Bento XVI “O Último Testamento. Uma conversa com Peter Seewald”.
Bento XVI “O Último Testamento. Uma conversa com Peter Seewald”. Planeta. São Paulo, 2017. 287 pgs.
Eis um belo livro, escrito em formato jornalístico de entrevista, que nos adentra no pensamento do Professor Ratzinger, hoje o Papa Emérito Bento XVI. Perguntas do jornalista alemão que é já um interlocutor consagrado do Papa por obras anteriores, e respostas de Bento XVI. As perguntas são acertadíssimas, o que me faz desconfiar que o papel do Papa Bento nesta obra vai além das respostas, tornando-se presente na mesma densidade das questões colocadas.
Peter Seewald centra o tema na Introdução. O Cardeal Ratzinger protegeu, como verdadeiro muro de contenção, a João Paulo II durante um quarto de século e por isso aguenta muitas pancadas. Sente como sua missão a tarefa de defender o cristianismo contra a reavaliação de valores também no âmbito argumentativo. Tudo isso foi definitivo para o seu pensamento, para toda sua obra. Por isso, já como Bento XVI afirma com serenidade: “Quando um Papa recebe apenas aplausos o tempo todo, precisa se perguntar se fez algo de errado. Neste mundo a mensagem de Cristo é um escândalo. O Papa sempre será sinal de contradição”.
Teólogo e professor, Ratzinger afirma que a Teologia é a reflexão sobre o que nos foi previamente dito, previamente pensado por Deus. E nesse esforço reflexivo é normal apalpar as próprias limitações: “Quando não compreendo algo, não é porque seja errado, mas porque sou pequeno demais para compreender”. Um estudioso, escritor prolífico, também no âmbito epistolar: conservam-se 30 mil cartas dele antes da sua nomeação como Bispo. Lembrei do Cardeal Newman -de quem também se guardam outras 30 mil cartas (fazia cópia da maioria delas, antes de enviá-las)- personagem que intuo é santo de especial devoção do Professor Ratzinger. Não à toa, Bento XVI deslocou-se até a Inglaterra para conduzir a beatificação de Newman pessoalmente.
O livro, embora dividido em capítulos, mistura os assuntos de modo dinâmico, sem respeitar cronologias ou temas fechados. Traça-se assim um perfil interessante de Bento XVI, com a suas próprias palavras, como se lê em baixo do título. E nesse amplo espectro, iluminam-se passagens e situações desde a infância e a descoberta da vocação até o momento da renúncia como Papa, em Fevereiro de 2013.
Lembranças e fatos da juventude e da família. “É verdade que traduzia textos eclesiásticos do grego e do latim com 14 anos, mas era como brincadeira. Na verdade não tenho fluência em idiomas (…) O meu pai cuidava bastante para que estudássemos e fossemos corretos. Alegrava-se pelo fato de querermos ser sacerdotes Era um homem simples, e realmente piedoso. Queria que os três filhos tirassem a carta de motorista, mas nenhum tirou. Nunca dirigi”. E peculiaridades interessantes que fazem entrever a personagem por trás do professor teólogo: “Sempre preciso de um sofá por perto. Escrevo a lápis, desde criança, tem a vantagem de que se pode apaga-lo. Também como Papa, assim escrevi os livros sobre Jesús. Quando escrevo a tinta, o que escrevi está escrito. E escrevo com estenografia, porque do contrário precisaria muito tempo para alinhavar as ideias”.
O jornalista é incisivo na perguntas: A ditadura nazista marcou sua obra? “Sim, o mito germânico, o teutonismo representava o que havia de grande, e o cristianismo era objeto de desprezo , especialmente o católico, pois era romano e judeu. Mas meu olhar se volta para o futuro. O nazismo nunca foi um tema de minha especialidade”. No final da segunda guerra mundial é preso por soldados americanos, e Ratzinger dedicou-se a estudar para passar nas provas: “tentei fazer poemas em grego e outras coisas parecidas. Ou seja, nada de valor, apenas reflexos do meu dia”.
A trajetória intelectual na sua vocação e como professor é também amplamente descrita. Começando pelo estudo de pensadores e teólogos, onde Santo Agostinho ocupa um lugar muito especial: “O diálogo com Agostinho que já havia tentado de diversas formas por muito tempo. A luta pessoal de Agostinho me tocou bastante. Inclusive depois da sua conversão, persiste a luta, e isso e que torna a sua experiência tão dramática e bela. Agostinho se volta para a filosofia, não sabia que fazer com o Deus do Antigo Testamento. Até que enfim encontra a fórmula: ‘Com os platónicos aprendi que no princípio era o Verbo; com os cristãos aprendi que o Verbo se fez carne. E apenas assim o Verbo chegou a mim’. Eu sabia que de alguma forma Deus queria algo de mim, e estava claro que esse algo era ligado ao sacerdócio”.
