Até o último homem. A liderança virtuosa da Coragem.
Hacksaw Ridge. Diretor: Mel Gibson. Andrew Garfield, Teresa Palmer, Sam Worthington, Luke Bracey, Vince Vaughn, Hugo Weaving, Rachel Griffiths. 131 min. USA 2016.
“Você já assistiu Até o último homem”? Estou esperando o seu comentário”. Essa foi a primeira chamada. Depois chegaram outras; ao vivo ou em mensagens. É claro que tinha visto o filme, e gostado muito. Impactou-me. E andava pensando o que escrever, mas o público não perdoa os atrasos, quer a opinião em tempo real. O público na realidade são os amigos que se aventuram a ler o que a gente escreve de coração aberto, porque na verdade não escrevo sobre os filmes, mas sim acerca do que os filmes provocam em mim.
Por vezes, a demora em escrever obedece a colocar certa ordem nessas impressões incitadas. É como a catarse que as tragédias gregas se propunham conseguir. Um verdadeiro purgante; uma limpeza enorme de sentimentos -esvaziar as gavetas da roupa entulhada de qualquer forma- para ir colocando, aos poucos, ordem no armário, e nas emoções. É difícil saber por quê solicitam o relatório da tua própria catarse, quando cada um deve ter a sua. Provavelmente as percepções que anoto, não coincidem com as dos outros, ou até são diferentes quando não opostas. Mas o pessoal quer saber o que a gente sente. Olhar com os olhos dos outros? Ampliar a visão? Ter matéria para conversar numa reunião familiar a modo de cine clube? Sei lá; o único que me consta é que estou com bastantes semanas de atraso, ruminando, este filme formidável do Mel Gibson.
Bom advertir logo de cara que o filme é feito à imagem, semelhança e gosto do diretor. Não existe cinema de Mel Gibson em versão light, soft. Pode ser a Paixão de Cristo, a luta de Wallace em Coração Valente pela independência da Escócia, os rituais Maias em Apocalypto, ou a guerra no pacífico contra os japoneses. Violência, sangue, vísceras dilaceradas, lagrimas e lama, com o hiper-realismo que caracteriza o diretor australiano. Dizer que é uma história real não simplifica as coisas (aliás, todos os exemplos que acabamos de citar são histórias reais). A forma cruenta em que se apresenta é fruto da intensidade do cinema de Gibson. Pode-se viver uma história real -a nossa vida do dia a dia- e pode ser duríssima. Mas certamente ninguém alcança a vivenciar todos os detalhes em três dimensões e em tempo real. Talvez por isso a vida é suportável mesmo com as suas durezas. O que Mel Gibson faz com o cinema é colocar tudo de todos ao mesmo tempo. Daí sim, a carga é explosiva. E sendo real -não ficção nem efeitos especiais- o impacto é tremendo.
Uma história real como pano de fundo. O protagonista é Desmond Doss, que sem empunhar uma arma nem disparar um tiro, recebe no final da Segunda Guerra Mundial a Medalha de Honra do exército americano. Um caso de objeção de consciência que convive com a mesma consciência de missão: ajudar naquilo que é possível, sem ferir as próprias convicções. No caso, atuar como paramédico. Evidentemente, seria muito mais fácil eximir-se do combate, o que pouparia problemas a todos, começando pelo alto comando. Ter de carregar um soldado que sabidamente não lutará -mesmo em troca de serviços assim considerados periféricos- é um ônus considerável. Afinal, quem vai à guerra como soldado é para lutar e ganhar. Carregar feridos, limpar os estragos, é tarefa secundária na qual ninguém pensa quando tem como meta a vitória.
Mas a consciência de Desmond -a mesma que objeta contra a violência- não lhe permite fugir da missão que sente lhe é confiada: “Todos vão à guerra para matar, eu vou para salvar gente. Não me alistar? Ficar confortavelmente na poltrona da minha casa enquanto os meus amigos e colegas defendem o meu pais e morrem por ele? De jeito nenhum”. Uma teimosia que com o tempo se configurará em pura liderança.
Talvez aí é onde está a maior força do filme: na convicção e coerência com as ideias, que Desmond transforma em carne da sua carne, plasmando-as na atuação quotidiana. Porque, convenhamos, ser coerente com as ideias, até no fio do bigode, é atitude que infelizmente, e cada vez mais, brilha pela sua ausência. Uma mosca branca. E isso quando alguém se atreve a dizer que tem ideias próprias, decantadas em reflexão, e não apenas um amontoado de espasmos da mídia ou das redes sociais maria-vai-com-as-outras.
Um dos meus livros preferidos, que descobri na adolescência e me acompanha até hoje, é um ensaio de Miguel de Unamuno sobre a personagem de Cervantes: Vida de D. Quixote e Sancho, se intitula. É lá onde o filósofo espanhol diz que são poucos os que casam com uma ideia e tem família com ela. (Ter família, em espanhol, é ter filhos, descendência, deixar um legado) A maioria, diz Unamuno, amasia-se com as ideias, tomando-as como amantes de uma noite, e depois as abandonam. Tão duro como real. O ser humano não mudou desde a época em que o Reitor da Universidade de Salamanca escrevia estas palavras tremendas. Talvez até piorou, porque a deslealdade e a falta de palavra hoje não são consideradas carência de virtude, mas apenas um detalhe periférico, uma falha técnica no melhor dos casos, para o qual ninguém atenta.
