Sebastian Barry: “Os Escritos Secretos”.

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Sebastian Barry: “Os Escritos Secretos”. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 2013. 348 págs.

A tertúlia literária traz sempre surpresas. Há algumas semanas, uma das assistentes ao nosso fórum de pensadores, presenteou-me com este livro. “Talvez possa servir para nossas discussões. Eu gostei muito”. Agradeci, guardei o livro e, pouco depois mergulhei na leitura dos escritos secretos.

Um cenário muito bem construído, uma anciã de quase 100 anos, resgatando a própria memória, enquanto esculpe sua história de vida. Escreve no papel, mas esculpe na alma -na própria e na do leitor- pois é na escrita onde se revela a verdade do vivido, embaçado pelo tempo e pelos sentimentos que agora, com o tempo, decantam com serenidade. “O terror e o sofrimento da minha história ocorreram porque, quando jovem, eu achava que os outros eram os autores da minha felicidade ou do meu infortúnio”.

Este fato, embora simples e conhecido, nunca será suficientemente ressaltado, porque o esquecemos com enorme frequência: escrever o que se passa conosco clarifica a realidade, facilita a compreensão. E isso tem uma aplicação de amplo espectro: desde os diários que confeccionavam nossas avós, até fazer uma lista dos problemas que nos afligem e que parece se dissolvem e perdem importância quando estampados no papel. Como dizia um amigo professor: quando falamos nos tornamos claros para os outros, mas na hora de escrever, nos fazemos claros para nos mesmos!

Na tertúlia, ao agrado geral que o livro provocou, também despertaram momentos de indignação pela vida que a protagonista tinha vivido. Deve ser, como ela mesmo diz, “Essa estranha responsabilidade que sentimos para com os outros quando falam de oferecer-lhes o consolo de alguma resposta. Pobres humanos!” Mas eis que alguém, acertadamente, comentou que ela não parecia estar sofrendo tudo isso, nem guardava mágoa alguma. Bela advertência que nos traz de volta à serenidade, perspectiva real, de quem escreve a própria história, e calibra os detalhes que lhe passaram desapercebidos no seu momento, e o balanço real da vida, sem as emoções tóxicas do momento. “Descuidamos das pequenas frases da vida e agora as grandes estão fora do nosso alcance.   (…) Senti falta da intimidade desta escrita (…) É sempre útil listar a felicidade, há tanto de seu oposto na vida que é melhor apontar os indicadores de felicidade enquanto se pode (…) O reconfortante é que a história do mundo tem tanta dor que minhas pequenas dores ficam de fora, são meras cinzas no canto da lareira. Apesar de uma mente no auge do sofrimento parecer preencher o mundo, isso não passa de ilusão”.

No livro não há narrador que coloque lenha na fogueira, apenas histórias, retalhos do diário. Que na verdade são dois diários: o da Rose, e o do médico que cuida dela, o Dr. Grene, que em palavras da anciã, tem “o encanto de não ter um pingo de humor, o que faz dele um tanto cômico. Acredite, essa é uma qualidade a ser estimada neste local”. Dois diários num mano a mano, sem diálogo entre eles, apenas conversando consigo mesmo, em reflexão facilitada pela escrita.

Anota o médico: “Porque estava eu investigando? A verdade é que essa busca se tornou um grande consolo (…) Não tenho sido capaz de superar esse sentimento de tentar excluir criaturas sob meus cuidados, que não vão prosperar longe de mim. Tenho o costume verdadeiramente estúpido de ser paternal com meus pacientes, até maternal. (…) A confiança dos mais necessitados é um trabalho que redime. (..) Descubro trapos e farrapos do tecido que sou, preciso mais e mais deste lugar”. Um homem sofrido, que embrulha o seu remorso para com a esposa, com poesia e lirismo: “Sou um homem inadequado, traidor, incapaz de afeto? Eu não conhecia ela, mas ainda por alguns minutos tive um pouco da sua força, seu encanto, sua integridade. Que sentimento maravilhoso. (….)”

