La casa de Papel: a surpreendente imprevisibilidade do fator humano.

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[:PT]Criada por: Alex Pina.  Úrsula CorberóItziar ItuñoÁlvaro Morte, Pedro Alonso, Alba Flores, Miguel Herrán, Jaime Lorente, Paco Tous, Darko Peric.

Já falei várias vezes,  aqui e em outras ocasiões: as séries são terreno onde não me manejo bem. Minha praia são filmes, garimpados, recomendados por referências confiáveis, e que têm começo, meio e fim. Talvez seja pelo meu viés educacional, uma lente que filtra os recados que o celuloide destila. Mas reconheço que fiz algumas exceções, e acabei bisbilhotando alguma série  e até escrevi sobre os aprendizados.

Desta vez foi por insistência de amigos, pacientes, conhecidos. “Como você não assistiu essa série? É espanhola. Muito original. Uns sujeitos que planejam um assalto à fábrica da moeda em Madrid!”. O apelo do cenário dos meus anos moços, acrescido da insistência, fizeram-me capitular. E lá fui eu ver o assalto-roubo do século… e me deparei com uma fenomenologia das variáveis do fator humano!

Entrar no argumento -o que nunca faço- é neste caso supérfluo. Porque a trama é transparente e facilmente resumível: um planejamento perfeito de um golpe de milhares de Euros….sem lesar ninguém. Não é propriamente roubo, mas produção independente, injeção de liquidez, por usar o eufemismo dos bancos europeus. Os diversos capítulos são um tutorial para chegar lá. Mas, e aqui está o núcleo que motiva estas linhas, o manual tem tudo previsto….salvo o funcionamento vital do ser humano!

O cérebro do golpe, conhecido como Professor, estuda com minúcia até os últimos detalhes, as variações técnicas possíveis, as reações protocolares da polícia e dos órgãos governamentais. Previsão inverossímil, que faz surgir em cena desde instrumentos sofisticados, até comportamentos que se articulam magnificamente, racionalmente, para despistar o adversário. Altíssima competência, anos matutando o golpe. Mas quando chegamos no fundo do ser humano, a surpresa nos espera na moita e nos recantos da consciência.

Talvez porque desconfia da imprevisibilidade desse fator humano, o Professor faz a gangue conviver durante meses. A desculpa é o planejamento técnico, mas na verdade é uma tentativa de expor cada um deles aos desafios que o convívio com os outros vai trazer. Como esses cursos de imersão que se fazem nas empresas, mas com jogo pesado. Uma tentativa para conhecer as reações, as fortalezas e debilidades, as prioridades e os desejos que cada um encerra, como fruto da própria história de vida. E, sem dúvida, fomentar o conhecimento próprio, que se consegue mediante a reflexão que avalia as respostas diante dos desafios. Uma variante do que corporativamente denominamos SWOT Análise, neste caso, de profundidade existencial.

Mesmo assim, estudioso que é do comportamento humano, o líder sente-se obrigado a estabelecer as normas: “Proibidas as relações pessoais! Nem nomes, nem biografias. Seremos cidades, esse é o nosso nome de guerra”. A norma é clara, mas todos sabemos -eles também, o professor o primeiro- que não vai funcionar. A convivência humana não é asséptica: surgem atritos, encantos, decepções, e fascínios. A vida vivida e sofrida por cada um é pauta da qual é impossível fugir. É justamente esse parafuso solto, a norma impossível de implementar, a que dá animação a toda a trama na Casa de Papel. O resto é detalhe; a novidade -e as surpresas, enormes- surgem sempre das relações humanas, do imprevisível.

Quantas vezes ouvimos dizer -sem acreditar o mais mínimo- que é preciso deixar os problemas pessoais na porta, antes de entrar no trabalho! Ou na instituição educacional, porque também os formadores acadêmicos não querem saber da vida de cada um. Lá está o curriculum, os conteúdos, as competências que têm de ser ensinadas, sem contemplar as variações que cada um carrega. Tremendo engano, nunca funciona. Não importa tanto o que se fala, ou o que se quer ensinar -comentava Ortega- mas com quem se está falando. O conteúdo, as normas, são dóceis, vêm prontas de fábrica. O desafio está em adaptar normas e conteúdos àquela pessoa concreta.

“Uma coisa é colocar ideias arranjadas -diz o jagunço de Guimarães Rosa em Grande Sertão- e outra lidar com país de carne, sangue e mil e tantas misérias”. Ao invés de pretender ignorar o personalismo conflitante de cada ser humano -dilemas, emoções, problemas, sonhos- não seria mais lógico admitir que tudo isso faz parte do desafio? Na empresa, na educação, e até num assalto ao banco? Sim, mas como incorporar sem ter o controle? Essa é a questão.

Um grande amigo que trabalha há décadas com certificações na saúde falou-me das várias ondas de qualidade. Existe a primeira onda que é claramente tecnológica. O progresso técnico é inegável e toca agradecer. Quando eu me formei há quase quarenta anos, a maioria dos pacientes com leucemia morriam; hoje é possível curar a muitos. Sem falar das cirurgias cardíacas que são cada vez mais escassas, visto a habilidade das técnicas para colocar stents aqui e acolá. E, os prontuários eletrônicos, que evitam trocar o medicamento administrando-o ao paciente equivocado, e contornam a insofrível caligrafia que temos os médicos (ao menos, os que ainda escrevemos, coisa cada vez mais incomum, é raro encontrar alguém carregando uma caneta).

