De olho no Oscar 2019: Pinceladas de um quadro impressionista.
De olho no Oscar 2019:
Pinceladas de um quadro impressionista
faz quase 30 anos, ganhei de um paciente que sabia dos meus gostos cinematográficos, um livro sobre a história dos Oscar. “And the winner is…..Os Bastidores do Oscar”. Aqui está do meu lado, na biblioteca do consultório.
Na época, debrucei-me sobre ele, rememorei grandes filmes, fui atrás de outros que não conhecia mas que tinham sido marcados com o que, naquele tempo, era um aval de qualidade, uma espécie de ISO do Cinema. Mesmo assim, circulavam as histórias daqueles que nunca ligaram muito para o Oscar. Humphrey Bogart que dizia ser o Oscar uma palhaçada, Marlon Brando que mandou uma índia recolher o dele, Woody Allen que tinha compromisso para tocar clarinete na banda de jazz as segundas feiras e nunca comparecia na festa do Oscar (que antigamente era na segunda à noite).
Os tempos mudaram e o Oscar hoje cada vez quer dizer menos, ou quase nada. Qualidade e valores são algo periférico, diante das pressões por conta de ideologias, quotas, designs politicamente corretos, e outros conchavos que desconhecemos. Mas existem. A academia, The Academy, não é o Olimpo dos Deuses, nem muito menos. São muitos os interesses criados, a força das produtoras que são quem corta o bacalhau. Mais está para um sindicato; e embora não se apresente com macacões ou roupa de briga, e sim com vestidos de marca, os que vivemos tempos de governos sindicais conhecemos bem o que há por trás dessa perfumaria fashion. Passadas algumas décadas, dou cada vez mais razão aos inconformados do Oscar que apareciam naquele livro.
No entanto, os holofotes continuam se voltando sobre a estatueta -parecida com um tio de Betty Davis, reza uma lenda- , as pessoas querem saber, e muitos perguntam o que eu tenho a dizer de tudo isto. Não é que a minha opinião seja avalizada -longe dos críticos de plantão, ou das artimanhas da academia- mas como estamos em atmosfera de livre opinião, diria que meu olhar sobre o Oscar é mais um. Caso sirvam as linhas rascunhadas para guiar-se nesse labirinto fílmico, não perder tempo com inutilidades, e levar algo substancial para casa, aí está o meu resumo. Nada sistemático, pinceladas de um quadro impressionista, como costumo dizer quando esboço ideias, para que cada um construa os próprios contornos.
Gostei muito de Green Book: O guia. Uma história bem contada pelo filho do motorista italiano Vallelonga, por tanto inspirada em fatos reais. Atores com presença, óleo e água, não há como misturá-los, mas um aprende do outro. O tempo todo. E se enriquecem. Lembrou-me, em alguma maneira, aquele agradável filme francês, Intouchables, onde se recrutam os recursos humanos não pelo curriculum do já realizado, mas pelas possibilidades que a pessoa encerra, pelo que é capaz de fazer. Toda uma arte e um imenso recado para os departamentos de RH: aprender a descer do pedestal de quem julga baseado em parâmetros (muitas vezes inúteis, seja dito de passagem) para adivinhar as possibilidades do ser humano que bate à sua porta. E arriscar, e aprender com as surpresas.
Vice, outra história real, os bastidores do poder republicano na Casablanca em tempos de Bush Filho. Um Christian Bale enorme -como ator, e por conta dos 30 kg a mais- incarnando Dick Cheney. O melhor resumo do filme está no epígrafe de autor anônimo que surge nos primeiros fotogramas: “Cuidado com o homem tranquilo que observa enquanto os outros falam, e planeja enquanto os demais agem. Quando todos descansam, ele da o golpe”. Impossível não lembrar de Fouché, aquela figura cinza da revolução francesa, magistralmente biografada por Stefan Zweig. Personagens muito bem construídos, uma sinfonia de articulações políticas, e o duo principal Bale- Amy Adams roubando a cena, enchendo a tela. Temática complicada, politicamente incorreta, mas uma aula de interpretação. Um filme necessário.
Spike Lee chega com mais um filme da sua marca: Infiltrado na Klan. Carregado de ironia -nada menos que um negro e um judeu articulando-se com a lendária organização racista. Toques de comédia, boas doses de suspense, e ótimas interpretações com destaque para Adam Driver, ator em clara ascensão profissional e de enorme versatilidade: transita desde Star Wars até o motorista poeta de Paterson.
Dando trela ao tema dos afro americanos (embora Morgan Freeman diz que ele é negro mesmo, que afro-americano é uma piada) aparece Se a Rua Beale Falasse onde valores, família, tragédias e racismo se misturam com o jazz de New Orleans. Entra na corrida do Oscar de raspão, por conta da mãe de família que é um monumento de mulher: não sei se levará a estatueta de coadjuvante, mas é uma mãe que todos gostariam de ter. E ainda na variante, agora afro puro, pois nada tem de americano a não ser o idioma, um concorrente ao melhor filme em forma de quadrinhos falantes: Pantera Negra. Vale lembrar que não é um filme para crianças, mas elas são uma bela desculpa para assistir este Comic cheio de valores: heroísmo, perdão, uso dos talentos pessoais em serviço dos outros. Enfim, tudo aquilo que na boca de gente “adulta” seria piegas, politicamente incorreto. Nada como uma mitologia para dar o recado dos valores imortais. Homero e seus heróis gregos, transportados até o coração da África, para educar-nos com histórias, sensibilizar-nos éticamente com a estética, enfim, uma Paideia africana. Magnífico filme!
