Hannah Arendt. “Verdad y mentira en la política”
Hannah Arendt. “Verdad y mentira en la política”. Página Indómita. Barcelona (2017). 160 págs.
Minha admiração por Hannah Arendt arranca do magnífico filme, previamente alavancado por um estudo, a modo de tese doutoral, sobre a vida e obra da filósofa. No filme, os 4 minutos de discurso onde expõe sua tese sobra banalidade do mal é um momento de epifania na clareza de pensamento. Já rendeu comentários, conferencias, workshops, enfim, que os royalties que tenho de pagar para a pensadora alemã não são pequenos. Por isso faço questão de comentá-lo aqui de modo explícito: é o reconhecimento formal da fonte dos meus comentários, o que entre os acadêmicos salda os direitos autorais.
Este pequeno livro, reúne dois ensaios curtos publicados na década de 60 em Estados Unidos, onde a autora vivia desde o começo dos anos 40. O primeiro a raiz da controvérsia causada pela publicação de Eichmann em Jerusalém (justamente onde aborda o tema da banalidade do mal); o segundo, com ocasião da publicação de documentos classificados do Pentágono, relativos à guerra do Vietnam. Os motivos, no entanto, são apenas um detalhe casual: o importante é o núcleo do seu raciocínio sobre a verdade e a mentira em política.
Arendt é uma pensadora -não gostava de chamar-se filósofa- que sendo positiva e apaixonada pela verdade (a paixão por compreender as coisas é uma tónica sempre presente) não se ilude. Por isso, logo de cara invoca o velho adágio: Fiat veritas, et pereat mundus. Isto é, se dizemos as verdades o mundo se afundará. E com este realismo nos adverte que a verdade e o poder são elementos que não se misturam, como água e óleo. “A possibilidades de que a verdade fatual sobreviva ao ataque do poder é de fato muito reduzida; a verdade corre o risco de ser expulsada do mundo, não apenas por uma temporada, mas definitivamente”. Não há porque decepcionar-se, visto que essa é a realidade. Ignorar isto seria ingenuidade.
Mas as consequências do modo em que a política trata a verdade é que podem ser funestas. Visto que não há como misturar-se, aceitar a verdade pura, os detentores do poder, os políticos, a submetem a um tratamento curioso, a desbotam, reduzindo-a a simples opinião. Anota a pensadora: “A verdade do filósofo está num plano diferente da opinião. Mas é a opinião o que confere intensidade política ao conflito, quando se enfrenta à verdade como se estivessem num mesmo plano. Porque afinal é a opinião e não a verdade o que está nos pré-requisitos essenciais do poder. O voto, a democracia, conferem força à opinião. A verdade não é passível de ser votada”.
As consequências são graves porque ultrapassam o âmbito político e penetram no tecido social. Quando não há mais verdades, mas apenas opiniões, cada um pode pensar como quer, e ninguém pode lhe argumentar nada em contrário. “A verdade dos fatos, que está ao alcance de todos, está menos exposta à discussão do que a verdade filosófica. Mas quando se expõe no mercado e na mídia, corre um destino análogo ao da verdade filosófica: combate-se não com mentiras, ou falsidades deliberadas, mas com opiniões. Transformar-se o fato em opinião, dilui-se a linha divisória entre ambos”
Este é o âmago do recado que Hannah Arendt expõe: um combate velado da verdade, reduzindo-a simples opinião, desvinculando-a da realidade dos fatos, quer dizer, uma leitura subjetiva da verdade, e da própria realidade. “Apagar a linha divisória entre a verdade dos fatos e a opinião é uma das muitas formas que a mentira pode assumir como recurso de ação prática…. As mentiras geralmente resultam muito mais verosímeis e atrativas do que a realidade; quem mente sabe o que seu público quer escutar, enquanto a realidade tem o desconcertante costume de nos enfrentar com o inesperado, com aquilo para o qual não estamos preparados”
Talvez por isso, para evitar embates diretos, é o motivo de que ataque à verdade seja feito não com mentiras, mas com opiniões como se tudo estivesse no mesmo plano. Lembrei do comentário de Innerarity em La sociedad invisíble advertindo que “nosso grande inimigo não é o segredo, mas a banalidade. E também de Kennedy, num dos seus discursos, quando aponta que “desfrutamos do conforto da opinião sem a dificuldade do pensamento”.
O universo da opinião vem tomar conta do debate da verdade em política. Arendt relata uma conversa de políticos sobre a primeira guerra mundial. Um comenta: “O que pensarão os futuros historiadores de tudo isto?” E o outro responde: “Não sei, mas certamente não afirmarão que Bélgica invadiu a Alemanha”. Por diversas que sejam as opiniões não há como negar os fatos reais.
A mentira, disfarçada de opinião, invade o tecido social e chega até o coração do homem. Aí surge o dilema que a escritora aponta cruamente: “O homem, que tem uma unidade, pode estar em conflito com o mundo todo; mas não conseguirá viver se está em contradição consigo mesmo”. Lembro de ter comentado esta passagem com um amigo filósofo que coordena uma ampla rede de investigação em bioética em América Latina. Ele sorriu e me disse: “é claro, teria de se mentir a ele mesmo o tempo todo, e isso sim é esgotador”.
De fato, é toda uma empreitada construir a vida em cima da mentira permanente que, sabido é, tem pernas curtas. Mesmo assim, perdendo as pernas, há quem consiga funcionar sem elas, e faz da sua vida a missão de convencer Deus e o mundo de que essa é a situação normal do homem: andar sem pernas. Vale o exemplo que Arendt inclui: “Os homens que atuam, e sentem-se donos do seu próprio futuro, sempre terão a tentação de apropriar-se do passado e interpretá-lo ao seu gosto, à sua imagem e semelhança. Haja visto o caso de Stalin e a depuração sobre o passado, por exemplo, para eliminar da história o papel que Trotsky desempenhou na revolução Russa. Não foi suficiente mata-lo: era necessário matar todo seus contemporâneos, e controlar arquivos e bibliotecas de todos os países de Terra. Quer dizer, eliminar a memória para apropriar-se do passado ao seu gosto”.
Diante deste panorama, aparentemente pessimista, o que fazer? A pensadora é clara e direta: “Ensinar através do exemplo é a única forma de persuasão da verdade filosófica”. Quer dizer, que cada um tem de fazer a sua parte, com integridade moral, com amor pela verdade, em exemplo permanente que, bom é sublinhar, é difícil de avaliar. O impacto do exemplo aparece lá na frente, com o passar do tempo; não há como medir sua influência de modo imediato. Talvez por isso desistimos e desanimamos: porque não somos conscientes do muito bem que uma conduta exemplar pode render. Fazer, pois, a lição de casa. Parafraseando Santo Agostinho -por sinal, objeto querido dos estudos de Hannah Arendt- que afirmava, “ama e faz o que queiras”, poderíamos concluir: “vive de acordo com a verdade, espalha bom exemplo, e deixa as mediocridades se debaterem e se desgastar no mundo sofista das opiniões”.
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