Leo Pessini: a Bioética da Amizade
No dia 24 de julho, a Ordem dos Ministros de Enfermos, os Camilianos, perdeu o Superior Geral em exercício. A Bioética brasileira perdeu uma das figuras mais proeminentes das últimas décadas. E eu perdi um grande amigo. Uma amizade de quase 40 anos, que teve início na década de 80, quando o padre Leocir Pessini iniciava sua caminhada como capelão do Hospital das Clínicas enquanto eu era um médico recém-formado. Brincávamos entre nós, os recém-graduados, que eu era o R1 (em referência ao primeiro ano de residência médica) e ele era o P1, porque acabava de se ordenar sacerdote.
Nos encontrávamos com frequência nos corredores do HC, na capela do décimo primeiro andar – que, por sinal, tinha pinturas de Fúlvio Pennacchi, que coincidentemente acabaria sendo meu paciente anos depois, até seus últimos momentos de vida. Vários colegas da minha turma ainda se lembram dos “pedidos de consulta” que fazíamos ao Pe. Leo para atender espiritualmente nossos pacientes ou conceder a Unção dos Enfermos. Junto com o entusiasmo por exercer a profissão, o hábito de chamar o capelão foi uma “moda que pegou” entre os jovens médicos. Muitas histórias emblemáticas acodem à memória. O paciente que melhorou depois da Unção e que alguém sugeriu ministrar a cada 12 horas… Ou aquele colega que professava um ateísmo formal e mandou chamar o capelão de madrugada, porque o paciente assim o desejava. Diante da expressão de surpresa da enfermeira, o médico explicou: “Sou ateu, sim, mas o paciente não tem nada a ver com isso”.
Poucos anos depois, o Pe. Leo ficou conhecido em todo o Brasil. O Presidente de República recém-eleito, Tancredo Neves, foi trasladado ao Hospital das Clínicas, onde acabaria falecendo semanas depois. Os telejornais acompanharam o longo desfecho da doença, as declarações dos médicos, as taxas diárias de leucócitos e, naturalmente, a figura daquele jovem capelão que atendia o Presidente e a família. Anos depois, num almoço, Leo comentou: “Eu tinha pouco mais de 30 anos e a situação caiu em minhas mãos. Fui várias vezes tomar lanche com D. Paulo Evaristo, que foi quem me ordenou sacerdote, para me aconselhar, pois a pressão da mídia era grande. Ele me disse: Leo, limite-se ao âmbito espiritual, não entre nas fofocas. Foi ótimo, porque teve até jornalista estrangeiro que me ofereceu bastante dinheiro para tirar umas fotos do Tancredo. Eu respondi: sou o capelão, não o fotógrafo. E tenho silêncio de ofício”. Penso que foi nesses momentos, na prolongada agonia de Tancredo, e nos desafios éticos, que o germe do gosto pela Bioética começou a deitar raízes em seu coração.
O tempo passou, nossos caminhos nos distanciaram, mas vez por outra nos encontrávamos para renovar nossos sonhos de fazer uma medicina melhor, de injetar humanismo nos cuidados da saúde – que parecia enveredar por caminhos de esquecimento do principal protagonista: o paciente. Certa vez nos encontramos no aeroporto de São Paulo. Pe. Leo me disse: “Estou indo a Brasília. Vamos abrir uma faculdade de medicina”. Com olhar de surpresa, comentei algo que os acadêmicos e as entidades representadoras de classe costumam sublinhar repetidamente: “Estão abrindo faculdades de medicina no Brasil sem qualquer critério”. Ele concordou, mas acrescentou: “Sim, mas se alguém tem o direito de abrir uma somos nós, os Camilianos, que temos uma história de 80 anos de cuidados na saúde no Brasil e mais de 40 hospitais funcionando. Não é um capricho, mas um dever”. Argumento definitivo, audaz e até profético. Na época dessa conversa, as escolas de medicina no Brasil eram pouco mais de 100; hoje chegamos a 350 e, certamente, a maioria não tem a competência educacional que o Pe. Leo vislumbrava, à frente já da Instituição Camiliana.
Alguns anos depois, perguntei: “Leo, agora tem a faculdade de medicina, além de um Centro Universitário de excelência para formar profissionais da saúde. Como conseguirá que os alunos de medicina entrem em seus hospitais? Quer dizer, que vejam os pacientes que vocês atendem?”. Pe. Leo respondeu, com um sorriso nos lábios: “Juntar educação e assistência no mesmo cenário é um grande desafio. Teremos de convencer uns e outros”. E a seguir disparou: “E se você fosse o diretor da nossa faculdade de medicina?”. Diante desse xeque-mate, sorri de volta e respondi: “Você e eu sabemos que essa articulação não depende somente de nós – que somos amigos há mais de 30 anos. Se assumo um cargo de direção na sua instituição, temo que em duas semanas podemos nos desentender. Vamos continuar tomando café, e colocando os sonhos para rodar”. Nisso, com um tapinha em meu ombro, ele fechou a questão: “Tem razão, melhor você ficar onde está. Você é um outsider. Atrelar-se a uma faculdade vai te engessar. Melhor continuar desse jeito e assim conseguirá trabalhar com todas”.
