Manuel Antonio de Almeida: Memorias de um Sargento de Milícias

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Manuel Antonio de Almeida: Memorias de um Sargento de Milícias. Ed Objetivo. São Paulo, 1998. 203 págs.

Animado pelos comentários de um amigo, professor de literatura, aventurei-me na leitura deste clássico. Consegui um exemplar que, pelo feitio e pela editora, entendi tratar-se de um edição para preparar o vestibular. Lembrei-me então do comentário de outro amigo, grande leitor e de vasta cultura, que dizia ser um desserviço mandar ler os clássicos  a toque de caixa, com vistas a passar num exame, ou para preencher o programa docente. Conforme avançava pelas páginas entendi ainda melhor essa afirmação. Pois a força de um clássico, não é apenas o que se conta, mas o modo como se conta; e isso tem de ser degustado, saboreado, não apenas engolido com vistas a uma nutrição muito questionável.

As memórias do tal sargento, que propriamente nunca chegou a ser tal, evocam de fato a novela picaresca espanhola -como bem se adverte no prólogo- com a diferença que esta data do século XV-XVI , e a obra que nos ocupa situa-se no século XIX. Os dizeres são outros, e o argumento -todo ele- ancora-se na forma descritiva que é o ponto alto do livro. Os fatos são corriqueiros; a substância corre por conta da forma.

A descrição da personagem é precisa e sugestiva, já desde a terna infância: “Era além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas”. E assim continua até o final: “És um vira-mundo; andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira, sem ofício nem benefício, sendo pesado a todos nesta vida (…) O agregado, refinado vadio, era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar, que lhe participava da seiva sem ajudá-la a dar os frutos”

O padrinho –“uma alma de santo num corpo de pecador”- não poupa esforços para educar o protagonista: “Não quero que me roubem o gosto de tê-lo feito gente! (…) Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola”. Enquanto o pai sucumbe, uma e outra vez, às aventuras amorosas: “Das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado, mas o homem era romântico, como se diz hoje, e também bobão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha”. E de tal pai, tal filho como afirma o escritor: “Já vem os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir com facilidade”

O livro me enganchou, insisto, pelo modo como narra, mais do que pelos argumentos  (que são os que se tentam resumir para passar no tal exame, um verdadeiro desperdiço). Por exemplo, a forma como ressalta os conflitos de gerações, uma constante do ser humano: “Dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora”. Ou a descrição das fofocas e mexericos, sempre presentes nos romances de costumes: “A mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia”.

E as brigas onde todos falam e ninguém escuta: “Todos falam a um tempo, esforçando-se cada um por falar mais alto do que todos os outros; ninguém parece atender às desculpas que se apresentam nem às recriminações que se fazem (…) Tudo enfim se diz, e nada se consegue; a briga dura muitas horas ao termo das quais os contendores, fatigatis sed nos saciatis , abandonam o campo, ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a princípio”. E a descrição de atitudes de modo preciso, com sabor clássico: “Afinal cismou um pouco e murmurou um -que me importa!- que pretendia ser desprezo, e que não era senão despeito (…) Votava ao seu marido uma enorme indiferença, que é talvez o pior de todos os ódios”.

Sem deixar de lado a sabedoria que ilustra a vertente boa das relações humanas: “Não há nada que mais sirva para fazer nascer a amizade, e mesmo a intimidade, do que seja o riso e as lágrimas: aqueles que se riram, e principalmente aqueles que uma vez choraram juntos, têm muita facilidade em fazerem-se amigos”.

Enfim, um livro para degustar em leitura pausada, apreciando a forma, precisa e elegante, que enriquece o modo de falar -tão necessário nestes tempos de espasmos comunicativos saturados de emoticons!- e melhora a capacidade de dialogar, enriquecendo o vocabulário, aquilatando a cultura.

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