Relata-se a dificuldade para passar na de livre docência, qualificação necessária para ser professor…. “Havia obtido o doutorado de maneira muito rápida Se tivesse conquistado a qualificação para a livre-docência tão facilmente, poderia ter desenvolvido a consciência de que seria forte o suficiente para fazer qualquer coisa e minha autoestima teria ficado desequilibrada. Assim as coisas foram redimensionadas(…) Acredito que para um jovem seja perigoso queimar uma etapa antes de outra e apenas receber elogios por onde passa. É bom que conheça seus limites, que se submeta também às críticas, que experimente uma fase negativa, que reconheça seus próprios limites, que não avance de vitória em vitória, mas também tenha seus fracassos. Um homem precisa dar-se conta de tudo isso para aprender a se avaliar de modo correto, a suportar os momentos negativos e pensar com os outros, e não simplesmente a julgar tudo de cima e de modo apressado, mas aceitar os ouros também em suas fraquezas e tribulações. As leituras desse período também entram na pauta, com destaque para Herman Hesse- O lobo da estepe, O jogo das contas de vidro: “me atraiu a análise implacável da desintegração do ser humano”.
E naturalmente, a imensa quantidade de personagens que desfilam na vida de Ratzinger desde os primeiros momentos como professor de Teologia. A grande largada é com o Cardeal Frings, arcebispo de Colônia que de algum modo o contrata como experto para lhe auxiliar nos trabalhos preparatórios do Concílio Vaticano II. Um dos discursos de Frings foi elogiado pelo Papa João XXIII; o cardeal respondeu: “Não fui eu quem escreveu, mas um professor mais jovem”. O Papa respondeu: “Minha última encíclica também não foi escrita por mim. O que conta é mensagem que se comunica”. Seguem-se Henri de Lubac, Jean Daniélou, Yves Congar, Hans Urs Von Balthasar, e as amizades entre eles, as muitas conversas, e alguma que outra cerveja. Fruto dessas amizades, surgem escritos, sintonia de alma e de produção teológica. Comenta-se sobre a amizade com Karl Barth, teólogo protestante, em Tubingen, de quem guarda uma grata memória: “Muitos anos depois numa viagem em 2010 a Alemanha o presidente da congregação evangélica me disse que Bath sempre lhes recomendava: “Leiam Ratzinger”.
Fala-se do Papa João XXIII: “Sempre me fascinou pela sua total fata de convencionalismo. Era direto, tão simples, tão humano”. Do encontro com Pieper em Munster “que que também se entendia a si mesmo como eu, como progressista, buscando algo novo, novas interpretações de S. Tomás. O que Guardini foi para Munique, Pieper foi para Munster”. E, naturalmente, do relacionamento com Hans Kung a quem deve sua recomendação para a cadeira em Tubingen. E com Rahner, com quem trabalhou no Concílio. Estas amizades com aqueles que depois se afastaram da Igreja, levantam a pergunta que poderia ser assim colocado: Afinal, quando foi a sua virada? “Vi que a Teologia não era mais a interpretação da fé da Igreja Católica mas passou a estabelecer por si mesma como ela poderia e deveria ser. Para mim, como teólogo católico, isso não era compatível com a teologia”.
O Papa João Paulo II, que o conhecia do Concílio Vaticano II, ensaia uma primeira convocação para ser seu colaborador, em 1979. Ratzinger, que tinha sido nomeado Bispo de Munique recentemente, declina: “Não posso, cheguei aqui há um ano”. Na segunda investida de João Paulo II já em 1981, coloca como condição que lhe seja permitido continuar a publicar livros, e o Papa diz que sim. A partir desse momento, o Cardeal Ratzinger assume oficialmente a defesa da fé Católica. A admiração por J. Paulo II sintetiza-se em poucas palavras: “Para conhecer a J. Paulo II era melhor celebrar uma Missa com ele do que analisar seus livros. Eu lhe dizia: Santo Padre, precisa descansar. Para repousar tenho toda a eternidade. Esse era João Paulo II”.
Nos quase 25 anos no comando da Congregação para a Doutrina da Fé, o professor Ratzinger fez várias tentativas para deixar o cargo, quando o mandato regular de 5 anos já tinha acabado. A primeira em 1986, mas o Papa não aceitou. “Em 1991 pedi com insistência, tinha tido uma hemorragia cerebral, mas a resposta foi não. Na terceira vez me disse que não precisava escrever pois meus pedidos não serão ouvidos: O senhor precisa ficar enquanto eu estiver aqui, disse-me”.