Posteriormente, as novas e muitas obrigações o afastaram do cenário acadêmico. Mas sempre estava atento às oportunidades de melhora. Certa vez, nos encontramos num congresso de Bioética no México. Pe. Leo estava do meu lado quando uma professora do nosso grupo de educação médica apresentou os resultados iniciais da sua pesquisa sobre a erosão da empatia nos estudantes de medicina. Nisso, Leo sussurrou um comentário durante a apresentação: “Ela está dizendo que os estudantes saem pior do que entram. É isso mesmo?” Assenti com a cabeça. “Isso me interessa muito. Quero saber se na nossa faculdade é assim”. Apresentei-lhe a professora e pouco depois abriu caminho para completar a pesquisa na Instituição Camiliana. Naturalmente, o Pe. Leo integrou a banca quando a Tese Doutoral foi apresentada. Magnífico.
O Pe. Leo Pessini se dava bem com todos, abria portas e possibilidades, empurrava a sonhar. Era alguém sempre disposto a ouvir. Não que concordasse com todos, mas ouvia a todos – e às vezes colocava os pingos nos is. Uma vez, me disse: “Tive que pedir a um professor que saísse da instituição. Estava num relacionamento quase escandaloso com uma outra professora. Eu adverti: ‘Não tenho nada a ver com a sua vida, mas aqui, na minha instituição, o senhor poderá entender que não posso assistir passivamente a esta situação amplamente comentada. O que o senhor faria no meu lugar?’”. Pagou todos os direitos, incluiu uma generosa indenização, mas não colocou água no vinho, mantendo o carisma da instituição. Lembrei-me, na ocasião, de um grande amigo judeu que estudou em Loyola, a Faculdade de Medicina que os Jesuítas têm em Chicago. “Se você vai a Loyola, já sabes o que vás encontrar. Podes concordar ou não com as regras. Mas é ingenuidade tentar mudá-las”.
Escritor prolífico, Pe. Leo é autor de inúmeros livros e estudos que revelam sua preocupação com a Bioética. Cada vez que nos encontrávamos, me presenteava com suas últimas obras. Sempre com dedicatórias que transmitiam otimismo, empurravam a ser melhor. Com estima, dedicava-me as obras: “Ao amigo das sendas da bioética, no serviço da vida cuidando samaritanamente dos doentes e ensinando as pessoas a cuidarem bem da saúde, buscando certezas num mundo de incertezas, sempre juntos no desafio da vida”. O último livro entregou-me três semanas antes do seu falecimento, quando o visitei pela última vez: “São reflexões dirigidas à tribo interna, aos Camilianos. Assim, caso me aconteça alguma coisa, deixo isto a modo de testamento”.
Viajante incansável, quando Geral da Ordem visitou mais de 40 países nos últimos anos para animar a comunidade. Chegavam-me mensagens de celular ou e-mails do Quênia, do Vietnã, da Índia, de todos os países da América Latina, do Canadá, de alguma ilha da Indonésia – onde encontrou o seminário camiliano com centenas de seminaristas. Transpirava felicidade vendo seus coirmãos trabalhar sob o carisma de S. Camilo, que “desejava ter mil braços para cuidar da vida sofrida e ameaçada”. Mas tinha tempo para escrever, para atender os amigos e os milhares de contatos espalhados pelo mundo. Certa ocasião, contei a ele sobre um convite para dar uma conferência na Rússia, em Moscou e St. Petersburgo. Bastou isso para que mandasse até mim, pelos Correios, o livro de Henry Nouwen: O Regresso do Filho Pródigo: Meditações sobre um quadro de Rembrandt. “Leia o livro antes de ver o quadro no Museu de L’Hermitage”, me disse no bilhete que acompanhava o livro com dedicatória. No museu fiz uma foto e mandei para ele: “Não pensei que era tão grande”. Mesmo sem nunca ter estado lá, Leo se preocupou comigo, quis que desfrutasse também espiritualmente da contemplação da obra do pintor holandês. Amigo ímpar.
