Antoine de Saint- Exupéry: “Terre des Hommes”

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Antoine de Saint- Exupéry: “Terre des Hommes”. Le livre de Poche. Paris (1965). 243 pgs. 

Tinha lido esta obra de Saint Exupéry bastantes anos atrás. Desta vez, trazê-la ao cenário da tertúlia literária, teve uma dupla intenção. A mais evidente, servir de pauta para as nossas reflexões conjuntas. A outra, pessoal, desenferrujar o meu francês, pois viajava para uma atividade acadêmica naquelas latitudes, e tinha caído nas minhas mãos um exemplar na língua original.  Os objetivos somente foram conseguidos parcialmente. Explico.

Logo de cara vi que as pensadoras sentadas na primeira fila, tinham o livro e um caderno de anotações. Suspeitei que havia material para compartilhar, os olhares o confirmavam, deixei o público falar. E desfrutei com os comentários, magníficos. “Como este homem consegue tirar poesia de toneladas de areia, no meio de um deserto? Uma poesia da areia interminável, como se tratando de algo corriqueiro? E nós, que não conseguimos tirar brilho do nosso quotidiano, desconhecemos o nosso quintal, e gastamos a vida invejando o quintal alheio. Nós, sedentos de novidades, incapazes de reparar que o muro do jardim pode encerrar mais mistérios que a muralha da China”.

As intervenções pipocavam pela sala, mãos levantadas, leituras das anotações: “A terra nos ensina mais do que todos os livros. O homem se descobre quando se mede frente aos obstáculos. O burocrata que constrói a paz cegando-se com o cimento da rotina, como as térmitas se cobrem para fugir da luz. A grandeza de uma tarefa é, antes de mais nada, poder unir os homens: é um verdadeiro luxo, as relações humanas. Os bens da terra escapam entre as mãos como a areia das dunas….A passagem do tempo não é habitualmente percebido pelos homens. Vivem num paz provisória”

Os comentários me golpeavam com doçura. Reparei que não tinha sido uma boa ideia desempoeirar meu francês com a prosa poética do aviador aristocrata, pois tinha consumido grande parte dos meus esforços na compreensão da escrita elegante -dicionário incluído- e tinha me escapado…a poesia, como a areia entre os dedos. Ou como esse orvalho que os náufragos do deserto tentam apanhar, sem sucesso, sobrando-lhes a aridez que atinge os corações, secos, que nem lágrimas conseguem mais derramar.

Volto sobre as minhas anotações quando rabisco estas linhas. Lá descubro o esforço do amigo, que sobrevive por teimosia nos Andes, que faz o que nenhum animal seria capaz de fazer, porque vai além do instinto de conservação, ancora-se na sede de sentido (como V. Frankl, que tínhamos lido no mês anterior), nos motivos que tem para viver, no desejo de transcendência: “Ser homem é ser responsável. É conhecer a vergonha diante de uma miséria que não parecia depender de si mesmo. É sentir orgulho diante da vitória dos camaradas. É sentir que com nosso grão de areia podemos ajudar a construir o mundo (..) Quando tomamos consciência do nosso papel, podemos atingir a felicidade. Somente podemos viver e morrer em paz, quando o que dá sentido à vida também o dá para a morte”. Perspectiva transcendente, e solidariedade, amor: “Amar não é olhar-nos, mas olhar juntos na mesma direção (…) Ajuda que não é simples filantropia mas um desejo de resgatar a dignidade de um homem”

Essa é a terra dos homens que o escritor exalta. Uma terra que se conquista com a viagem pessoal na conquista do império interior. Superior às maravilhas da aviação que seduziam  Saint Exupéry, capazes de transformar o mapa do terreno num pais de conto de fadas. O mapa -sempre impessoal- dá lugar ao território, à terra que piso. “O uso da técnica não te transforma num técnico sem alma. Esses que tem medo da técnica são os que confundem os meios com o fim. A máquina, o avião, a carroça são meios não fins (…) O soldado conquista, mas o colonizador torna a ação ao serviço dos homens. Tivemos uma moral de soldados durante a conquista. Mas agora nos toca colonizar, construir o império interior (…) Um espetáculo somente tem sentido quando se enxerga com uma cultura, uma civilização, um ofício” 

Falou-se da importância do espelho, de valentia de encarar-se diariamente e aprumar as prioridades, mergulhar no conhecimento próprio. Já dizia alguém que o espelho é o nosso melhor amigo, sendo a fotografia -as que nos favorecem- inimigos sutis que nos distraem da realidade, vendendo-nos uma imagem que o tempo desbota. Entendi que o meu esforço linguístico tinha me distraído destas considerações densas, profundas. Retomo as minhas anotações e lá encontro: “Quem de entre nós não conhece estas esperanças frágeis, este silencio que cresce a cada minuto como uma doença fatal?(…)Os homens que viveram longo tempo com um grande amor, quando são dele privados, se mostram cansados de sua nobreza solitária. Aproximam-se humildemente da vida, de um amor medíocre que lhes traga felicidade. Um abdicação, uma servidão para alcançar a paz das coisas”. Um entendimento simples, sem juízos de valor,  do pacto que o homem estabelece com a mediocridade.

É nas areias do deserto, “ prisioneiros desse círculo de ferro: a curta autonomia da nossa sede”, quando damos valor ao que realmente importa, ao detalhe que, distraídos com invejas estéreis, desprezamos. “Não sabemos o valor de uma laranja. Agora, no deserto, mesmo sentindo-me condenado, isso não frustra o meu prazer: esta meia laranja que aperto entre as mãos me traz uma das maiores felicidades da vida (…) Água não tens gosto nem cor, nem aroma. Não conseguimos definir-te sem te conhecer. Tu não es necessária para a vida. Tu és a vida. E nos enches de um prazer difícil de explicar apenas pelos sentidos. Contigo recuperamos as atribuições das que tínhamos desistido,  se abrem as fontes secas do nosso coração”.

Difícil resumir os muitos aprendizados que cristalizaram ao longo destas duas horas de tertúlia literária. Valorizar o quotidiano, prezar as adversidades “que fertilizam nossa vida e a tornam fecunda. O admirável é o terreno onde os homens crescem. A vocação é maravilhosa, mas é preciso o terreno favorável, a religião exigente, as ocasiões propícias para despertá-la. Sem elas, a vocação adormeceria no homem que nem chegaria a conhecer a sua própria grandeza”. Não ser náufragos -aqueles que simplesmente esperam, destroçados por um erro enorme- mas protagonistas da nossa existência. Essa é a terra dos homens, que refletem, realinham as prioridades, crescem em sabedoria  “A perfeição é alcançada não quando não há mais nada a acrescentar, mas quando não há nada para subtrair”. Quer dizer, a simplicidade da beleza, da bonheur,  dajoie de vivre!

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