A segunda onda vem representada pelos processos. Protocolos e códigos de alerta, o caminho das pedras bem delimitado que evita criatividades incompetentes, dificulta comodismos, aumenta a segurança. Sem crachá, foto e digital não há como entrar num hospital. Ou mesmo, como sair. Lembro-me de uma ocasião recente, onde seguindo os protocolos alcancei a chegar na UTI para ver um paciente mas, por algum motivo, bloquearam-me a saída. Senti-me Leonardo di Caprio na Ilha do medo, e pedi ajuda à enfermeira: “Estou no meio de uma experiência Scorsese. Consegui entrar mas não consigo sair. Pode me ajudar?”.

A terceira onda -seguindo o raciocínio do meu amigo- seria a que atinge a pessoa e a transforma. A pessoa como um todo -cabeça, habilidades, conhecimento, emoções, atitudes. Quer dizer, uma onde educativa e formadora. E, pelos motivos antes comentados, aqui está tudo por fazer. Os projetos de humanização da saúde -ocupação na qual estou embrenhado há várias décadas- acabam ficando na periferia do problema. No entorno, na hotelaria, na maquiagem. Mas não chegam na pessoa -que é o núcleo de qualquer processo humanizante- porque simplesmente não sabem como fazê-lo. A pessoa é imprevisível, e as atitudes -compromisso, dedicação, integridade ou canalhice- não sabemos como medir. Pelo menos, ignoramos como traduzir em algoritmos….ou em aplicativos, que parece ser hoje o padrão da verdade.

O mundo dos imprevistos que procedem do sangue, carne e mil e tantas misérias, são parâmetros importantes para decisões na vida. Lembro de uma conversa que tive com uma sobrinha há algum tempo. Inclinava-se por fazer medicina -o que de fato se concretizou- mas tinha dúvidas. Ocorreu-me colocar-lhe uma questão que me pareceu poderia ajudar. “Você tem que pensar onde estás confortável. Num cenário de imprevistos -como nos acontece aos médicos, ou à tua mãe que é professora- ou num cenário de temas previstos, porque as surpresas não teriam vez, como com teu pai que é engenheiro aeronáutico? Daí você decide. Essa é a grande pergunta para escolher uma profissão…..Não se você gosta de biologia, ou matemática, ou de história da arte”.

Reconheço que o conselho foi de bate pronto, sem grandes elaborações. Mas com o passar do tempo, o tenho utilizado para orientar os jovens que se aventuram na vida profissional. Há quem se sente confortável contando com os imprevistos que farão parte da sua vida; para outros, a imprevisibilidade lhes faz sentir-se sem chão. É uma boa baliza para escolher a carreira, programar a vida. Sempre que se incorpore o conhecimento próprio, aquele que se descortina não na teoria, em cursos de temperamento e auto ajuda, mas na vida como ela é.

As teorias são recursos mas não garantia. Recentemente escutei de uma estudiosa da educação médica, que é preciso aprender a encaixar os feedback -os retornos formadores- que nos chegam na trincheira do aprendizado, para o qual é imprescindível a humildade. Sem humildade não há capacidade de absorver os aprendizados; abandona-se a qualidade de esponja, para tornar-se impermeável. Sem humildade -que é a verdade, em palavras de Teresa de Ávila, outra enorme educadora em tempos carentes de scores para mensurar- não se consegue reconhecer defeitos e limitações, in natura, sem querer justificar-se, desejando crescer e aprender.

Longe fomos com as reflexões em volta de La Casa de Papel. Resultou aqui um ensaio antropológico, disparado por uma série televisiva que é um curioso sanduiche: pão de grife por fora, com tecnologia do ladrão moderno; e, no interior, uma avalanche da fenomenologia surpreendente do ser humano que, por acaso, tem papel de malandro. Essa é a liga que nos faz torcer pelos “maus da história”. Não apenas uma questão de crítica à corrupção política –‘já não sei quem são os maus’, diz a Inspectora enquanto se metamorfoseia em Lisboa- mas o inevitável gancho que o fator humano carrega, e nos envolve.

O embrulho é visualmente notável, os flashbacks são constantes -às vezes repetitivos, é preciso espremer os atores ao máximo- e o linguajar deixa a desejar. O eufemismo da tradução -imagino- deve suavizar o impacto desagradável que produz a enxurrada de palavrões e grosserias  que ao ouvido da língua materna resultam em dissonâncias incomodas. Uma pena: mulheres lindas….que cheiram mal! Foi a impressão que tive em muitos momentos, além de lembrar da minha avó e madrinha que em situações análogas dizia ser linguagem de verduleira, (feirante semianalfabeta) ou de camionero (motorista de caminhão ). Fosse viva – a minha avó- teríamos que sugerir mudasse as comparações para não ofender ninguém, neste mundo de qualidade e de protocolos. Embora duvido que entendesse os motivos, logo ela que ficou viúva na guerra civil espanhola, e teve que criar quatro filhos jogando em todas as posições. Grande mulher!

Mudaremos as comparações, nos situaremos na semântica politicamente correta, mas as profundezas da pessoa -da tal natureza humana da qual pouco se fala, talvez por regras de boas maneiras acordes com a nova sensibilidade- essa está lá, nos esperando, no fundo da consciência de cada um. Dos heróis, dos santos, dos bandidos, dos atracadores de banco. De cada um de nós. Atentos aos imprevistos, essa é a palavra-chave. Em primeiro lugar, aos que surgem do nosso interior: um plano difícil de prever, mas que é imperioso contemplar. Se houver dúvidas sobre esse risco, é só perguntar ao Professor!

 

 

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