Friedrich Durrenmatt: “A Visita da Velha Senhora”

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Friedrich Durrenmatt: “A Visita da Velha Senhora”. Abril Cultural. São Paulo 1976. 180 pgs.

 Uma obra clássica de teatro preside este mês nossa tertúlia literária. O dilema ético, elegantemente colocado pelo autor Suíço, cujo argumento é amplamente conhecido e discutido. A velha senhora é  Claire Zachanassian, uma dama milionária que regressa à sua cidade de origem, Gullen. Foi de lá que saiu quando jovem, grávida e expatriada, após um juízo onde uma suposta moralidade pública decidiu limpar a escória do escândalo. A vida deu suas voltas, a coitada herdou uma imensa fortuna do seu primeiro marido, e volta agora decidida a pôr as contas em limpo. Gullen é uma vila decadente e necessitada, e para a velha dama o dinheiro não é problema. Sim, voltou para ajudar a sua cidade natal, mas com uma condição: quer a cabeça de Alfred, o sujeito que após engravidá-la, abandonou-a à sua sorte, negando a paternidade da criança que Claire estava gestando.

A recepção calorosa e interesseira oferecida pela cidade, comandada pelos elementos de destaque social (prefeito, chefe da polícia, professor, sacerdote e o próprio Alfred) é rapidamente turbada quando Claire coloca suas condições com gélida naturalidade. “O mundo fez de mim uma mulher da vida e eu quero fazer dele um bordel”. O choque escandaliza a população, Claire diz que não tem pressa, e acena com os milhões de recompensa. O dilema ético está montado. Aí arranca a peça teatral, o desenrolar da mesma, e as nossas discussões.

E são justamente as discussões, fruto da vivência que se experimenta ao ler ou assistir a obra de Durrenmatt, as que enriquecem este dilema e o tornam sempre atual. O que inicialmente choca e repele, vai tomando corpo na cabeça, no coração e na alma da população. A contundente negação de pactuar com o mal – “Temos os princípios, minha senhora, os da civilização ocidental” – vai sendo minada pelas aberturas e concessões, aparentemente sem importância: “Toda a cidade andou fazendo compras…. Está endividada”. Claire sorri: “Como? Apesar dos princípios?”. Para chegar no coração, e obter o assentimento da razão que aprova meios espúrios para alcançar uma finalidade aparentemente razoável, o bolso é muitas vezes o primeiro passo. É aí onde as coisas começam a entortar. Basta dar uma olhada nas manchetes dos jornais, com a lotaria da corrupção, para encontrar um fundamento “in re” para as nossas discussões.

Bem sabe a velha senhora da condição humana: “O sentimento de humanidade foi feito para a bolsa dos ricos, mas quem tem o meu poderio financeiro pode dar-se ao luxo de criar logo uma nova ordem mundial”. E assim o reconhecem os habitantes de Gullen que observam como se desmorona sua ordem ética: “Essa maldita milionária, que troca de marido a toda hora diante dos nossos olhos e vai coletando as nossas almas uma por uma”. Claire troca de marido, e mantém o mordomo como elemento permanente porque “afinal de contas, camareiro a gente tem para a vida toda, logo, os maridos é que devem adaptar-se ao nome dele”. Mas a superficialidade do contexto não justifica a pusilanimidade ética, como se a decisão moral não dependesse integralmente da vontade, ou fosse fruto de um consenso. É na própria consciência onde se dão as cartas, onde reside o núcleo do dilema na opção ética. Esse é o argumento que in extremis pronuncia Alfred, como um grito de socorro: “Podem me matar, não me queixo, não protesto, não me defendo, mas não posso aliviá-los do seu ato”

Muitos foram os comentários, e sucederam-se os exemplos da vida real, que surgiram à tona com a visita de Claire . Houve quem aproveitou para assistir à peça que, coincidentemente, estava passando no teatro nesses dias. Alguém comentou que na cena do crime -um ataque cardíaco, diz o médico- o único que está de costas é o professor, aparente último bastião do humanismo que também sucumbe. Outros assistiram ao filme interpretado por Ingrid Bergman -uma Claire sublime- e Antony Quinn, no papel do namorado desalmado. Tem impacto, mas falta-lhe a pegada da peça. Eu, pessoalmente, lembrei da história do sapo e da panela fervendo, outro relato clássico do relaxar ético: quando se tenta colocar um sapo numa panela fervendo, ele pula fora imediatamente, a aversão é instantânea; mas se introduzido na água ainda morna, que aos poucos vai esquentando, não percebe, fica por lá e acaba sendo cozinhado. Confesso que nunca fiz a experiencia na infância, mas é tão verossímil quanto útil para explicar como o ser humano acaba se acostumando com as maiores barbaridades. Aos poucos, a fogo lento. Consultar a história -a antiga e a recente- corrobora o relato.

Mas tamanho absurdo acontece com quem? -poderíamos perguntar. Durrenmatt adverte, quando escreve as orientações de como as personagens devem ser apresentadas: “Os habitantes de Gullen são homens como todos nós. Não devem, de nenhum modo, pintar-se como malvados; decididos de início a recursar a oferta, é verdade que contraem dívidas, mas não com o propósito de matar Schill, senão apenas por leviandade, com base no sentimento de que as coisas acabarão se arranjando”. Homens como todos nós, uma verdade que ajuda a desconfiar de possuirmos uma integridade a toda prova. Durante os comentários da tertúlia relatou-se um episódio da vida de Abraham Lincoln. Parece que alguém lhe propôs um assunto pouco correto, e lhe ofereceu uma quantia. O presidente o escutou em silêncio, e o interlocutor foi subindo o valor da oferta. De repente, o expulsou e negou-se a continuar o diálogo.  Quando lhe perguntaram o motivo da reação inesperada, Lincoln foi direto e sincero: “Fiz ele sair porque fiquei com medo de que atingisse o meu preço!”.

Sinceridade e humildade para desconfiar de si mesmo: eis a melhor blindagem para os assédios éticos, para evitar a síndrome do sapo cozinhado. É o resumo que o próprio autor anota no final da peça: “uma história escrita por alguém que não se distancia, de forma nenhuma, dos seus habitantes e que não tem muita certeza de que procederia de modo diferente deles”.

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