Gail Honeyman: “Eleanor Oliphant está muito bem”.

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Gail Honeyman: “Eleanor Oliphant está muito bem”. Fábrica 231. Rio de Janeiro, 2017. 350 págs.

Chega a nossa tertúlia literária esta obra debut da escritora escocesa. Algo tinha lido acerca deste romance que apontava ser um ensaio sobre relacionamento, e os mundos diferentes em que todos andamos mergulhados e nem sempre conseguimos enxergar.

A protagonista é uma mulher culta, formada em filologia, que trabalha no departamento de contabilidade de uma empresa, atrelada a uma rotina pessoal que ela mesma se impõe. Lembrou-me aquela personagem singular do filme Gênio Indomável, onde o brilhante garoto (Matt Damon) trabalha de faxineiro numa escola,  e resolve complicadas equações nos intervalos das aulas… sem ninguém ver. Talento guardado, sem riscos de se expor.

Eleanor é uma versão feminina do gênio indomável. “Ninguém esteve em meu apartamento este ano além de profissionais de serviço; não convidei voluntariamente outro ser humano a atravessar a porta , exceto para ler os medidores.  Você acha que isso é impossível, não é? Mas é verdade. Eu existo, não existo? Frequentemente parece que não estou aqui, que sou um produto e minha própria imaginação. Há dias em que me sinto conectada de modo tão leve à Terra que os fios que me prendem ao planeta são filamentos delgados fiados de açúcar. Uma forte lufada e vento poderia me desalojar completamente”.

Eleanor está confortável com a solidão ou, ao menos, sabe que não envolve o risco de relacionar-se com universos desconhecidos. “Algumas pessoas fracas temem a solidão. O que elas não conseguiam entender é que há algo realmente liberador nela; quando você percebe que não precisa de ninguém, pode cuidar de si mesmo. A questão é essa: é melhor cuidar apenas de si mesmo. Você não pode proteger outras pessoas, por mais que se esforce. Você tenta  não consegue, e seu mundo desmorona ao seu redor, queima e vira cinzas”.

Tem o tema bem elaborado, e os recados que destila são de extrema utilidade para o nosso mundo barulhento, onde as pessoas se amontoam…..em solidão, sem querer reconhecê-lo, enganando-se com conexões virtuais, amarrando-se …..ao vento. “Hoje em dia a solidão é o novo câncer -uma coisa vergonhosa e embaraçosa, que se abate sobre você de um jeito obscuro. Uma coisa temível e incurável tão horrenda que você não ousa mencionar; as outras pessoas não querem ouvir a palavra dita em voz alta por medo de também serem atingidas, ou que ela possa tentar o destino a impor um horror parecido sobre elas”.

Um incidente e um colega de trabalho trazem a revolução à vida da nossa protagonista que é obrigada a despertar para os outros, para o mundo, enfim, para a dimensão social do ser humano. Tarefa árdua, porque são muitos os preconceitos, talvez os medos. Aquilo de deixa como está para ver como é que fica. Critica sem nunca falar -a observação silenciosa é um traço dominante em Eleanor- as convenções, os modismos, o que todos fazem sem saber exatamente por que fazem. Por exemplo, presentes de casamento: “É uma afronte deslavada. Simplesmente não consigo ver como o ato e formalizar legalmente um relacionamento humano necessita que amigos, familiares e colegas de trabalho façam por elas uma melhoria na cozinha”. Ou tentativas de aproximação afetiva: “Rituais de acasalamento humano são inacreditavelmente entediantes de se observar. Pelo menos no reino animal, você de vez em quando ganha um vislumbre de penas coloridas ou uma demonstração de violência espetacular. Jogar o cabelo e brigas e brincadeiras não eram exatamente a mesma coisa”.

Desperta Eleanor, com toda sua bagagem cultural e toda sua feminilidade. Aos poucos, de modo encantador. Como conquistar um homem? “O caminho para o coração de um homem -disse a minha mãe- são um enroladinho de salsicha feito em casa, massa folhada quente e carne de boa qualidade”. E as observações sobre o mundo que também desperta para ela: “Ele tinha a expressão de uma gazela ou um impala, um desses tediosos animais beges com olhos grandes e redondos nos lados da cara. O tipo de animal que, no final sempre é comido por um leopardo (…) Sammy parecia bem vulnerável, como as pessoas costumam ficar quando usa pijamas em  público  (…)Eu podia sentir seu cheiro no pulôver,  ainda levemente perfumado por seu dono com maças, uísque e amor”.

Aprender a trabalhar ela mesma. Deixar-se ajudar, outro grande recado. Para desabrochar com riqueza. Alterar suas rotinas: “Ser feminina aparentemente significava levar uma eternidade para fazer qualquer coisa, e envolvia bastante planejamento antecipado”. Perceber os detalhes: “Perceber detalhes, isso era bom. Pedacinhos de vida -todos se somavam e ajudavam você a sentir que também podia ser um fragmento, um pequeno pedaço de humanidade que preenchia proveitosamente um espaço, por menor que fosse”. Trabalhar as próprias emoções que não podem ser amputadas, mas educadas: “Eu estava aos poucos me acostumando a sentir a variedade de emoções humanas à disposição, sua intensidade, a rapidez com a qual podiam mudar. Até então sempre que emoções, sentimentos, ameaçaram me abalar, eu as afogava rapidamente com a bebida. Isso me permitia existir, mas eu estava começando a entender que agora eu precisava, queria, algo mais do que isso”. Enfim, implementar o que lhe causava uma sadia inveja de outra personagem: “Ela sem dúvida parecia ter uma vida, não apenas uma existência”

O livro foi uma surpresa agradável que despertou comentários nos participantes da tertúlia, e reflexões. Muitas.  Por que as personagens dos livros nos levam a identificar-nos com eles? Como é esse mundo interior dos outros que imaginamos conhecer, sendo que nada sabemos? E o conhecimento próprio, os porões da nossa consciência afetiva dos quais nem perto chegamos por receio de encontrar algo que nos desagrada? A resposta é que a vida se torna transparente na arte; no caso, na narrativa, na personagem que mostra com clareza todos esses aparentes mistérios.

Hoje, em que o método do caso está no auge -na educação corporativa, nos MBAs, na Universidade- temos que lembrar que os cases das personagens literárias são antiquíssimos: daí o sucesso e o sabor clássico que agregam. É transparente o ciúme em Otelo, ou o remorso em Raskólnikov de Crime e Castigo. E brilha o sentido da vida na reflexão incarnada em Eleanor, muito mais do que lendo os existencialistas: “Qual, eu me perguntei, era o sentido em mim? Eu não contribuía em nada com o mundo, absolutamente nada, e não tirava nada dele. Quando eu deixasse de existir, não faria nenhum diferença material para ninguém”.

Um belo livro, escrito com talento, em tradução notável. Sabor clássico e dizeres latinos misturados com fast food, para encaixar bem no mundo moderno. Considerações repletas de engenho, ironia, e também suspense. Para que aprendamos a não fazer juízos precipitados, para saber que colocar-se no lugar do outro é tarefa hercúlea que requer mais do que ter lido um par de livros sobre empatia e liderança. Um modo atual, divertido e muito feminino de conduzir-nos, no meio de brincadeiras, até o assombro que produz o outro, o ser humano que temos do nosso lado. Uma aventura vital que sempre nos desafia.

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