Rose, tremendamente feminina chegando a um século de existência, ainda aflorando juventude na alma: “Essa é a magia das meninas, transformar simples barro em amplas e excelentes ideias”. As lembranças da juventude, em primorosas descrições: “Algumas dessas damas pareciam verdadeiras galinhas no quintal, a maneira como se sentavam à mesa, o papo e a fofoca brotando delas como a poeira que sobe depois da passagem de uma caravana de camelos pelo deserto. Algumas eram mulheres maravilhosas e brilhantes, que nós, o pelotão das garçonetes, amávamos e ficávamos contentes em servi-las. (…) Nós, um amontoado  de mocinhas da cidade, nos precipitávamos para o salão de dança, como uma torrente de rosas pelas lúgubres estradas….A montanha derramava seus filhos e filhas como uma estranha avalanche. Humanidade adorável (…) Era no cinema que se podia olhar em volta e ver aquele olhar arrebatado no rosto as pessoas….Uma multidão sufocante, toda aquela gente diferente, príncipes e mendigos unidos pelo encantamento”. E dos complicados conflitos nacionais, entremeados com esse amor tão peculiar pela pátria que está enraizado no povo Irlandês: “Como vamos comprar jazigos se estamos lutando pela República Irlandesa? A Irlanda inteira é o nosso jazigo (…) Enterramos ou cremamos os mortos porque queremos separar sua materialidade de nosso amor e nossas lembranças”

E, sempre presente, a lembrança do pai. Quem me deu o livro e sugeriu a leitura estava presente; foi o momento de intervir: “Para mim, a história dela transpira a força que conseguiu do pai. O berço que nos educa e nos forma. Esse é o grande ensinamento do livro”. O pai que fez dela a mulher que, agora madura e serena, emerge nos escritos. Um homem com enorme capacidade de adaptação, de bem com a vida, transpirando otimismo. “Como me lembro bem o dia em que meu pai foi dispensado do cemitério, um homem vivo exilado dos mortos”.

Qual é a verdadeira história? Quem está dizendo a verdade? Pergunta que paira na cabeça do leitor, no clima da tertúlia. Pergunta que não busca respostas, porque a verdade dos fatos está sempre temperada pela vivência de quem os viveu e, mais ainda, melhor delineada com o passar do tempo somado ao esforço de relatá-los a si mesmo. “Tinham escrito histórias erradas, ou que competiam entre si mas que ambos, cada qual de sua humana maneira, tinham escritos relatos verdadeiros, e que de ambas possam ser retiradas verdades úteis, e a veracidade dos fatos reais”. O tempo não deforma as vivências, mas as ilumina, vem a dizer Rose: “É muito difícil ser herói sem plateia embora, em certo sentido, sejamos cada qual herói de um filme, singular e um tanto arruinado, chamado vida (…) Nós nunca ficamos velhos para nós mesmos. Sou suficientemente velha para saber que a passagem do tempo é uma fraude, uma conveniência”.

Sofrimento, injustiças, julgar os outros e outros tempos com nossas lentes modernas e adaptadas ao nosso olhar de hoje? Ingenuidade histórica, por sinal, frequentemente repetida. Novo recado de Rose: “A moralidade tem suas próprias guerras civis, que fazem suas próprias vítimas ao longo do  tempo e de lugares próprios”. E, o Dr. Grene oferecendo-nos a atitude real de acolhimento para as histórias que nos chegam do próximo: “Colocou a mão no meu ombro, um gesto extremamente simples, mas que me ajudou muito mais do que se eu fosse presenteado com um império só para mim”. Às vezes, muitas vezes, o melhor modo de ajudar não é buscar soluções, nem justificativas, nem vinganças de afrontas passadas: é apenas escutar, colocar a mão no ombro, e sorrir compreensivamente. Belíssimo propósito para incorporar na nossa atitude de convivência diária. Vale experimentar e ver que faz toda a diferença.

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