelo você me dirá tudo sobre ele……Mas você nunca sentiu o cheiro da Capela Sistina”. Sim, o cheiro da realidade, a intuição, a experiência. Aquilo que os educadores deveríamos ensinar e não o fazemos por receio a não saber medir, avaliar e prestar contas a quem paga os salários. E permanecemos ensinando protocolos, guidelines, e certificamos a esterilidade por conta de uma segurança mensurável.
Quando a minha agenda o permite e posso colaborar na educação corporativa, com cursos e workshop que os organizadores denominam pomposamente como excelência nas organizações, sempre falo de uma ideia que importei de um amigo que trabalha na área da qualidade. Ele costuma falar das ondas da qualidade. A primeira onde é, sem dúvida, a tecnologia. O progresso decorrente é inegável: basta ver o tempo que o caixa do supermercado gasta com a leitura do código de barras e compará-lo com as registradoras de décadas atrás. A segunda onda vem representada pelos processos, que é uma ordem lógica da tecnologia, a harmonia dos procedimentos, que rende certificações de qualidade, e padrões de excelência com reconhecimento internacional. As ISO, as Joint Commisions, e por aí afora. Mas existe uma terceira onda, diz meu amigo. Aquela que chega na pessoa, a estimula e educa a dar o seu melhor. Essa onda ainda está por ser construída, e a dificuldade de implantação é clara: não se sabe como medir. Medimos investimento tecnológico e processos, mas não sabemos como medir as atitudes das pessoas. E, como Descartes, o que não medimos -de modo claro e distinto- melhor não levar em consideração, porque nos complicará a vida. Essa omissão é quase uma capitulação na missão de fazer as pessoas melhores. E atinge o mundo corporativo, e o cenário educacional. E ninguém fala porque não sabe como resolver.
Sully nos brinda a oportunidade de refletir sobre estas questões, incarnadas numa personagem simpática e atrativa. Alguém que não se preocupa com a sua imagem, mas com todos e cada um dos que dependem dele. Não há espaço para pensar no próprio umbigo quando a cabeça é tomada pelas demandas alheias. Está preocupado com o número dos sobreviventes e somente sossega quando lhe chega o total: 155, todos se salvaram. Quer um número, não porque queira 100% de sucesso, mas porque se importa com todos e cada um. Somente o cuidado personalizado, pessoa a pessoa, consegue o melhor sucesso. Quando se olha muito para as estatísticas as pessoas perdem valor, nos desumanizamos, e nos limitamos a medir processos e certificar procedimentos da segunda onda da qualidade. É, mais ou menos, o que dizia aquela avó encantadora à neta no inesquecível livro da Susanna Tamaro, “Vá onde seu coração mandar”: “Lembra-se de quando lhe ensinava a preparar os crepes? Quando as virar no ar, dizia-lhe, deve pensar em tudo menos no fato de elas terem de cair direito na frigideira. Se pensar demais no voo, pode ter certeza de que cairão enroladas, ou se irão estatelar direto no fogão. É engraçado, mas é justamente a distração que nos faz chegar ao centro, ao coração das coisas”.
Um homem consciente do seu dever. “Não sou nenhum herói. Sou um homem que faz seu trabalho”. O reconhecimento chega quando se inclui o fator humano na análise técnica, quando se dá espaço à intuição. “Se juntarmos os engenheiros aeronáuticos, os espertos em pássaros, os computadores e tudo o mais, o resultado da equação não seria o mesmo se prescindíssemos de uma variável: você Comandante Sully”. Mas ele não gosta de confete, continua pensando nos demais: “Não concordo. Todos fizemos o trabalho. Somos uma equipe. Cada um fez a sua parte”.
Um filme que mantem a atenção do espectador mesmo sabendo como acabou o episódio da aterrisagem no Hudson. Cativa-nos e nos humaniza. E nos faz pensar, desarmados, no tributo cego que rendemos, como escravos, a uma tecnologia que amputa a criatividade. Um belíssimo trabalho do veterano Eastwood, que certamente desfrutou na confecção, e que sabe apontar o que realmente importa. Com essas idades, ganha-se a sabedoria das prioridades. Aquele professor com quem falei no congresso de educação médica tinha na época 75 anos, o Clint está com 86. Será que é preciso chegar numa idade não suspeita para falar claramente do que é evidente? Filmes como este são capazes de catalisar a reação e adiantar a terceira onda da qualidade, para ensinar-nos a incluir o fator humano. Tomara que funcione.
Comments 2
Pingback: A Mula- Do Arrependimento e do Perdão: A Sabedoria que decanta com os anos. | Pablo González Blasco
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