Não é o meu caso -pensaremos quando lemos estas linhas, ou enquanto as escrevemos, porque todos estamos no mesmo barco. Eu tenho ideias e as ponho em prática; aliás, sou um vulcão de ideias. Até aí, tudo bem. Mas pegar no batente, superar as lombadas que a vida nos coloca, manter o ânimo no meio da deserção geral, não é para qualquer um. A coragem -dignidade sob pressão a chamava Hemingway-, é o que configura as verdadeiras lideranças que Kennedy descreve no seu prêmio Pulitzer (Profiles in Courage). E com a pressão, muitas das ideias geniais se esvaziam e ficamos na saudade. Quando tenho oportunidade de falar disto com jovens universitários, estimulando-os a ser protagonistas da própria formação, sempre utilizo um texto de Rocco Buttiglione, jurista e filósofo italiano: “Defendemos valores sempre que não nos tirem nada nem nos incomodem demais. Quando a defesa de um valor implica o compromisso pessoal, sempre encontrarmos motivos para não o fazer”.
Voltamos ao filme. As cenas são impactantes, uma atrás da outra. E no meio do sangue que suja a tela, de membros decepados e brados angustiantes de dor, a figura serena de Doss, empoeirado e melecado em sangue, focado no que sabe fazer, na defesa do seu pais: resgatar os feridos, um a um. “Eu pedia a Deus força para me ajudar a trazer mais um”. Volta uma vez e outra, num resgate insaciável, arriscando a própria pele que parece ter um ‘corpo fechado’ pela convicção inamovível que inunda a sua alma.
Uma sequência antológica de cenas e de surpresas, quando os feridos continuam pingando, um atrás do outro, do alto do morro, num delivery que é verdadeira epifania, pilotada por Desmond Doss. Os oficiais curvam-se à evidência e à integridade daquele que pensavam ser um covarde, agora transformado num gigante. Imploram perdão e pedem para de alguma maneira beber na fonte inesgotável das suas convicções: “Os homens não tem a fé que você tem, mas eu acredito muito no quanto você acredita. Eles não querem voltar ao inferno lá em cima sem que você os proteja com a sua prece”.
Segue uma tomada impagável: os soldados em silencio, e a voz do general perguntando por que a demora para retomar o ataque. “Estamos esperando o soldado Doss acabar a prece dele”. E aqui veio à minha memória o comentário que li há anos num editorial da imprensa, onde o jornalista abordava a importância da seriedade na liturgia para educar no sentido da transcendência. “Tenho até saudades -dizia- daquelas Missas em Latim, onde eu não entendia nada, mas estava feliz, porque sabia que o padre falava com Deus de mim” Foi uma associação de ideias imediata, enquanto o pelotão observava com imenso respeito Doss rezando. De costas, como naquelas missas em latim.
Sucede-se o ataque em sábado, o dia proibido para o protagonista que, agora sim, abre mão das regras para abraçar o imperativo da caridade e estar ao lado dos companheiros que sobem o morro em busca da vitória ou da morte. Mais uma associação de ideias, desta vez as Olimpíadas de Carruagens de Fogo, aquele filme espetacular, onde Deus recompensa cada um dos atletas que se mantêm fiéis as suas crenças e que se ajudam entre si, pertencendo a diferentes credos.
Porque coerência e fidelidade às ideias não é fundamentalismo, como falsamente alguns pretendem apontar. São os mesmos que não tem convicção nenhuma, mudam de opinião ao sabor das circunstâncias, e lhes incomoda toda posição de firmeza e integridade. Fundamentalismo é invocar as próprias crenças para atropelar os outros (ou, também, o fundamentalismo de quem não tem convicções e patrulha todos os que têm alguma). Mas utilizar a própria transcendência para fazer um mundo melhor, ajudando de fato quem está à nossa volta, isso é grandeza de alma. E, dessa transcendência acabam participando, e respeitando, os que pensam de modo diferente.
No tremendo filme de Mel Gibson, os homens lutam, sofrem, morrem enquanto alguém está atento para ajudar a todos. Mesmo os feridos japoneses. Porque o amor do soldado Doss não é algo difuso, como o amor à pátria ou à humanidade. Ninguém ama pessoas jurídicas, nem instituições; e quem equivocadamente o faz, antes ou depois, defronta-se com o desengano. O amor tem de ser concreto, incarnar-se em alguém. Como o de D. Quixote -de novo Unamuno naquele livro magnífico comentado anteriormente- que soube amar a humanidade em Sancho, que era prosaico, inculto e cheirava mal. Amor que não cristaliza em alguém, não é amor de verdade, dizia o filósofo espanhol.
Daí sim, o amor concreto torna possível o esforço mesmo acompanhado de um sofrimento sem medida, porque agora tem sentido sofrer. Não é o sofrimento o que torna grande alguém, mas o motivo pelo qual sofre. Já dizia Santo Agostinho em frase lapidar: Mártires non facit pena, sed causa. O importante não é o que a gente padece, mas o motivo e a classe com que o faz.
Estava alinhavando estes pensamentos quando alguém comentou num momento de descontração, durante o jantar, que para conhecer bem alguém não basta saber o que ele faz, mas sobre tudo, o que ele nunca deixa de fazer. Uma verdadeira radiografia da alma. Aquilo que não é negociável. Como as convicções profundas, e a dedicação incansável para ajudar os que temos do lado. Uma atitude plasmada em Desmond Doss e que o projeta de um perfil cinza e anódino, para construí-lo num exemplo de liderança virtuosa da coragem. Em resumo: um filme superior com a marca de Mel Gibson!
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Pingback: Uma razão para viver: O carinho criativo. | Pablo González Blasco
Bem mais do que uma resenha maravilhosa sobre um filme espetacular.
Trata-se de uma belíssima aula e uma “ radiografia da vida” a ser seguida.
Parabéns Professor.
William Soares