Demostrava serenidade e otimismo até mesmo quando as coisas não saíam como ele tinha previsto, como todos gostaríamos. Recordo quando o visitei em Roma, de volta de um Congresso de Bioética em Singapura. Eu estava incomodado com as discussões que se perdiam nas teorias e não chegavam na pessoa. “Leo, tem gente que vive da Bioética e nunca viu um doente na vida. Precisamos da bioética da aspirina, do dia a dia, do sorriso e carinho para quem sofre, sem nos distrair com problemas globais que, sendo importantes, nos dispensam do compromisso do cuidado diário. A ética da trincheira, como dizia um amigo comum, que é a que nos toca viver de madrugada, na emergência, quando ‘os especialistas’ estão dormindo confortavelmente”. Em resposta, Pe. Leo sorriu mais uma vez e tirou importância: “Neste campo, meu amigo, tem de tudo. Mas não estamos mais em idade de perder a serenidade. Faça sua parte, e se mostre otimista. Não estrague o bom sabor de boca por bobagens. A serenidade é uma necessidade para você hoje”.
Já nos últimos meses, quando estava em tratamento da doença, sempre incluía nas suas mensagens essa dimensão de paz: “Eu sigo na rotina terapêutica sem novidades. Final de janeiro veremos nova avaliação. Lendo, meditando, rezando, dormindo, escrevendo… Enfim, tornando o ‘novo tempo’ interessante! Avante com serenidade, fé e esperança”. Houve até uma mensagem que ele me enviou por engano, porque estava dirigida ao seu médico. Poucos minutos depois mandou explicação: “Desculpe, errei de endereço… Mas, afinal, você é meu médico espiritual”.
Quando publiquei um livro sobre a Humanização da Medicina, fez questão de escrever o Prefácio. Eram momentos difíceis para ele, que acabava de perder um irmão num acidente. Mesmo assim, leu para mim as palavras que tinha dito na Missa de funeral. Dias depois encaminhou para mim o Prefácio, para ver se o aprovava. Fiquei comovido e estimulado. Esse estímulo de que precisamos para continuar no caminho que por vezes se apresenta árduo, nublado, quase estéril. Falava da nossa amizade e me chamava “um romântico incorrigível, de militância apaixonada pela Humanização da Saúde”. Na verdade, era ele, Leo Pessini, o otimista incorrigível, que se esforçava por tirar das pessoas a melhor versão delas mesmas.
No funeral do Pe. Leo, presidido pelo Cardeal Arcebispo de S. Paulo, cerimônia concelebrada por outros quatro Bispos e dezenas de sacerdotes camilianos, tive oportunidade de estar com a família Pessini e comentei alguns dos fatos que aqui relato. As palavras do Cardeal, no vácuo da lembrança do Pe. Leo, instigaram a todos os presentes a refletir o que estamos fazendo com nossas vidas. “Gastar a vida pensando em nós, ou, como aprendemos com o Pe. Leocir, a cuidar e ocupar-se dos outros? Daqueles que são pequenos, que parecem de segunda categoria, dos idosos e doentes, dos que o Papa Francisco diz que na cultura de hoje parecem ser descartáveis?”. E não faltou a lembrança do carisma Camiliano, de ministros de enfermos: “Ministro é aquele que serve (do latim, ministrare)”. Uma consideração oportuníssima, que vai além da semântica, para os momentos atuais: ministro é quem serve!
Numa viagem em que passei por Roma, estivemos juntos em Assis. A mensagem dizia: “Consigo escapar um dia, e vamos nos reciclar junto ao Poverello de Assis, e respirar o ar da Porciúncula”. Foi mesmo uma viagem inesquecível, onde fez questão de mostrar-me todos os recantos e raízes da espiritualidade franciscana. No mosteiro de S. Damião, onde Francisco escutou o apelo do crucifixo para reedificar a sua Igreja, Leo comprou e me deu de presente uma reprodução do Cântico das Criaturas. “Para ajudar na tua serenidade”, comentou. Volto agora a reler aquele pergaminho emoldurado, e saltam essas palavras que, certamente, são um bom resumo da vida de Leo Pessini: “Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor/ e suportam enfermidades e tribulações/ Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz, pois por ti, Altíssimo, serão coroados”.
Essa era a Bioética na qual militava apaixonadamente Leo Pessini. Uma ética que contemplava o global, que buscava os caminhos certos nos tempos de incerteza, e que chegava ao coração das pessoas, porque passava pelo Coração de Deus. Uma bioética da amizade!
*Pablo González Blasco é Doutor em Medicina e diretor científico e fundador da SOBRAMFA – Educação Médica & Humanismo, www.sobramfa.com.br
Comments 1
Memorable trabajo de Pablo González Blasco en homenaje a un gran y entrañable personaje de la salud en Iberomérica: Leo Pessini.
Gracias por enviar esta magnífica reflexión.