Outra variante da equação do Oscar chega com a música: Nasce uma Estrela . Uma história contada inúmeras vezes: Janet Gaynor e Fredric March nos anos 30, Judy Garland e James Mason na década de 50, Barbra Streisand e Kris Kristofferson nos 70. E até daria para incluir o fabuloso filme francês O Artista. Desta vez tudo corre por conta da voz de Lady Gaga, e da sua nariz (quase evocando Barbra Streisand) e de um imenso e dolorido Bradley Cooper no papel de astro decadente ofuscado pela estrela que nasce. Interpretação magnífica. Vale conferir.
Também a música é o ponto forte de Bohemian Rhapsody com uma personificação de Freddie Mercury por conta do ator americano-egípcio que é um perfeito Avatar do astro. Não sei se é um filme, ou um espetáculo musical, ou uma quase-ópera (várias sequencias del bel canto clássico se escutam no filme, um gosto pessoal de Mercury). Em qualquer caso, merece ser visto. E refletido: os mundos complicados da AIDS na década dos 80, o porto seguro que é sempre a família -Mary, Queen (agora reparei na coincidência com a rainha mãe), e o que acontece quando a gente pula fora e se depara com ciúmes e artimanhas femininas turbinadas com testosterona: uma mistura possessiva… e explosiva.
Correndo por fora, atrás de estatuetas pontuais, reaparece após anos de silêncio (pelo menos que eu me lembre) Glenn Close em A Esposa. Silenciosa mas não morta, como neste filme; uma presença contundente, nos bastidores, lembrando-nos o que é sabido: por trás de um grande homem -mesmo sendo prêmio Nobel- sempre tem uma mulher, de envergadura moral imensa. Outra mulher que vai por conta é Melissa McCarthy em Poderia me perdoar, uma história real, onde o melhor é mesmo a interpretação da atriz, versátil e polivalente. E finalmente, o diretor polonês Pawel Pawlikowski que recordamos no comando daquele filme peculiar, Ida, chega com outro cult em branco e negro: Guerra Fria. Uma história de amor, com romantismo, tragédia, cortina de ferro, comunismo e Paris. Tristesse et redemption pour l’amour, voilá. Somente vendo, uma experiência estética.
Chegamos a Roma, o filme de Alfonso Cuarón, badalado e no meio dos holofotes. Assisti e gostei. Muito. Já tinha sintonizado com o diretor mexicano em Gravidade, magnífica narrativa de uma mulher à conquista dela mesma. E as pessoas se perguntam: por que Roma? Roma é um bairro de México DF, como seria para nós a Mooca, por colocar um exemplo. Tudo acontece no ano seguinte à copa do México, o tri do Brasil, nesse bairro onde Cuarón (que teria 10 anos) foi criado. Cleo, a nativa, é o centro do filme: possivelmente um tributo à empregada que ajudo a criar-lhe. O olhar de Cleo ilustra os fotogramas que inevitavelmente evocam Rosselllini, De Sica, e os mestres do neorrealismo italiano num branco e preto, audaz e expressivo. A tomada na praia -que virou cartaz promocional- com todos abraçados a Cleo após resgatar a pequena Sofia, sem saber nadar mas com toneladas de amor, lembrou-me Romulo e Remo juntos mamando da Loba que lhes cuidou, quando Roma, a outra, foi fundada.
As pinceladas impressionistas chegam ao fim. Momento de comentar rapidamente não tanto o filme, mas o desempenho marcante de Willem Dafoe. No Portal da Eternidade o tempo francês do pintor holandês, já no final da sua vida. Uma aula dupla de interpretação: da personagem, e da pintura. “Pinto para não pensar”. Sim, mas ninguém entende -responde alguém. “É a semente, já chegará o momento”. Conhecemos o desenrolar dessa história e onde chegou a semente dos traços do pintor incompreendido.
Alguém -vários, para ser franco- me perguntaram: E La favorita? A mesma pergunta que quem teve paciência de ler até aqui deve estar se fazendo. Não gostei: muito holofote….em cima de vento. Três mulheres com carências patológicas, às voltas com ciúmes e politicagem, numa atmosfera tosca e grosseira. Tremendas atrizes, concedamos o que pode se outorgar, mas um filme que passará sem pena nem gloria. Mas, não é uma história real? -perguntaram-me. Os fatos podem ancorar-se nos compassos decadentes da história britânica, mas o olhar do diretor grego é bifocalmente estrábico: no argumento e na estética. Dispensável, é o meu veredito mais benigno.
Sem receio de errar, sem nenhum afã profético, encerramos as pinceladas cinematográficas. Ás portas da entrega do Oscar, que já quase ninguém tem paciência de assistir madrugada afora. De tudo isto o que fica é sempre a aventura, a experiência quase-fenomenológica do diálogo com os filmes. Conversando com os filmes: esse é o título que estou namorando de um possível próximo livro. Uma experiência estética que nos faz acordar para o humano, nos leva a refletir. Como dizia Frank Capra, diretor que acumulou várias estatuetas embora tampouco ligava muito para elas, “não se pode separar um homem da sua estética e seus transbordamentos artísticos. É expressão dessa pessoa; um parágrafo da sua própria biografia”. Quer dizer, relaxe, pense, desfrute porque afinal …the Oscar goes to you, indeed!