E quando João Paulo II deixa este mundo, a perspectiva de retirar-se, que poderia ser lógica, dá uma nova virada. Ratzinger é eleito Papa no conclave de 2005. O Espírito Santo tem seus caminhos mas, “não era de se esperar ser eleito Papa com 78, quando um bispo se aposenta com 75. Ser Bispo de Roma com 78 anos?”.
O primeiro volume da sua obra sobre Jesús é apresentada no aniversário dos 80 anos. Trata-se de um sonho, um desejo antigo: “Se não conhecemos Jesús é o fim da Igreja. E o perigo de que Jesús seja destruído por certo tipo de exegese é enorme. Nesse sentido, precisei me permitir entrar um pouco na luta ferrenha dos detalhes”.
Agora como Papa, encontra-se com políticos e personagens: de Fidel Castro, até Putin, passando por Bachelet, Obama, Vaclav Havel, Shimon Peres. Bento XVI fala com simplicidade desses encontros, tentando encontrar sempre o positivo nos seus interlocutores, mesmo não partilhando sua fé. Mais incisivas são suas críticas para o catolicismo alemão, “estruturado e bem pago, em que muitas vezes os católicos são funcionários que se opõem à Igreja com mentalidade de sindicato. O grande perigo é ter tantos funcionários bem pagos, e por isso se transforma numa burocracia mundana, Os italianos não podem bancar tanta gente, por isso o trabalho se baseia em grande parte no voluntariado”.
O jornalista aborda os escândalos do Vaticano, onde há inveja, ciúmes, carreirismo e intrigas. “Isso já se sabe. Há de tudo lá, mas isso não representa o Vaticano inteiro. Há muitas pessoas realmente boas que trabalham com total dedicação, de manhã até a noite. Em um organismo com muitos milhares de pessoas é impossível que haja apenas os nos. Mas conheço tanto dos bons que é preciso aguentar este tipo de coisas. Fico emocionado com tantas pessoas que encontro aqui que querem fazer algo e estão lá de coração para servir a Deus. As pessoas boas, puras para mim compensa o outro lado: esse é o mundo. Sabemos disso pelo Senhor! Os peixes ruins também vem na rede”.
Chega o momento da renúncia, um novidade histórica inédita nos últimos mil aos. Bento XVI escreve a renúncia em latim “porque algo tão importante assim se faz em latim, que é uma língua que domino bem, de modo que conseguiria escrever de forma decente. Em italiano poderia deixar passar algum erro”. E esclarece: “Quando um bispo, ou mesmo o Papa, renuncia, mantém as responsabilidades num sentido interior, mas não na função. É como ser pai; ninguém deixa de ser pai, mas deixa as responsabilidades concretas”. O seu interlocutor chega a lhe perguntar o que lhe oprime. Ele, com imensa humildade, responde: “Me oprime não ter feito o suficiente para os outros em vários momentos, não os ter tratado bem. Há situações em que não se é totalmente justo com as pessoas, com as questões”
Um novo Papa é eleito, ainda em vida do anterior. Francisco chega com um estilo distinto. O jornalista situa a questão: Agora, com Francisco, a Igreja perde o Eurocentrismo, não é assim? O Papa emérito responde de bate pronto: “Os novos elementos renovam o Ocidente cansado e lhe dão nova energia, o despertam do cansaço, o ajudam a recuperar a memória da fé. Se penso na Alemanha por exemplo, há certamente uma fé viva, um dedicação a Deus Mas também existe o poder as burocracias, a supervalorização dos aspectos teóricos da fé, a politização e a falta de uma dinâmica viva que quase sempre parece espremida sob o peso exagerado das estruturas. Onde a fé é ativa e viva, ela não vive na negação, mas sim na alegria, encontra também novas formas”.
Esse é Josef Ratzinger, Professor, Teólogo iminente -dizem alguns que não tem interlocutor à altura- Papa com 78 anos, e Papa emérito neste momento em que esboça nestas linhas o seu último testamento. Que venha a ser o último nunca temos certeza, sendo quem ele é: um pensador, um pastor, um homem santo que busca, uma vez e outras, refletir sobre o que Deus já tinha dito: um Teólogo dos grandes! E, antes de mais nada, um Cooperador da Verdade, como se pode ler no seu lema episcopal: Cooperatores Veritatis. Assim o explica ele mesmo: “Não podemos dizer tenho a verdade. Mas a verdade nos tem, nos toca. E tentamos nos deixar conduzir por ela. É possível cooperar com a verdade, pois ela é pessoa. É possível deixar a verdade entrar, tentar dar legitimidade à verdade. Isso me parece ser a definição real da tarefa de um teólogo; ele foi tocado por ela, e está preparado para que ela o leve ao serviço de cooperar com ela e por ela”.